Viagem sentimental quanto baste pelo cinema feroz, por vezes, frio e difícil (que morde, agride e punge) do cineasta francês Maurice Pialat, alvo de um ciclo organizado pela Leopardo Filmes. Este amor que existe é duro, por vezes estatual, mas outras vezes a estátua ganha vida, qual mito do Pigmaleão, sucumbindo à errância. E ao movimento errático da vida. Esta Sopa de Planos walshiana é como uma sopa da pedra bem substancial. Agarre-se à colher e prepare o estômago!

Pensar em estátuas leva-me, imediatamente, ao cinema de Alain Resnais, mas também aos corpos do grande cinema soviético (à cabeça, Dovzhenko) que, não sendo feitos de pedra, parecem sempre impor-se como monumentos vivos de uma revolução em curso ou sonhada. Logo depois vou parar, na viagem da minha mente, a um dos primeiros filmes de Maurice Pialat, lançado em 1960, sobre a vida na pululante área suburbana de Paris, habitada por uma depauperada – e esquecida – classe trabalhadora. Na realidade, isolo aqui o penúltimo plano do filme: o da mão do anjo que, visto de frente, parece ordenar e dirigir, mas, neste ângulo, se lança no vazio, pedindo clemência, salvação. O registo sorumbático deste retrato das banlieues diz já algo sobre a natureza convulsa e desesperada do cinema de Pialat. Há sempre uma dureza e uma frieza difíceis de encarar nos melhores filmes do cineasta francês, mas também estas são atravessadas pelo tal ângulo a partir do qual a mão se lança… como quem “pede uma mãozinha”. A dureza quebra, rui e aí vemos o outro lado das coisas. O filme tem um título que se racha ante aquilo que seria a desperançada escalpelização das relações amorosas nas obras de Pialat dos anos 70, sobretudo Nous ne vieillirons pas ensemble (Quando o Amor Acaba, 1972): “o amor existe”.
Luís Mendonça

François Fournier é o nome do menino de 10 anos que, em L’enfance nue (A Infância Nua, 1968) – primeira longa-metragem de Maurice Pialat, comercialmente inédita em Portugal –, se encontra entregue aos serviços sociais franceses e está destinado às sucessivas mudanças de casa e de família de acolhimento. Estação tão importante na construção identitária do ser humano, a infância que habita em François atravessa uma multidimensionalidade a ser decifrada à medida que a narrativa vai tomando forma. O primeiro traço apresentado denuncia-nos a desobediência e a violência, visíveis em atos como mentir e roubar, e o segundo revela-nos a ternura e a inocência, espelhados na fragilidade demonstrada após o falecimento da avó, Marie Marc, e na troca de afetos com o pai, René Thierry. Visualizando as diferentes dimensões dispostas numa corda bamba, as múltiplas cenas retratadas por Pialat fazem crer que, a qualquer momento, uma das dimensões irá aniquilar a outra, significando o seu apagamento. É, então, que o cineasta francês desconstrói a criação de juízos de valor e demonstra que a candura e a rebelião podem coabitar neste limbo, originando-se, assim, um lugar de empatia resultante da compreensão de que a ideia e imagem de estabilidade foram sempre, para o pequeno François, uma miragem.
Conhecendo os cantos à nova casa, François compõe o plano surgindo enquanto observador atento, espreitando pela brecha da porta que dará entrada para o quarto da avó, configurando-se-lhe, aqui, um simbolismo que capta algumas notas evidenciadas ao longo do filme. Em primeira instância, coloca a tónica no sentido da atenção, centralizada por François, e persistentemente procurada pelo próprio nos diversos momentos de interação com aqueles que o rodeiam; por outro lado, o rosto semivisível remete para a ideia da intencional ausência de enquadramento pormenorizado sobre o seu passado, pois mais do que oferecer explicações ou proporcionar respostas, Pialat procura – recuperando, uma vez mais, a ideia da observação e da contemplação – olhar e “beber” dessa realidade. O mesmíssimo retrato da realidade que se acentua no modo como, num par de cenas, após a saída de personagens, Pialat prolonga a captação dos planos, filmando, assim, os espaços, agora vazios. Espaços, esses, que, percecionados por François, serão sempre passageiros e efémeros. Desenquadrados da forma como as circunstâncias da vida o moldaram enquanto ser humano.
Beatriz Fernandes

Um homem armado de uma câmara de filmar avança furioso, como se investisse contra a multidão. No início da sequência, Jean (Jean Yanne) expulsara a namorada, Catherine (Marlène Jobert), que procurava auxiliar o realizador na captação do som. Nous ne vieillirons pas ensemble (Quando o Amor Acaba, 1972), a segunda longa de Maurice Pialat, decalca a conturbada vida sentimental e artística do cineasta (na adaptação de um romance que escrevera), entregue a uma solidão que parecia procurar, e provocar com as suas acções, como se dela necessitasse para prosseguir. A relação do casal oscila entre rupturas e apaziguamentos proporcionados por encontros com o mar, com uma ondulação também expressa pelas inúmeras viagens de carro, por mudanças de direcção, fugas e regressos. Quando a relação termina, o protagonista, enquanto procura lidar com a rejeição, lê a Catherine um fragmento da última carta de Cesare Pavese: “Costumava achar a vida horrível, mas ainda me achava interessante. Agora é o oposto. Sei que a vida é maravilhosa, mas sinto-me excluído”.
Se Nous ne vieillirons pas ensemble resultaria num surpreendente êxito de bilheteira, o filme seguinte, La gueule ouverte (A Vida Íntima de Um Casal, 1974), uma dura viagem aos lugares da convalescença e da morte, haveria de constituir a primeira frustração de Pialat na relação com o público. Mas a sua fúria jamais se esbateria, na vontade de mostrar outro país, outro cinema, à distância dos camaradas da Nouvelle Vague. Filmes sobre a intimidade, sobre famílias (com os pais de Pialat a pairarem como fantasmas), rodados por entre cólera e barulho, como na invasão do plateau de À nos amours (Aos Nossos Amores, 1983), que espantou actores e personagens. E quando o apaziguamento parecia ter chegado, na atribuição da Palma de Ouro a Sous le soleil de Satan (Sob o Sol de Satanás, 1987), ao invés da aclamação, Pialat recebeu o confronto sob a forma de uma pateada. Uma rejeição que o seu filme antecipara; quando Depardieu é expulso da sua paróquia, recebe de Maurice Pialat, um sacerdote mais velho, o seguinte ditame: “Você não nasceu para agradar. O mundo odeia o seu desejo de poder. Quando vencerá a desconfiança e a oposição dos outros? A negação de todos? Nunca irão deixá-lo.”
Vítor Ribeiro

É para mim difícil separar La gueule ouverte (A Vida Íntima de Um Casal, 1974) de dois contos de Annie Ernaux, Um Lugar ao Sol e Uma Mulher. Não foi apenas a coincidência temporal entre a leitura da obra de Ernaux e a (re)descoberta de Pialat num ciclo da The Criterion Collection, que tornou estes objectos tão íntimos. Foi antes a crueza, o retrato social, os temas e a terna honestidade de ambos, que une tão profundamente o universo literário de Ernaux ao universo cinematográfico de Pialat. Ambos retrataram a mesma França, o mesmo tempo cronológico, as mesmas gentes, a mesma classe social e os mesmos problemas. Conheciam-se e Pialat quase que adaptou um romance de Ernaux, mas mais do que este contacto, acredito que estamos perante um laço mais abstracto, uma afinidade electiva. Há ainda um aspecto comum a ambos: são de certa forma figuras malditas, visto que Pialat era detestado pelos seus pares [basta relembrar o discurso de Pialat em Cannes, ao receber a Palma de Ouro pelo filme Sous le soleil de Satan (Sob o Sol de Satã, 1987)], assim como Ernaux era detestada pelas feministas que sempre encararam a obra desta escritora como desvario de “doméstica”.
Mas falemos de Pialat e desta obra em concreto. Pialat foi sempre um realizador excepcional do primeiro ao último filme. Foi por isso difícil escolher um plano de Pialat, apesar do impacto que este filme e L’enfance nue (A Infância Nua, 1968) tiveram em mim. No entanto, se a escolha acabou por recair em La gueule…, e em particular sobre este plano (quase) final, é porque este filme é talvez a obra onde Pialat sublimou o seu modo de fazer cinema. Cada filme parece um pedaço de um momento autobiográfico, mesmo quando se trata de abordar a figura de Van Gogh ou de um inspector da polícia. Porque há uma proximidade de tal ordem funda com o universo que cada filme aborda, com as pessoas e os gestos que o povoam, com as situações e os acontecimentos que se desenrolam, com o trabalho de câmara analítico, que várias vezes julgamos que esta capacidade perscrutadora de Pialat só existe porque este foi arrancado à crueza da vida. É talvez por isso que ainda hoje haja anticorpos em relação ao universo de Pialat, porque nem sempre se está preparado para o rude golpe que cada filme representa. Mas Pialat é mais do que isso, pois a honestidade e a ternura do seu cinema foram sempre superiores à implacabilidade do mesmo. Pialat foi um realizador justo e íntegro, mesmo quando a doença e a morte invadem o ecrã. Exemplo disso é este filme, a relação do personagem com a mãe e sobretudo uma ética de filmar que em momento algum se torna voyeurista [e podíamos dar um filme que se encontra nos antípodas deste gesto, que é o obsceno Amour (Amor, 2012) de Michael Haneke, tão celebrado e aclamado], respeitando sempre a dor e a morte em todos os seus momentos (não os esconde, mas nunca os explora e é essa a coragem do cinema de Pialat).
Bernardo Vaz de Castro

Nenhum outro filme mapeia, para mim, a obra do homem que dizia não querer ser amado do que Loulou (1980). A memória de o ver pela primeira vez (especialmente numa idade formativa) é a memória da infiltração da ternura. Quando o revi uns anos mais tarde, revi a ternura e a infantil doçura e não o que estava à minha frente, em toda a sua vulgaridade. Mais pintado do que iluminado, Loulou conduz um absoluto e constante agarrar, entrecruzar e libertar de corpos num mundo de esmagadoras contradições. O esqueleto pode ser a narrativa classista, mas o radicalismo prende-se nas sinapses dos acordares sexuais de protagonistas que Pialat acompanha vislumbrado, e por vezes até segue, ora por quartos ora por becos parisienses. Em poucas palavras, a bela burguesa Nelly (Isabelle Huppert) deixa o marido André (Guy Marchand) pelo homem-besta/criança proletário Loulou (Gérard Depardieu). Numa série de pequenos episódios, Nelly vai saltando de um para o outro e a entropia de Pialat instala-se pelo triângulo. Até que, algures entre o coma dos dias e a melancolia da vida nocturna, algo acontece que tanto pára Nelly e Loulou de se empurrarem um ao outro contra cantos, como faz com que o façam ainda mais.
Muitos planos poderia ter escolhido, mas vi neste a composição comportamental de Pialat do casal heterossexual (as luzes branco-azuis propagam o abandono). Um fosso ainda maior que as classes sociais são as políticas sexuais que separam um homem e uma mulher. Aqui, o marido que a olha, olha-a depois de lhe bater na cara num ataque violento de ciúmes. Frustrada com tamanha misogínia, Nelly rir-se-á dele, mas primeiro vira-lhe a cara por segundos, morde as unhas suavemente e imaginamos nós que imagina uma vida que não a sua. Mais à frente no filme, enquanto andam pelas ruas de Paris, este quer saber sobre como é viver no hotel com Loulou. “Fecho a porta e esqueço o mundo”, Nelly diz-lhe. Loulou é precisamente a permanência e evolução desse lamento, embrulhado no toque mais sensual, ainda que bruto mas também enfarinhado, das histórias dos errantes cheios de alma que nunca começam nem acabam. Pialat faz das tripas o coração.
Susana Bessa