Os dois walshianos Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa trocam impressões sobre o filme português do momento, que, na realidade, são dois filmes num só (ou não é bem assim?): o díptico de João Canijo, rodado em tempos de pandemia, e com um sentido trágico-cómico simultaneamente problemático e cativante, intitulado Mal Viver/Viver Mal (2023). O entusiasmo dos dois walshianos radicará no que liga (e desliga) os filmes entre si – não só nos filmes propriamente, mas, acima de tudo, na experiência que os dois poderão conjurar no corpo e na alma de um espectador que se preze -, motivando uma viagem pelo cinema do realizador portuense agora regressado a um décor que conhece bem.

Olá Ricardo,
Queria escrever-te a propósito do díptico de João Canijo e começando por uma pequena distracção minha, gerada de maneira acidental: o ter começado, aparentemente, “ao contrário”. Portanto, apetece dizer: comecei mal, por Viver Mal e não por Mal Viver, como manda a ordem mais canónica, apesar de o realizador já ter afirmado mais do que uma vez que os filmes são autónomos, sobrevivem bem um sem o outro. Esta questão é interessante, porque nos coloca numa espécie de “beco”: a minha reacção ao filme foi mais um “quero ver mais”, quer dizer, “a outra história”, a das donas e empregadas do hotel, porque sinto que o objecto em questão é algo manco e também um pouco repetitivo na sua, para citar o colega Daniel Ribas na sua tese de doutoramento, “dramaturgia da violência”.
O que me cansa um pouco, e, portanto, me faz “pedir mais” ou “outra coisa qualquer coisa”, é não tanto a tal dramaturgia da violência mas a violência insistente, sádica e, no final, postiça dessa dramaturgia.
As histórias têm sentido de humor, a realização faz justiça ao lugar, criando uma arquitectura visual e sonora a partir da arquitectura extraordinária daquele hotel “perdido” em Ofir, os actores – claro está, porque é um filme de Canijo – estão no seu prime, sendo superiormente dirigidos. Mas tudo isto é uma apreciação técnica das coisas, falta o resto num filme que se alicerça nos códigos do melodrama e da tragédia. Falta, senti, alma (parece que é o nome do cão que, a dado momento, está perdido) para que as frases não resultem em inspirados chavões e as personagens em bem burilados “tipos” (o tipo mais recorrente aqui é a mãe megera, obsessiva, daquelas que nos fazem pensar em filmes com Joan Crawford, dos anos 60). O que me cansa um pouco, e, portanto, me faz “pedir mais” ou “outra coisa qualquer coisa”, é não tanto a tal dramaturgia da violência mas a violência insistente, sádica e, no final, postiça dessa dramaturgia. Não há zonas cinzentas aqui. E a ironia – o seu efeito aliviador – nunca é plenamente assumida, porque podia haver aqui um prazer sádico temperado por uma pulsão camp, mas isso não é evidente. Veja-se, neste particular, o trabalho sobre a arquitectura sonora, que é quase levado até ao ponto do absurdo (começamos com a premissa naturalista, perfeitamente controlada, e acabamos num plano de perfeita alucinação sonora, em que ouvimos mais a personagem de Nuno Lopes aos gritos no quarto ao lado do que as duas personagens, o casal lésbico em crise, se bem me lembro, na sua esfera íntima).
Outro momento em que o filme poderia assumir – quer dizer, poderia assumir mais, melhor ou de algum modo – a sua própria incongruência dramática é o da sala da televisão: duas discussões espelhando e rivalizando em decibéis enquanto uma das empregadas assiste ao concurso Joker e outra come uma sobremesa. O ambiente é perfeitamente fabricado, não só tendo em conta a contiguidade destas mesmas discussões, que as torna em si mesmas insustentáveis, como atendendo à suposta “etiqueta” imposta pelo lugar e pela condição social dos hóspedes – um chavascal armado pela alta sociedade, expondo de maneira declarada, quase pornográfica, assuntos do foro mais íntimo… Não consigo “comprar” esta como, aliás, outras situações com base na dita premissa naturalista. E não consigo aceder a estas histórias de personagens inflamadas pelo drama sem que um comentário da realização me permita assumi-las no seu artifício gritante, quase exploratório – é o facto de nunca sentir esta posição da realização, demasiado seriamente presa ao seu dispositivo, que me deixa entregue a essa mesma premissa naturalista, que se revelará, enfim, difícil de aguentar pela própria estrutura dramática ou dramatúrgica da obra.
É isto que queria partilhar contigo, acalentando a esperança de perceber melhor o exercício e aceder, em pleno, a este mundo/aquário de personagens à beira de um ataque de nervos naquele primeiro-tomo-que-não-é-bem-o-primeiro-tomo chamado Mal Viver.
Abraço,
Luís Mendonça

Bom dia Luís,
A minha experiência de ver o díptico de João Canijo foi a do bom aluno: segui a ordem “correta” – primeiro Mal Viver e depois Viver Mal – e vi-os logo um após o outro, com um pequeno intervalo de poucos minutos. Postas as coisas desta forma, é-me muito difícil imaginar o que será ver os filmes doutro modo, até porque a natureza episódica e fragmentária do segundo filme se sustenta na continuidade do primeiro, isto é, tira partido, precisamente, da linearidade bem pontuada de momentos de convergência para, mais facilmente, se reorganizar em torno de sequências chave, feitas momentos de encruzilhada narrativa (a sequência junto à piscina, o jantar no restaurante, a cena da sala da televisão). Até certo ponto, há uma dimensão de complemento em Viver Mal. Esse é, aliás, a explicação do próprio realizador, que tinha em mente um só filme, onde as histórias dos hóspedes eram meros apontamentos e que, no decorrer do desenvolvimento do argumento – com as atrizes e atores, segundo o seu método muito particular – essas mesmas histórias começaram a crescer, como um tumor ou um furúnculo.
A meu ver, o grande gesto de cinema de João Canijo, neste díptico, evidencia-se na consciência e na coragem de amputar esse tumor, de excisar esse furúnculo, tornando-o independente (ainda que nunca autónomo). Ao retirar esse crescimento desordenado do “filme”, ele reencontrou o filme: fez de Mal Viver aquilo que era o seu desejo. O que se torna claro, aqui, é um gesto de maturidade que, por exemplo, não acontecia do mesmo modo em Sangue do Meu Sangue (2011), onde a lógica dos contributos das atrizes e atores insuflava o filme ao ponto da desagregação balofa – inchava, inchava até desabar sobre o seu próprio vazio histriónico e moralista. Ao conseguir reduzir e expugnar a tendência do seu método para as múltiplas erupções dramáticas (como uma alergia, que faz brotar, na pele, uma série de inchaços e vermelhidões), concentrando, simplificando e tornando mais minimal a épica familiar em Mal Viver, o realizador produziu, como que por acidente, esse objeto estranho e manco chamado Viver Mal. O que é interessante, a meu ver, é que se Mal Viver é, sem dúvida, o filme que João Canijo queria fazer (mais, que queria ter feito, várias vezes, ao longo dos últimos anos), porém a mim intriga-me e cativa-me muito mais o filme que ele fez por acidente e “a contragosto”, Viver Mal – exatamente por muito daquilo que te incomodou.
Talvez essa capacidade de excisar e depurar o primeiro filme, fazendo este segundo a partir das suas sobras exageradas, se prenda com a diferença de estatuto dos atores que participam no elenco (atrizes de sempre por oposição a algumas estreias no universo Canijo). No entanto, é claramente a diferença de classe (os hóspedes são todos de classe média alta ou classe alta – ou se não o são, vivem como se o fossem) que consolida Viver Mal e que lhe introduz a veia de comentário social tão ácido quanto cómico. Depois de Manoel de Oliveira, que entendeu (melhor do que ninguém) a perfídia de Agustina Bessa-Luís em filmes como Francisca (1981), Vale Abraão (1993), Party (1996) e Espelho Mágico (2005), João Canijo equipara-se-lhe quando constrói as personagens de Leonor Silveira (que não aparece aqui por acaso…) e Beatriz Batarda, que sendo demasiado bregas para serem agustinianas (“Esse é o meu casaco branco da Max Mara?”), aproximam-se da maldade sibilina e manipuladora com que a escritora escrevia sobre as pessoas do seu meio.
Vistos um após o outro, Viver Mal é uma espécie de momento de reflexão autoparódica – onde, por um instante, o realizador admite rir-se de si, dos seus atores e atrizes e da sua tendência para o excesso, aproveitando isso para cerzir uma sátira social proto-marxista.
Sei que ainda não viste o Mal Viver, mas perceberás que a lógica grupal das atrizes do costume digladiando-se é a mesma dos seus últimos filmes – significativamente mais bem filmada, por Leonor Teles, do que a planura desenxabida de Fátima –, com a “agravante” de que, por uma vez, a concentração espacial (o Hotel de Ofir), transforma o filme numa espécie de labirinto surdo de corredores e portas que não vão dar nunca a lado nenhum. Pois bem, se a dramaturgia da violência encontra o seu ponto de rebuçado nesta batalha campal intergeracional, feita de rancores, remorsos e ruturas, a graça de Viver Mal prende-se com aquilo que te incomodou e que a mim – vendo o filme na sequência do “primeiro” – me cativou: a artificialidade quase patética, o excesso dramático no abismo da comicidade ou a crueldade feita refinado comentário de classe. Vistos um após o outro, Viver Mal é uma espécie de momento de reflexão autoparódica – onde, por um instante, o realizador admite rir-se de si, dos seus atores e atrizes e da sua tendência para o excesso, aproveitando isso para cerzir uma sátira social proto-marxista (como quem diz, se acontece primeiro com os pobres é trágico, se se repete com os ricos é cómico). Ao retirar o excedente, concentrando-o num filme só, João Canijo fez de Viver Mal a cristalização de tudo aquilo que contaminava os seus filmes mais recentes, fazendo assim um tríptico agoniante que encontra no humor a sua autoconsciência de classe.
Não consigo concordar contigo: tudo em Viver Mal é puro camp e puro sadismo – e é isso que o eleva a potencial objeto de culto (e que o liberta de uma certa tendência sorumbática do cinema de Canijo). Alguns dos diálogos mereciam ser recortados e bordados em quadrinhos. No futuro, acredito que, como no Rocky Horror Picture Show (1975), se organizem sessões em que os fanáticos mais fervorosos debitam as melhores falas de Leonor Silveira – de indicador em riste – todos de casaquinhos brancos da Max Mara. Na verdade, este ano está a ser um fartote para o cinema camp português, depois do icónico “devolve-me as minhas savings!” que Beatriz Batarda grita em Great Yarmouth: Provisional Figures (2022) – sendo que a diferença entre um e outro, e uma Batarda e outra, é que Canijo está aqui mais perto de um John Waters, na sua crueldade e no seu olhar lacónico sobre as coisas, ao passo que Marco Martins se aproxima de um Tommy Wiseau, completamente inconsciente da sua comicidade.
Agora vai lá ver o Mal Viver e diz-me de tua justiça.
Até já,
Ricardo

Caríssimo Ricky Horror Picture Show,
Pois é… Vi, entretanto, Mal Viver e, devo dizer, certas coisas tornaram-se significativamente menos “deslocadas” em Viver Mal, sendo uma delas o estado de nervos e a “peixeirada” desencadeada pelas empregadas do hotel, algo que surge justificado pela entrada em cena da filha, Salomé, interpretada por Madalena Almeida, alguém que vem transformar uma, adivinhamos, paz podre numa “guerra civil” feia de se ver. A outra ligação interessante entre os dois filmes traduz essa simetria quase perfeita entre a história que se desenvolve, de maneira mais concentrada e “nuançada”, em Mal Viver com a última história – a que achei mais desequilibrada e, digamos, excessiva – em Viver Mal. Esta obsessão pela mãe ganha contornos quase psicóticos tanto num filme como no outro, mas no primeiro fala-se, sobretudo, da rejeição da mãe face à cria e no segundo (seguindo a ordem estipulada oficialmente), sobretudo na última história, temos uma mãe fixada na filha. A maternidade como uma monstruosidade, como uma forma de vampirismo contínuo, conjurado de parte a parte.
E a personagem de Salomé parece ser o exacto oposto da personagem de Júlia nessa história final, ainda que ambas surjam como “joguetes”, “in betweens”, “instrumentos” à mercê de quem as rodeia. Salomé é impositiva – faz questões difíceis – mas claramente é “dirigida”, à distância, pela avó, interpretada magistralmente por Rita Blanco (talvez o seu papel mais complexo e complicado, até à data, muitíssimo bem “resolvido” com um apontamento, um esgar, um olhar… soberba interpretação), ao passo que Júlia é de uma aflitiva passividade, um “quadro em branco”, estática, amorfa, sujeita a todo o tipo de manipulações, sobretudo por parte da mãe, personagem algo grotesca, quase camp, encarnada por Beatriz Batarda.
Por fim, quero falar de duas sequências pungentes em Mal Viver – que ilustram “o que não há” em Viver Mal – e ainda uma cena aparentemente insignificante que, vistos os dois filmes, mas sobretudo querendo adentrar e perceber melhor a mecânica emocional do drama em Mal Viver, considero ser a mais importante do díptico. Primeira sequência: a conversa/confissão à cama por Anabela Moreira [ainda não falei da sua composição “para dentro”, absolutamente abnegada, como só antes vira em Mal Nascida (2007), peça algo esquecida no grande puzzle de Canijo], em face de uma impiedosa Rita Blanco – é nesta sequência que a meu ver a “mãe megera”, alheada e indiferente, interpretada por Anabela Moreira, vira definitivamente vítima das suas circunstâncias, da incompreensão de quem a rodeia, começando por essa mãe glaciar [fez-me pensar em Höstsonaten (Sonata de Outono, 1978) de Bergman, muito mais do que Viskningar och rop (Lágrimas e Suspiros, 1972), filme assombroso – talvez “o” meu Bergman – mas que me parece ser mais decisivamente tingido a vermelho pela doença, pelo sexo e pela morte do que este díptico, que talvez pelo final “mizoguchiano”, ou face ao seu xadrez dramático “entre mulheres” que trabalham ao serviço de… me pareça mais um filme do realizador nipónico]. Segunda sequência: o grito mudo, mas que parece estilhar os vidros – e sobretudo os espelhos – de todo o hotel, que encerra o filme e que, para mim, encerrou o díptico (tenho mesmo dificuldade de conceber outro final para esta “sessão dupla”).
Vejo Mal Viver como uma obra sobre a inclemência, a incapacidade de compreender o outro, nas suas fra(n)quezas e falhas, e vejo o mais frágil Viver Mal como uma outra obra, sobre a necessidade de possuir o outro, devorá-lo, consumi-lo, vampirizá-lo…
E queria falar da cena mais importante, pelo menos para mim, do conjunto Mal Viver/Viver Mal: quando Julia desce as escadas e a personagem de Anabela Moreira, Piedade, observa que, desta vez, não comeram um gelado juntas. Se não me falha, esta sequência é repetida duas vezes em Viver Mal e surge mais uma vez em Mal Viver. Três vezes ao todo, sob dois ângulos diferentes (quase à maneira da célebre sequência repetida de um Francisca (1981), filme que Canijo conhece bem pois estagiou na sua rodagem). Para mim, esta cena assinala uma capacidade de amar em Piedade que não é reconhecida – está fechada, oculta, “oprimida” – pelas outras mulheres da casa, começando pela sua mãe (Rita Blanco). E que a personagem de Piedade precisa de alguém – além da cadela Alma – que se ofereça sem julgar, sem fazer perguntas de modo inquisitivo, que simplesmente esteja com ela, que a acompanhe nos seus rituais (tais como nadar na piscina ou ver o programa Joker à noite, na sala da televisão). Uma filha que saiba ser uma companhia. Júlia afigura ser essa pessoa. Essa filha querida (querida no sentido de desejada, aberta a alguma forma de compreensão, apesar de sabermos que Júlia é como a verdadeira filha de Piedade, só que de uma passividade desconcertante).
Não reflecti muito sobre o seu nome, Piedade, nem sobre o nome do cão, Alma, mas isso fica para outras núpcias ou nas entre-linhas do que aqui procuro desenvolver, no sentido de ver Mal Viver como uma obra sobre a inclemência, a incapacidade de compreender o outro, nas suas fra(n)quezas e falhas, e no sentido de ver o mais frágil Viver Mal como uma outra obra, sobre a necessidade de possuir o outro, devorá-lo, consumi-lo, vampirizá-lo… ainda que sim: também impiedosamente. Se Sangue do Meu Sangue versava sobre o amor incondicional, estes dois filmes esventram uma forma incondicional de desamor, não havendo margens no “amor de mãe” para alguma forma de redenção. Ou esta surge tarde de mais, depois do grito. O grito mudo final (estrondoso!) é como um vómito de onde sai a alma, não a cadela, mas a verdadeira alma, que até aí esteve escondida, dentro da mãe, ao frio e no escuro.
Abraço com alma,
Luís

Oi Luís,
Ao perceber o teu volte de face perante o outro lado desta moeda, comecei a refletir um pouco sobre o que significa, de facto, este objeto bipartido que, como um espírito santo coxo, é um que é dois e é dois que é um. Há qualquer coisa da ordem da armadilha nesta experiência de Mal Viver/Viver Mal na medida em que qualquer experiência do filme está, sempre e inescapavelmente frustrada e como tal, incompleta. O que quero dizer é que vê-los numa ordem impossibilita vê-los (pela primeira vez) na outra. Como tal, fica-se com a sensação de que nunca se viu completamente. E sem nunca ter visto o díptico na sua “totalidade” qualquer juízo pode ser sempre contrariado com um “ah, mas se tivesses visto ao contrário…” Nós os dois, que vimos o filme em ordens diferentes, acabámos – por razões bem diferentes, parece-me – por privilegiar o segundo título visto sobre o primeiro, no teu caso o Mal Viver, no meu o Viver Mal. Isto não me parece, de todo, casuístico. Há na “segunda experiência” deste díptico – qualquer que ela seja – um valor acrescentado que não só promove um maior envolvimento, como transforma a experiência de ver num jogo de ecos e reversos e conceptualiza o filme enquanto construção narrativa. Do mesmo modo que, frequentemente, um espectador que aguenta assistir a um filme de 5, 6 ou mais horas de duração tende a entregar-se-lhe totalmente (nem que seja para justificar, inconscientemente, que não desperdiçou um dia da sua vida a ver um filme medíocre), também aqui se opera algo da mesma natureza, mesmo que mais subtil. Parece-me – e sei que me repito – que o gesto de cinema mais radical deste díptico é a sua separação, é o corte que o subdivide em duas partes desiguais: é aí que Canijo tem uma das suas maiores – senão mesmo a maior – ideia de cinema da sua obra.
A esse propósito, esta materialização formal dos diálogos internos de um filme consigo mesmo, fez-me reparar num outro aspeto do díptico. Talvez tenha sido apenas um pormenor, mas notaste que filme estava a ser exibido na televisão que ajuda a “sincronizar” a discussão do casal interpretado Nuno Lopes/ Filipa Areosa com a conversa mais confrontacional entre as personagens da Anabela Moreira e da Rita Blanco, no quarto desta última? Nas duas televisões passa, muito discretamente, A Comédia de Deus (1995), de João César Monteiro, em particular a cena em que João de Deus escorraça uma carrada de pombos pelas janelas. Se essa forma de filiação entre Canijo e César Monteiro me parece poder ser bastante produtiva (há, de facto, algo que os liga, em particular a dimensão escatológica), há duas outras possibilidades, uma mais interessante do que a outra. A primeira, a simples graça de que Nuno Lopes entre nesse filme, estabelecendo-se um eco de 25 anos que é da ordem da assombração cinéfila. A segunda, aquela que mais me cativa, prende-se com o facto de A Comédia de Deus constituir, à sua maneira, um díptico com A Divina Comédia (1991) de Manoel de Oliveira – tem graça que tenhas referido a participação de Canijo na rodagem de Francisca.
Referindo-me a Mal Viver, tudo aquilo que a ti te pareceu uma mecânica dramática oleada e orgânica, a mim pareceu-me aquilo que muito do cinema de Canijo me costuma parecer: programático.
João César construiu A Comédia de Deus como uma paródia – nada óbvia, mas muitas vezes bastante direta – à obra desenvolvida por Oliveira durante a década de 90, em particular satirizando cenas, personagens e situações do referido filme de 1991, como de ‘Non’ ou a Vã Glória de Mandar (1990) (a cabeça envolta em ligaduras, sobrando apenas um olho destapado) ou de A Caixa (1994) (a faca/ o talhante). Do mesmo modo que César Monteiro fez o filme com uma manta de retalhos de ideias soltas e dichotes anti-oliveirianos, Canijo faz o mesmo de Viver Mal, só que a partir das três peças de Strindberg (Brincar com o Fogo, O Pelicano e Amor de Mãe) e contra si mesmo. Por fim, o outro possível efeito de sintonia prende-se com a própria dinâmica estrutural entre a comédia de Oliveira e a de João César, por relação à dinâmica entre o Mal Viver e o Viver Mal: onde os primeiros (entenda-se, A Divina Comédia de Oliveira e Mal Viver) se constroem em torno de um só lugar e se distendem por um vasto elenco, algo desestruturado, cada um com o seu texto, o seu tom e o “seu filme” – nos dois tudo decorre numa casa de alienados, de forma mais ou menos literal –, levando-se ambos demasiado a sério para o seu próprio bem, nos segundos (entenda-se A Comédia de Deus de César Monteiro e Viver Mal) é o burlesco e a sátira que dominam a ação.
De qualquer modo, e referindo-me a Mal Viver, tudo aquilo que a ti te pareceu uma mecânica dramática oleada e orgânica, a mim pareceu-me aquilo que muito do cinema de Canijo me costuma parecer: programático. Há quase sempre no seu cinema um olhar apriorístico sobre tudo e sobre todos, em particular as suas personagens. Se essa visão – quase dogmática – não é, necessariamente, um problema, quase sempre conduz o realizador a lugares-comuns sobre “o país real”, “as pessoas são mesmo assim”, “quando mais conheço gente, mais gosto de animais”… Se na famosa frase de abertura de Anna Karenina Lev Tolstói afirma que “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes são-no cada uma à sua maneira“, diante do cinema de Canijo fico com a sensação de que todas as suas famílias são equivalentemente infelizes, ou todas infelizes da mesma maneira. E se isso se renova, pela autoparódia, pela sátira e pelo humor escarninho em Viver Mal, em Mal Viver parece-me que voltamos ao mesmo: já vi estas relações familiares podres, estas quezílias, estas perfídias, estas manipulações e quando digo que já as vido, digo que já as vi no cinema de Canijo (há até cenas que se assemelham, revelando – quiçá – uma qualquer obsessão que ronda as areias movediças do trauma). A diferença é que agora, com Leonor Teles, há um qualquer travão que impede a cedência ao miserabilismo e ao simples mau gosto.
Serge Daney afirmava-se como um moralista das imagens. Não é título que queira para mim, eu que sempre gostei de um belo coágulo pendente de um olho cadavérico no cinema de Romero, ou da gosma escorrendo de orifícios de tudo quanto é ficção científica dos anos 80. Porém, antes mesmo de alguma vez ter ouvido falar do Plano de Kapò, da abjeção de Rivette, e de ler o ensaio (quase testamentário) de Daney sobre tudo isto, sobre a sua cinefilia e os fantasmas do holocausto no cinema do pós-Guerra, dizia, antes de tudo isso já eu tinha percebido o sentimento – ainda desprovido de palavras – desse asco que um plano apenas pode provocar. Guardo-o como um amuleto. Esse plano está em Sangue do Meu Sangue e explica-se facilmente. Numa sequência em que a personagem de Nuno Lopes viola uma rapariga, a câmara filma-lhe (a ele) longamente o rabo, enquanto ele penetra a mulher que se vê forçada (por motivos que esqueço) a ter relações sexuais com ele. Se o enquadramento (ao contrário de Ozu, não é à altura da cintura, mas sim à altura do ânus) e a duração do plano já incomodam bastante, o realizador, o seu diretor de fotografia, toda a sua equipa (do montador que não cortou ao produtor que não aconselhou) acharam que era nesse momento que a câmara devia avançar adiante (não me recordo se num zoom se num travelling, e não sei qual dos dois seria pior – se a frieza ótica do primeiro, se o empenho coletivo do segundo), fazendo-se assim coincidir o movimento de câmara com o da penetração de um violador. Mais clara definição da abjeção é difícil. Pontecorvo, ao lado disto, é um santo.
Com Leonor Teles, é claro, um plano assim seria impossível – ainda bem! De facto, o que abre uma nova possibilidade para o cinema de Canijo é isto: um olhar como o de Teles, que pode até não ser muitas outras coisas, mas sempre foi justo. E esses planos e sequências, a que te referes, vivem da subtileza – acrescentaria o plano coletivo da piscina, que subitamente parece ter um olhar exterior e críticos sobre as personagens, como peixinhos num aquário, passeando-se e pavoneando-se em círculos. Há belíssimas ideias de cinema em Sangue do Meu Sangue (recordo-me de um plano numa discoteca em que uma coluna cortava o ecrã em dois, como que aludindo diegeticamente à ideia do dividir para reinar), mas há também a cristalização do horror – e o mesmo se poderia dizer doutros filmes mais antigos do realizador de que tenho uma memória ainda mais difusa. Em Mal Viver sente-se que essa pulsão está refreada pela equipa e pela maturidade. Ficamos todos a ganhar.
Um abraço desalmado,
Ricardo

Caro Ricky,
Encontrámos o nosso principal ponto de concórdia, vendo neste novo Canijo uma tentativa de fazer uma “tragédia divina”, absolutamente livre de formulações mais ou menos exóticas e turísticas sobre a genuinidade do povão, até porque este díptico marca se não a entrada, pelo menos o retorno de Canijo a um meio sócio-económico que conhece bem – o próprio passou férias no hotel do filme, estando, também, perfeitamente ciente dos tiques de classe que põe em cena.
É aí que nos encontramos: na tentativa de encontrar o mérito do filme na dita “separação”, no “e” que pode ser um “ou”, na ideia de que um filme sonha o segundo, de que um título remonta o outro bem por dentro, tornando-o sempre, no final, mais complexo e “necessário”.
Também não enjeito a tese de que Leonor Teles fez bem ao cinema de Canijo, conferindo-lhe uma justeza tanto estética quanto ética. Até, porventura, uma outra respiração – acho que a sinto, verdadeiramente, no Mal Viver, algo que incluo na categoria de um cinema “mizoguchiano” que ensaiei numa nossa correspondência passada.
Uma coisa parece-me evidente: os dois filmes reforçam-se mutuamente, sendo, ao mesmo tempo, bem diferentes entre si, gerando respostas igualmente contrastantes. É aí que nos encontramos: na tentativa de encontrar o mérito do filme na dita “separação”, no “e” que pode ser um “ou”, na ideia de que um filme sonha o segundo, de que um título remonta o outro bem por dentro, tornando-o sempre, no final, mais complexo e “necessário”.
Uma saudação mizoguchiana,
Luís Mendonça