Um editor literário disse-me no outro dia que se sabe à partida quando um texto se distingue dos demais pela forma como musica o seu dizer. Disse-me que é sempre sobre como este escolhe cantar e não necessariamente sobre o que canta, e que na maior parte das vezes quem está do outro lado é que tem de aprender a ouvir, a descobri-lo. Super Natural (2022) é esse texto que se distingue no reino da criação, e que exige que aprendamos a ouvir. Parte astro composto de imagens que sozinhas só formam poemas imagéticos – assumem a forma de movimentos aos quais associamos um certo misticismo agridoce; o sal das lágrimas e a amargura da pungência. E parte portal quando as mesmas se vêem juntas em sequência. Nessa colagem que usa a repetição para findar, dá-se o desbloqueio e consequente aclarar de caminhos por percorrer num mundo pós-pandémico, em jeito de um decifrar dos nervos do cosmos que o talentoso jovem realizador, Jorge Jácome, já vinha a anunciar desde o hipnótico Flores (2017).
Numa altura em que esperamos todos um bocadinho de mais pela nossa vez de falar e passamos por cima do acto da audição, nunca houve tal objecto do cinema-imersão (é a janela e o espelho e a corrida para uma outra dimensão em simultâneo) a estrear nos cinemas comerciais em Portugal. A conquista do evento vê-se então confirmada quando o objecto se revela fármaco ansiolítico, depois de solicitar a nossa participação para se activar. Finalmente acontece esta oportunidade interactiva, propriamente dita. Finalmente o ecrã fala, pede, narra a queda na viagem como quem entra numa montanha-russa, sempre a querer sair de lá modificado, mas mais frequentemente que não, sem saber muito bem como ou até porquê.
As pulsões de Super Natural energizam o ensaio psicogeográfico do fim dos nossos tempos, das suas pós-verdades, e do seu futuro incerto. Aliás, parece questionar o que é o futuro sequer e como é que este se pode parecer.
Recordo-me bem quando o vi pela primeira vez. O filme mais badalado do Fórum da Berlinale em 2022 e a primeira longa-metragem de Jácome. Em casa, a ver a edição através do projector do meu quarto, uns bleeps alienígenas materializavam aquilo que nas legendas se podia ler: “I’m unstable. Always unstable. Hug me, baby. Give me a hug and don’t let me fall.” Esta era a entrada sensorial, onde o corpo deixa de ter um propósito, pensei na altura. E assim foi. Sob o signo da meditação guiada e do torpor do seu contágio, um que Jácome tem vindo a aperfeiçoar, o estado de solidez do corpo encontra a sua liquidificação e condensação mais cedo ou mais tarde. Quando pensei uma só mais vez no meu corpo, pensei como não o queria mexer porque mexer um só membro ou ter a tentação de nele tocar seria condicionar a existência naquele território invadido que se encontra algures entre dois batimentos distintos, entre duas batidas de asas. Atravessando formatos (de super 8 a câmaras de vigilância) e vestígios de outros tempos conjurados por cima das ondas mais ou menos envolventes de ciclos de sono, este fechava-se na água e oxigénio e plantas da ilha da Madeira, a partir de onde a vida se multiplica. Noutras palavras, nos inícios da humanidade de onde tudo brota.
Pensado enquanto uma peça de teatro num projecto criado com o Teatro Praga e a associação Dançando com a Diferença (que quer “promover a inclusão social e cultural através da dança”), as pulsões de Super Natural energizam o ensaio psicogeográfico do fim dos nossos tempos, das suas pós-verdades, e do seu futuro incerto. Aliás, parece questionar o que é o futuro sequer e como é que este se pode parecer. Para accionar essa deriva, avança sobre si mesmo enquanto investigação performática que, curiosamente, se perde assim que dela falamos – temos apenas a garantia de que espremidos somos água, tudo é, e que a ela é adicionada melancolia e desejo, e uma capacidade para entender. Pelo caminho, coloca a nu os princípios mais hiperbólicos (tão hiperbólicos que implodem) da naturalidade biológica, ambiental, social e política, e evidencia-se num não-contar transcendente, no sentido em que nada é desenhado por cima do filme. É a interdisciplinaridade da matéria a compor o que o filme é, sendo as imagens inscritas nele apenas revelações do seu sistema nervoso. Que é o mesmo que dizer: eis a gema de ovo da imagem em movimento.
(…) uma representação mais concisa de como se partem corações pelo mundo fora. A tristeza deglutida de todo um sistema solar.
Por exemplo, uma pitaia expele o seu trauma, há sereias cintilantes em terra e o mundo é visto através de uma bola de vidro agarrada por uma mão adornada com afiadas unhas de gel. Por cima das cores ricas e saturadas das paisagens sub-tropicais madeirenses (graças ao trabalho de Marta Simões), roça a contemplação do ocupar de um espaço isolado (utópico?), onde reside uma estridência que se agarra aos corpos que se encontram por perto. E é a partir dessa estridência que Super Natural se faz não apenas protesto colectivo de consciencialização, mas também uma representação mais concisa de como se partem corações pelo mundo fora. A tristeza deglutida de todo um sistema solar.
Ora através do delírio pacífico da introversão, ora pela simples anulação das forças que prendem e definem, Super Natural toca e confronta, e toca outra vez (sempre com vários intervalos para respirar) na ferida do fim dos tempos que nos devoram. O lugar onde as vidas ou se expiram e acabam perdidas ou se consomem de perda. Dentro da assim intitulada sopa primordial, onde os encontros entre espécies e a presença humana possibilitam a troca e transferência de corpos até estes se esfumarem pela paisagem fora, Jácome parece querer que olhemos de frente para estas ruínas. E o exercício parece ser um da empatia das empatias, a mais completa, a que ainda não foi sequer, temo eu, inventada. Então avança e abre o diálogo entre intérpretes e espectadores, apagando fronteiras para que as próprias escalas e unidades de medida se possam evaporar, e descobertas possam ser realizadas. Quando as luzes da sala despertam para a (ir)realidade da memória multi-sensorial habitada pelo espectador, o sonho pode diluir-se, mas nunca o sonhador esteve tão desperto.
Super Natural é um depósito de amor febril, que pensa a recriação das suas raízes em comunhão com todos os seres, do reino aquático, ao telúrico, ao atmosférico. Pelo meio, alerta para o corpo deteriorado do cinema que vai à boleia dos enigmas invulgares e das profecias da viagem purificadora onde tudo cabe, e onde haverá sempre espaço para as fugas e as construções.
★★★★☆