A primeira longa para cinema de Tsai Ming-liang é um olhar de empatia perante a alienação dos jovens em Taipé. Um filme de gente que se (per)segue e desencontra entre espaços confinados, estradas movimentadas e águas transbordantes.
Nascido na Malásia no seio de uma família chinesa, Tsai Ming-liang estudou cinema em Taiwan e iniciou a sua carreira atrás das câmaras na ilha, realizando telefilmes. De certa forma, Qingshaonian Nezha (Rebels of the Neon God, 1992) é um filme-ponte entre os trabalhos de Tsai para televisão e as obras de cinema mais radicais que veio a realizar depois: em todos a mesma empatia sem julgamentos perante humanos à deriva na cidade: os excluídos, os desamados, os invisíveis.
O filme gira em torno de três figuras principais e de outras três à sua volta: o estudante solitário Hsiao Kang (Lee Kang-sheng), o marginal Ah Tze (Chen Shao-jung) e Ah Kuei (Wang Yu-wen, a figura feminina do trio), a que se junta o “mano” de Ah Tze, Ah Ping (Jen Chang-bin), e os pais de Hsiao Kang. Tal como no filme seguinte de Tsai, Aiqing wansui (Vive l’Amour, 1994), que voltou a reunir Lee Kang-sheng e Cheng Shao-jung em personagens com alguns paralelos com Qingshaonian Nezha, aqui temos um grupo de residentes da cidade num estado mais ou menos permanente de drifting. Há encontros sexuais fugazes e desapaixonados, actos de violência para articular desejos reprimidos, e a cidade como espaço de desencontros.
Aqui temos um grupo de residentes da cidade num estado mais ou menos permanente de drifting. Há encontros sexuais fugazes e desapaixonados, actos de violência para articular desejos reprimidos, e a cidade como espaço de desencontros.
Tsai disse, numa entrevista, que fez este filme porque estava fascinado com os miúdos das arcadas de jogos de Taipé que não conseguiam parar de jogar. Um desses miúdos era Lee Kang-sheng, que se tornou o mais próximo e constante colaborador de Tsai, entrando em todos os seus trabalhos para cinema. O nome da sua personagem em Qingshaonian Nezha é, aliás, uma forma diminutiva do nome próprio de Lee, o “Pequeno Kang” (Hsiao [Xiao] Kang). Mas há outros actores que se tornariam habituais nos filmes de Tsai, incluindo Lu Yi-ching e Miao Tien, aqui como pais (sendo Miao Tien, ele próprio, uma ligação a um outro cinema taiwanês, tendo entrado em clássicos como Xia nü [A Touch of Zen, 1971], de King Hu). De referir também a música de Huang Shu-jun, que se repete em diferentes alturas do filme e cria um certo ar de suspense, a combinar muito bem com o retrato nocturno da cidade.
O título original Qingshaonian Nezha pode traduzir-se como “Nezha adolescente”. O príncipe Nezha é uma divindade chinesa referida em diferentes partes do filme. Uma das suas peculiaridades é a sua relação destrutiva com o seu progenitor, e essa complexa relação parental é uma das linhas temáticas da película. A mãe de Hsiao Kang acredita que o filho é uma reincarnação de Nezha, e Hsiao Kang irrompe numa dança entre o (falsamente) possuído e o catártico em dois momentos. “Nezha esteve aqui” é também a inscrição “assombrada” que deixa no passeio quando vandaliza a motorizada de Ah Tze – na qual grafita outra palavra de temor: AIDS (pouco depois deste filme, Tsai realizou um documentário para televisão sobre a experiência de homens com sida em Taiwan).
A ideia de assombramento é também evidente no caso insólito do elevador do prédio onde habita Ah Tze, que pára e abre as portas sempre no quarto andar, onde nunca está ninguém (“deve ter fantasmas”, diz Ah Kuei, cujo nome é um homófono de fantasma [kuei/gui]). Quatro é considerado número de azar na cultura chinesa e é comum os prédios não terem um andar listado como o quarto (piso). De certa forma, a aura de (má) sorte é também evidente nos episódios da vida destas personagens. Começando pelo estilhaçar do vidro da janela do quarto de Hsiao Kang (com um plano fantástico do sangue da sua mão a pingar sobre mapas de Taiwan no seu manual escolar, quiçá uma evocação das tragédias históricas da ilha), passando pelo quebrar do retrovisor do carro do pai de Hsiao Kang por Ah Tze, a sova que Ah Ping leva do gangue, ou a expulsão de casa de Hsiao Kang, entre vários outros. Estes azares são todos, no entanto, espoletados pelas próprias personagens. Já Tsai olha para a sua monumental solidão com uma compreensão sem limites.
Mesmo que não tenha nascido na cidade, Tsai é um cineasta de Taipé. A cidade é muito mais do que um espaço onde se desenrola a acção. Para um realizador associado a um cinema lento, o movimento da cidade ecoa pelo filme: das suas estradas cheias de scooters (com cenas muito bonitas que antecipam Zui hao de shiguang [Três Tempos, 2005] de Hou Hsiao-hsien) ao asfalto esburacado durante a construção do metro, da cram school (centro de explicações e de preparação de exames) à banca de comida de rua (onde Hsiao Kang e o pai comem… melancia), passando pelos espaços nocturnos por excelência. Sim, porque Qingshaonian Nezha é um filme sobre rebels without a cause que live by night (as piscadelas de olho cinéfilas estão lá, veja-se o poster de James Dean no salão de jogos). As arcadas de videojogos, o ringue de patinagem onde Ah Kuei trabalha, o restaurante do mercado nocturno onde Ah Kuei, Ah Tze e Ah Ping confraternizam, os love hotels, e o ainda mais esquálido centro de phone dating no qual homens atendem chamadas de call girls literais onde termina o filme (Hsiao Kang não atende o telefone e vai embora – um acto de desistência ou de resistência?). Juntando ainda o sempre inundado apartamento de Ah Tze, podemos ver todos estes espaços como “cenários” das suas vidas sem rumo: em busca de uma ligação emocional que ou não chega a acontecer (Hsiao Kang e Ah Tze) ou é demasiado fugaz e não correspondida (Ah Tze e Ah Kuei). É interessante notar que embora o filme se passe quase todo na zona de Ximending, conhecida pelo seu entretenimento jovem e também historicamente associada aos seus cinemas, a mais poderosa evocação de cinema é verbal, quando o pai de Hsiao Kang sugere irem ao cinema como antes – plano interrompido quando o seu carro é vandalizado por Ah Tze. O idílio nostálgico do cinema é, pois, apenas imaginado. Tudo o que fica são os objectos electrónicos despersonalizados, os gadgets de um mundo de novos néones (as motherboards das máquinas de jogos, as cabines telefónicas que Ah Tze e Ah Bing roubam, o piscar do telefone, etc) onde o contacto humano é despido de verdadeiro sentimento e reduzido a interacções transacionais, pese embora o desejo por algo mais que se descortina nas figuras como Hsiao Kang e Ah Kuei.
A estrutura do filme é construída com uma montagem alternada, mais ou menos regular, entre as actividades de Hsiao Kang e Ah Tze, que apenas de falam uma vez num brevíssimo encontro. Esse paralelo é logo evidente no início do filme, antes dos créditos iniciais rolarem por volta dos 5 minutos. Hsiao Kang segue Ah Tze com a persistência de um stalker, mas acaba por ficar sozinho, seja fechado no salão de jogos ou no meio da rua. Quase como no poema de Mário Cesariny: “Em todas as ruas te encontro / Em todas as ruas te perco”.
Ligando as personagens sempre desencontradas temos, como é normal nos filmes de Tsai, a fluidez da água, seja a da chuva com que abre o filme ou a dos canos entupidos que inundam o apartamento de Ah Tze. Não que a água seja calmante, é apenas estranha, algo que Tsai exploraria de forma mais densa em trabalhos posteriores, incluindo em Dong [The Hole, 1998] – talvez a mais icónica representação cinematográfica das constantes chuvadas taiwanesas!