Há uma bonita tradição no cinema português que se relaciona com a escolha dos atores que interpretam pais, padres, médicos e professores. É frequente que, para dar corpo a estas personagens, se convidem outros realizadores, muitas vezes mais velhos. É, nalguns casos, uma forma de filiação. Noutros, uma simples graça autorreferencial. Noutros ainda, uma forma de comentário – sobre o filme em causa ou sobre o cinema do realizador convidado. Em Légua (2023) isso acontece sob a forma de comentário.
João Botelho, por exemplo, começou a sua carreira tratando claramente de materializar a sua herança: em Conversa Acabada (1980), a primeira longa-metragem do então jovem realizador, a personagem do padre que dá a extrema-unção a Fernando Pessoa é interpretada por Manoel de Oliveira e, com a sua segunda longa-metragem, Um Adeus Português (1986) foi a vez de convocar António Reis para a frente da câmara – para que ficasse bem clara a sua parentalidade cinematográfica. Manoel de Oliveira, embora não convoque realizadores para figuras de autoridade patriarcal – exceção de Paulo Rocha que faz de médico em Francisca (1981) – chamou, por duas vezes Duarte (João Bénard da Costa) de Almeida para interpretar papas, o Papa Clemente X em Palavra e Utopia (2000) e o Papa João XXIII em Rencontre unique (2007). Para outros realizadores, Bénard da Costa interpretaria o papel de pai [La Ville des pirates (1983) de Raúl Ruiz], de avô [Frágil como o Mundo (2001) de Rita Azevedo Gomes] ou de médico [Aqui D’El Rei! (1998), de António-Pedro Vasconcelos].
Já Paulo Rocha, além do referido terapeuta no filme de Oliveira, fez de monge em O Fio do Horizonte (1993) e de Doutor Portugal em Rasganço (2001). Alberto Seixas Santos ocupa a personagem do avô em Inventário de Natal (2000), primeira curta-metragem de Miguel Gomes, que por sua vez interpreta o papel de pai numa das primeiras curtas de João Nicolau, Canção de Amor e Saúde (2009). Há também – não se pode esquecê-lo –, o papel de Joaquim Leitão como pai de Jaime (1999), onde diegeticamente o realizador interpreta um progenitor, e extradiegeticamente assume a posição de filho. Por fim (duplamente), Fernando Lopes assume o papel de pai na curta A Felicidade (2009) de Jorge Silva Melo – o seu último filme de ficção.
Não sendo ator, a presença de Manuel Mozos carrega uma fragilidade não controlada, uma insegurança, uma honestidade qualquer que é sempre tocante.
No entanto, não há outro realizador português com tantos papéis de ator como Manuel Mozos. Perito em pequenas personagens, bastante secundárias – é certo – mas sempre singulares, Mozos tem participado, ao longo dos últimos anos, em algumas dezenas de filmes. Algures entre o cameo e a participação especial, a presença de Mozos traduz, invariavelmente, a presença de um homem real e, a par disso, um piscar de olho cinéfilo. Este paradoxo contraria a generalidade dos casos anteriormente referidos, onde a escolha de um cineasta para interpretar um qualquer papel tinha, quase sempre, uma função meramente referencial. Mozos impõe uma súbita mundanidade ao universo dos filmes em que participa. Não sendo ator, a sua presença carrega uma fragilidade não controlada, uma insegurança, uma honestidade qualquer que é sempre tocante.
Mesmo quando interpreta perigosos brutamontes [no julgamento de As Mil e uma Noites (2015) ou em O Filme do Bruno Aleixo (2019)], quando interpreta o papel de um detetive privado [a curiosa curta de escola Fantasmas (2016)], ou de um líder do crime [noutro recente filme escolar Encoberto (2022)], Mozos é sempre ele próprio, desarmante nas suas fraquezas. Depois, quando assume a figura de rececionista ou de empresário falhado [nos filmes de Eugène Green, A Religiosa Portuguesa (2009) e Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (2018), respetivamente], de empresário de “import-export” [em O que a noite rouba ao dia (2018)], de professor de ensino secundário [em Coitado do Jorge (1993)], ou de chefe de estação [Longe Daqui (1993)], ele é o garante de realidade, uma espécie de personagem-tipo da portugalidade, o anonimato encarnado.
Légua trabalha uma estética da contradição que tem a sua veia mais evidente na oposição entre as estações do ano e o estado de saúde de Nilinha.
Por fim, e regressando aos sacerdotes, Mozos interpretou o papel de monge em A Vingança de uma Mulher (2012) e, agora, surge no novo filme de Filipa Reis e João Miller Guerra, Légua (2023), como padre Guilherme. Faço todo este preâmbulo, porque me parece que a personagem de Manuel Mozos é a chave para ler Légua. Nela encontram-se todas as contradições do filme, todo o seu propósito narrativo, uma metáfora animista sobre a descendência e até uma espécie de súmula aforística das intenções dos realizadores.
O padre Guilherme é uma das únicas figuras exteriores (a outra é a cabeleireira) ao ecossistema daquela casa abandonada (fala-se, a certa altura, de uma assombração, de um fantasma). Mais do que ser um elemento externo, ele representa – por vias travessas – os senhores da casa, os proprietários ausentes. O padre Guilherme é irmão da “Senhora”, um irmão dedicado ao sacerdócio e que, por isso, fez um voto de pobreza. É assim que ele aparece no filme, com um polo Lacoste nas mãos tentando com uma tesoura cortar o “triste crocodilo”, para que os eclesiásticos colegas não desconfiem do seu gosto pelos pequenos luxos da moda pronto a vestir. Um padre que gosta de vestir Lacoste e se envergonha disso, um mesmo padre que pede à empregada que lhe faça as compras e que passa a despesa para a irmã, a “Senhora”, porque ele – como todos sabem – é um homem pobre. Esta contradição inerente ao padre Guilherme (veste Lacoste e crava as compras à caseira) é o único momento em que se verbaliza aquilo que em todo o filme permanece claro, mas mudo: a tensão entre um esquema social (senhores e caseiros) que, aos poucos, deixa de fazer sentido; e uma vontade de que tudo permaneça igual.
Miller Guerra e Reis (e os outros quatro argumentistas creditados) trabalham sempre em contraponto – sendo as contradições do padre Guilherme a cristalização disso. Quem deseja a manutenção do statu quo não são os proprietários, é a funcionária. Os donos querem-se desfazer daquela casa e de tudo o que ela representa e, em contraponto, é a velha caseira (Nilinha) que começa o filme afirmando “as coisas são assim, sempre assim foram e sempre assim serão”. Tudo no filme trata de contradizer a propensão para o entendimento do “progresso” enquanto forma linear e preestabelecida: veja-se o exemplo dos cães que se recusam a comer a excelente ração, nutritiva e equilibrada, e preferem os caldos da dona Nilinha; veja-se o processo de “libertação” de Ana (Carla Maciel) que acaba por recusar emigrar e com isso ter uma autonomia laboral e financeira, acabando por se emancipar precisamente no lugar da “opressão doméstica”, convertendo-se em caseira e ocupando o lugar de Nilinha (só que agora como forma de retaliação de classe).
Légua é um filme sobre a passagem do tempo, passagem essa que corre a diferentes velocidades para diferentes gerações.
No fundo, Légua trabalha uma estética da contradição que tem a sua veia mais evidente na oposição entre as estações do ano e o estado de saúde de Nilinha. À medida que a caseira velha se vai tornando cada vez mais dependente da ajuda de terceiros, o filme dá-nos o virar do inverno para a primavera. É no exato momento em que se instala a cama hospitalar na sala do casarão – ponto de não retorno paliativo – que os realizadores propõem um raccord para uma primaveril flor púrpura (e os rebentos do batatal começam a despontar, os animais recomeçam a pastar e até a paisagem queimada pelos fogos desponta, aqui e ali, de verde).
De facto, Légua é um filme sobre a passagem do tempo, passagem essa que corre a diferentes velocidades para diferentes gerações. Para Nilinha, a caseira velha, o tempo vai-se tornando progressivamente mais lento, até à estase final. Inversamente, para a filha de Ana, o tempo é uma aceleração dopaminada, cheia de certezas, descobertas e impaciências. Para o marido, o tempo é uma projeção, não há presente, apenas um futuro distante, que é preciso construir com trabalho. Para Ana, a protagonista, o trabalho coincide com o tempo do filme – até porque ela comemora o seu aniversário exatamente a meio do filme (49 anos, a meia idade). Essa coincidência de tempos, de ritmos, entre o filme e a personagem principal, são a razão de ser dos desacertos com as outras personagens. O filme segue um ano na vida de Ana, entre duas canções de Dina e duas aplicações de creme hidratante. É essa estabilidade comedida e sem grandes arremessos da personagem principal que choca com tudo o resto que deseja a mudança, o progresso, a novidade. Ana deseja a permanência, e o filme acompanha-a nisso. Mozos afirma, a certa altura “todas ferem e a última mata”, referindo-se às horas (a propósito de um relógio da irmã que este surripiou). Esse dizer popular traduz, com precisão, as modelações na representação do tempo no filme. É uma súmula bem cristã de correr unívoco do tempo que encontra nas vidas mais ou menos penosas das personagens o seu reflexo.
Mas, como referi, o padre Guilherme de Manuel Mozos abre o filme não só ao retrato social (Lacoste e cravanço) e ao aforismo filosófico (“todas ferem e a última mata”), mas também à metáfora animista. O desaparecimento da personagem de Mozos acontece – como várias outras coisas no filme – através de uma elipse quase impercetível, entrecortada por planos de naturezas-mortas. O padre Guilherme deixa a casa, deixa uma série de papéis espalhados, beatas dispersas, e tudo num tumulto. Ana começa a limpar os despojos e depara-se com uma galinha que saltita por entre as pernas da mesa e das cadeiras da sala. Ela persegue-a e a galinha vai fugindo, até que sobe para a poltrona que fora, antes, ocupada por Mozos. Pousa entre as mantas e fica a observar a caseira. Nesse momento descobrimos que a galinha pôs um ovo no assento da poltrona. Miller Guerra e Reis dão-nos um plano de Ana, com a galinha ao colo, sentada junto à janela, a descansar. Aqui abre-se a possibilidade de uma mutação: será que o padre Guilherme se transformou numa galinha?
A hipótese é absurda no contexto naturalista do filme, porém a presença dos animais, em cenas posteriores, vem adensar aquilo que até aqui era apenas uma sugestão. Quando Nilinha entra em estado de total prostração, os realizadores visualizam esse alheamento do mundo e de si através dos peixes que habitam o aquário que se encontra aos pés da cama. Já no final do filme, quando tudo regressa à vida, vêem-se cavalos, cabras e bois pela paisagem (além da companhia sempre presente dos cães). E convém recordar que o primeiro plano do filme corresponde a um lento e longo zoom em direção a uma coruja que se encontra pousada num ramo, zoom esse que termina no instante em que a coruja branca olha diretamente a câmara, como que tomando consciência de si (a coruja e o próprio filme, que parece surpreender-se com a devolução do olhar de um animal). Esta “possibilidade de amor entre espécies”, que é como quem diz, este alargamento a uma perspetiva concomitante à de Ana (a perspetiva da natureza, das estações, das plantas e dos animais) revela, por fim, as fundações do olhar da dupla de cineastas: um entendimento do quotidiano a partir dos gestos do trabalho, do cuidar do outro e do cuidar de si. Légua não é mais que isso, um retrato complexo da mundanidade, onde os poucos signos são já apenas a sombra de um cinema despido de sentidos e que abraça a banalidade das coisas. Como o cão perneta que dorme à sombra do caramanchão ou uma velhinha gulosa que trinca uns caralhinhos de São Gonçalo.
★★★☆☆