La Cabascholle est sur le plan théorique une des façons de libérer la danse de la chorégraphie. C’est aussi en langage Mammame, la danse du courage, de l’espièglerie et de l’inter-détermination.
Jean-Claude Gallotta, “Note d’intention pour la recréation de Mammame”, 2002.
Num palco despojado, uma horda de nove bailarinos (quatro mulheres e cinco homens) emprestam os seus corpos e as suas vozes a uma coreografia abstrata, composta de movimentos dançados tanto quanto de sons murmurados. Trata-se de Mammame, célebre criação do coreógrafo grenoblense Jean-Claude Gallotta, na qual os rituais e os costumes de uma tribo fictícia se cruzam com os mistérios da dança contemporânea. Nesta primeira adaptação cinematográfica realizada em 1986 (que não é a única, sendo que o realizador francês Claude Mouriéras propôs a sua própria versão meses mais tarde, intitulada Un Chant presque éteint), é através do olhar do cineasta chileno Raoul Ruiz que acedemos ao universo infantil e selvagem imaginado por Gallotta e encarnado pela sua trupe de dançarinos, o Groupe Émile Dubois, fundado em 1979.

Vestidos com calções, camisolas de cavas e meias altas de um branco deslavado, os nove dançarinos, barulhentos e tumultuosos, fazem lembrar um bando de crianças em alvoroço no recreio ou um grupo de escuteiros embriagados com a própria liberdade. Se as palavras que pronunciam são globalmente incompreensíveis, as suas interações físicas espelham o lado mais instintivo e impulsivo do ser humano: ora soltam gritos de alegria enquanto brincam, ora gemem de sofrimento ao caírem no chão; e é precisamente através dos seus movimentos de atração e de repulsão que a cacofonia ininteligível dos corpos se torna gradualmente mais eloquente.
Deste modo, a contaminação do vocabulário coreográfico académico por um repertório de gestos quotidianos e de sons primitivos permite a Jean-Claude Gallotta emancipar a dança da coreografia e alcançar aquilo a que chama de Cabascholle. Reconhecemos também no seu trabalho a influência do americano Merce Cunningham, com quem Gallotta se formou no início dos anos 80, nomeadamente através da geometria abstrata dos movimentos e da exploração do acaso como estratégia de composição coreográfica. Assim, em função das repetições, cruzamentos e contrapontos que pautam a coreografia, as deslocações dos dançarinos em palco compõem uma trama invisível de linhas e de circunferências que evoca um terreno de jogos infantis ou de sedução, ao mesmo tempo que as suas interações esboçam situações dramáticas que conferem uma dimensão tangível a um universo de outra forma hermético.
Com efeito, os membros da tribo dos Mammames parecem envolver-se, coletivamente ou a pares, numa série de danças rituais e breves escaramuças, com conotações simultaneamente bélicas e sexuais; ainda que as suas reações exaltadas não aparentem ser guiadas pela razão, a partilha de uma linguagem oral e de códigos sociais ajuda a criar um senso de comunidade entre os dançarinos. No fundo, o estranho dialeto formado por grunhidos e outros sons onomatopaicos faz parte da coreografia como qualquer outro movimento muscular, esgar, tropeço ou passo de dança por eles executados. Noutras palavras, a dança em Mammame é para ser vista tanto quanto ouvida.
A adaptação cinematográfica de Raoul Ruiz parece ser muito fiel à estrutura e à atmosfera do espetáculo de Jean-Claude Gallotta (que acompanhou de perto das rodagens e até filmou alguns planos), tanto que poderíamos interrogar-nos sobre se o filme se trata de uma captação objetiva para fins de documentação, ou da (re)construção de uma dança tão “intimamente ligada à câmara e à montagem que ela não poderia ser executada como tal em outro lugar senão neste filme em particular” (Maya Deren, 1945). Com efeito, aquando da sua estreia, a receção crítica de Mammame esteve longe de ser consensual: enquanto alguns autores lamentam que Ruiz se tenha contentado em “filmar, de forma relativamente neutra, o espectáculo, sem lhe acrescentar um verdadeiro olhar pessoal, à exceção de pequenos tiques” (Raphael Bassan, 1986), outros veem na sua disciplina e no seu respeito pela coreografia o segredo da realização de uma obra prima tão acessível quanto magnética, que “rivaliza com The Red Shoes enquanto filme de dança mais inebriante alguma vez feito” (Jonathan Rosenbaum, 1987).
No entanto, basta pesquisar um pouco sobre o processo de criação do filme para perceber que o cineasta não se limitou a captar um espetáculo pré-existente ; pelo contrário, Ruiz apropriou-se do universo arquetipal de Gallotta e propôs a sua leitura onírica; e muito embora a montagem respeite globalmente a performance dos bailarinos, a realização reflete um trabalho eminentemente cine-coreográfico que explora novas formas de filmar a dança e de tornar sensível a presença dos corpos no ecrã. Dotado de uma câmara com poderes mágicos, o cineasta revela-se capaz de multiplicar as perspectivas sobre a dança, alternando os ângulos e as escalas dos planos, e de infringir as leis da gravidade, testando posições e movimentos sobre-humanos. De resto, a mise en scène hipnotizante de Ruiz influencia diretamente a forma como observamos e interpretamos a coreografia: guiados por esse olhar-câmara que não conhece limites, sentimo-nos ótica e acusticamente submersos assim que “mergulhamos” no universo excêntrico de Mammame.
Desde o primeiro plano, que acompanha os créditos, o cineasta faz-nos questionar sobre a natureza das imagens que vemos: a coreografia já começou, ou ainda estamos no momento de aquecimento dos bailarinos nos bastidores? A posição inusitada da câmara reforça a ambiguidade da sequência: Ruiz filma, de baixo para cima, os dançarinos que atravessam o ecrã várias vezes, com grandes saltos que parecem momentaneamente suspensos no ar. Posicionada perto do chão, em contra-picado, a câmara enquadra as pernas dos bailarinos sobre um tecto branco; este será o único teto visível no filme que, como veremos de seguida, não cessa de lembrar a importância do chão para a dança – esse chão que é simultaneamente ponto de ancorarem e trampolim para o movimento. A impressão de suspensão é reforçada pelo trabalho da banda sonora: além do som regular da aterragem dos dançarinos, ouvimos uma respiração entrecortada que é retida a cada vez que um deles “levanta voo”.
Se a dimensão sonora da coreografia já era um elemento central na encenação original de Gallotta, esta adquire novas propriedades expressivas e sensoriais na adaptação fílmica de Ruiz. Às vocalizações extravagantes dos bailarinos e à música eletrónica composta por Serge Houppin e Henry Torgue (por vezes ritmada e repetitiva, algo aflitiva, outras vezes melódica e calma, mais nostálgica), junta-se o trabalho especificamente cinematográfico do som fora de campo e a captação do som direto. Graças a grandes planos sonoros que realçam os ruídos produzidos pelos corpos dançantes, de outra forma imperceptíveis (respiração, fôlego, deslizes, fricções, etc.), a sensação do hic et nunc da dança, bem como a impressão de presença e de proximidade física entre bailarinos e espectadores, são exacerbadas. É ainda de salientar que Ruiz não só infringe amiúde o sincronismo entre som e imagem, como aposta na expressividade da “música dos corpos” em detrimento da inteligibilidade dos “diálogos de surdos” entre os dançarinos.
A dança propriamente dita começa, no escuro do palco, com o som de um corpo que cai. E depois outro, e outro. Inicialmente, a câmara enquadra de perfil o rosto de uma mulher olhando o vazio na metade esquerda da imagem, e logo desliza para a direita revelando outras silhuetas que se movem lentamente no mesmo espaço, e que caem ao chão a intervalos regulares; a objetiva foca então o rosto de um dos homens estendido no chão, enquanto, atrás dele, uma dançarina inicia o movimento com uma lenta elevação da perna. Este é um dos planos característicos de Mammame, filmado com a famosa dupla lente que permite a Ruiz obter simultaneamente duas zonas focadas no mesmo enquadramento. Tais composições pontuam o filme, mostrando, no mesmo plano, um rosto sussurrando palavras indecifráveis e outros corpos em movimento filmados por inteiro.

Seguem-se vários planos gerais que mostram a evolução dos dançarinos no palco vazio à medida que os seus corpos despertam para a dança. A certa altura, Ruiz filma a horda de costas, no proscénio, simulando uma vénia diante do auditório deserto. Este instante de ruptura da quarta parede convida o espectador a desviar a atenção do palco: emancipado da perspetiva espectatorial, frontal e distanciada, o seu olhar pode vir imiscuir-se nos recantos do cenário, de onde observa os dançarinos, de perto, de longe, de cima, de baixo, ou até através dos escassos elementos que compõem o cenário… Gradualmente, os planos com função de establishing shots tornam-se raros, sendo substituídos por planos-sequência nos quais a câmara se desloca discretamente, dirigindo o olhar do espectador sobre diferentes detalhes da coreografia ou dos corpos, muitas vezes destacados através de efeitos de moldura dentro do enquadramento.
À medida que Ruiz experimenta novas posições de câmara, o espaço no qual a coreografia se desenrola revela-se cada vez mais instável e ilusionista. Com efeito, não só o cenário é composto por painéis modulares que mudam frequentemente de posição, como o cineasta explora efeitos de splitscreen, mise en abyme e dupla profundidade de campo, que contribuem para saturação do espaço e provocam uma sensação de claustrofobia. Os efeitos de luz e de contraste, brilhantemente executados pelo operador de câmara português Acácio d’Almeida, ajudam também a transformar os corpos dos bailarinos em silhuetas ou sombras projetadas nas paredes. Deste modo, as diferentes etapas da coreografia são marcadas pelas transformações do cenário e da iluminação que, aliadas às variações da música, criam atmosferas distintas, ora de pesadelo, ora de melancolia.
Apenas um dos bailarinos, interpretado pelo próprio Gallotta, parece dar-se conta das reconfigurações subtis do cenário e tenta, em vão, alertar os outros. Estes parecem nem sequer se aperceber da maleabilidade do espaço envolvente, nem mesmo quando o seu caminho é barrado por um painel que desliza, uma porta que se abre, um corredor que se estreita. Por exemplo, uma das sequências mais marcantes tem lugar numa câmara exígua onde se encontram duas das dançarinas, confinadas entre quatro paredes, sem tecto; o seu dueto é filmado ora um ponto de vista aéreo (plano zenital), ora em contra-picado, mostrando os outros dançarinos que as observam de cima, murmurando e imitando na sua linguagem secreta aquilo a que estão a assistir, como se fossem um bando de espectadores sádicos olhando para as prisioneiros no fundo de um poço.

Ruiz espalha ainda alguns objetos inusitados no cenário, como cogumelos que crescem nas paredes, um velho telefone com fio poisado no chão, um colchão abandonado, um estendal com roupas ou até uma ventoinha ligada. A esse respeito, Jonathan Rosenbaum observa que, embora os adereços presentes no cenário não adquiram nunca a função de “objetos encontrados” (found objects) com os quais os dançarinos podem interagir, como acontece nas comédias musicais, eles funcionam ainda assim como catalisadores da atmosfera onírica ou até surrealista do filme, ao mesmo tempo que expõem a natureza artificial da mise en scène. Isto é particularmente evidente no último pas de deux filmado no interior: o casal de dançarinos evolui num cenário intimista que evoca diretamente o imaginário dos filmes musicais de Hollywood, mais precisamente o número romântico “You were meant for me” de Singin’ in the rain (Serenata à chuva, 1955); à semelhança de Gene Kelly e Debbie Reynolds, que dançam num estúdio de cinema expondo a maquinaria e os artifícios sobre os quais se baseia a sua arte, o casal de Mammame dança por entre vegetação e andaimes, iluminados pelos faróis de dois automóveis estacionados no palco. A sequência termina com uma imagem desconcertante que mostra a silhueta de um corpo estendido sobre uma das barras metálicas em pano de fundo, e o longo gemido da dançarina enquanto cai no chão.
Logo de seguida, o dia amanhece e, à beira de uma falésia na Normandia, encontramos um dançarino deitado na relva. Aos sons da natureza (vento, ondas, pássaros…) junta-se uma música ritmada e sinistra que anuncia a chegada dos outros bailarinos, em farândola, transportando com eles uma mesa e bancos de madeira que instalam em frente ao mar. Aí continuam os seus diálogos coreográficos em torno de um banquete de limões que não chegam a provar, emitindo gritos insistentes (ouvimos por vez as palavras “Mammame” e “Un petit bisou”) e alternando momentos de corrida à volta da mesa com breves frases de gestos repetitivos executados com a parte superior do corpo. Pela primeira vez, Ruiz deixa o céu malva dominar o enquadramento, filmando planos muito amplos da paisagem e enquadrando os dançarinos em conta-picado; esses planos rompem completamente com a atmosfera claustrofóbica das cenas de interior e parecem celebrar a liberdade conquistada pela força do vento, que agita e despenteia constantemente a relva, os cabelos e os lenços dos dançarinos.
Aos poucos, o barulho crescente do vento sobrepõem-se à música ritmada e às vocalizações cacofónicas e, novamente, a montagem transporta os bailarinos, desta vez em direção à praia, ao entardecer, onde uma nova melodia emerge do rebentar das ondas e do canto das gaivotas. Inevitavelmente, pensamos na famosa sequência de Un homme et une femme (Um homem e uma mulher, 1966) de Claude Lelouch, filmada, não longe, na praia de Deauville: vemos apenas as silhuetas dos dançarinos dispersas à beira-mar, uns valsando enlaçados, outros apenas caminhando lado a lado. A câmara de Ruiz acompanha um dos casais (a dupla Robert Seyfried e Muriel Boulay) numa sublime sequência de cerca de dez minutos, meticulosamente coreografada. Enfim, os demais casais acabam por ceder, um a um, a um derradeiro abraço pacificador, antes de “saírem de cena”, deixando apenas os seus casacos caídos no areal.

Foi, sem dúvida, na realização desta última sequência que Ruiz tomou mais liberdades em relação à encenação original de Gallotta; aqui, a transposição da coreografia para um cenário natural acentua a sua dimensão onírica, menos desconcertante do que nas cenas de interior, ao mesmo tempo que confere à dança um carácter mais palpável, inscrito na natureza. Como observa precisamente Jonathan Rosenbaum, a adaptação de Ruiz levanta a questão de saber “qual dos cenários nos aproxima mais da realidade da dança e qual nos aproxima do mundo ficcional gerado” (Rosenbaum, 1987); mas o cineasta recusa dar-nos uma resposta inequívoca, preferindo utilizar a sua câmara tanto para revelar os artifícios do dispositivo cénico, quanto para reforçar a dimensão física e tangível da dança. Em última análise, Mammame é um filme autorreflexivo que nos convida a pensar de que maneira a linguagem da dança influencia o olhar de um cineasta, a sua relação com o tempo, o espaço e, sobretudo, com os corpos e as sensações que estes transmitem ; e, inversamente, de que forma o olhar de um cineasta e os processos fílmicos que ele utiliza podem transformar um determinado objeto coreográfico, tanto ao nível formal como sensorial.
Por fim, diria que descobrir o cinema de Ruiz através de Mammame, como foi o meu caso, talvez não seja a forma mais fácil de conhecer a sua obra, ainda que nele possamos reconhecer vários traços característicos do seu estilo. Compreendemos também que, se o cineasta opta por não interferir demasiado na dança através das manipulações da montagem, o virtuosismo da sua realização assenta noutros gestos eminentemente cinematográficos: os pontos de vista expressivos, a precisão dos enquadramentos, a dupla profundidade de campo, a complexidade da banda sonora, a minúcia ritualista dos planos-sequência… Seja como for, Ruiz faz de cada plano um veículo de sensações e transforma a dança captada pela câmara num verdadeiro acontecimento fílmico.
Versão reduzida e adaptada de um capítulo do livro Raúl Ruiz. Potencias de lo multiple, co-editado por Ignacio Albornoz e Iván Pinto (edições Metalos Pesados, Santiago do Chile, 2023, ISBN 978-956-6203-29-2).