“Loving” is an ongoing process, as opposed to “love,” which as everybody knows is an eternal and unshakable commodity much valued by poets. But Shelley never changed a diaper, and Keats never commuted from Westchester, and loving in the world of 1970 America is perhaps a process of survival, not affirmation.
Crítica de Roger Ebert a Loving (Traições, 1970), de Irvin Kershner [15 de Outubro de 1970]
I’m not living with you. We occupy the same cage, that’s all.
Maggie em Cat on a Hot Tin Roof (Gata em Telhado de Zinco Quente, 1958), de Richard Brooks
“On ne meurt d’amour qu’au cinéma” – assim corriam as palavras a que Michel Legrand deu música em Les parapluies de Cherbourg (Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, 1964). Ama-se o cinema apesar de ele aparentar ser, por vezes, um ser mentiroso que se dedica a vender imagens de amor arrebatado, de sentimentos tão fortes que podem conduzir à morte se não correspondidos, de paixões tão intensas que criam uma ideia errada daquilo que pode ser a realidade. Mas esta “mentira” não existe apenas neste tipo de emoções de tudo ou nada, existindo também num simples (ou não tão simples) final feliz. Se um casal é feliz no momento que imediatamente antecede os créditos finais, isso significa que será feliz para sempre. Será que sim? Preston Sturges foi o primeiro a perguntá-lo explicitamente, enquanto brilhantemente nos trocava as voltas com um início que é um final, confusões nunca explicadas e irmãos gémeos que potenciam a possibilidade de finais felizes para os descasados. O filme chamava-se The Palm Beach Story (Um Marido Rico, 1942).
The Happy Ending (Amar Sem Amor, 1969) tem também a música de Michel Legrand e tem também uma brecha de realidade, que aqui se chama Jean Simmons. A actriz era, na altura, esposa do realizador Richard Brooks, que confessou ter-se inspirado largamente na mulher para criar a personagem Mary Wilson. Quanto ao elemento real, talvez tenha sido demasiado forte ou demasiado amargo, o que explica o falhanço comercial do filme. O público americano, e em particular o público feminino, não estava preparado para ver-se assim retratado, de forma tão crua. O ideal americano do casamento e da vida desafogada, rodeada de todos os confortos e bens de consumo, ia nu e ainda ninguém tinha dado por isso.
Os primeiros nove minutos do filme são território conhecido, são a história de amor de tantos filmes de Hollywood [num cenário de neve que podia ser o de Love Story (História de Amor, 1970), a lareira acesa, a ida ao drive-in]. São nove minutos de silêncio, nove minutos apenas habitados pelo amor, que terminam com Mary no altar ao lado do pai [neste caso, Spencer Tracy em Father of the Bride (O Pai da Noiva, 1950)], misturando-se a Jean Simmons do cinema com a Mary Wilson que no cinema colheu o seu ideal de amor. Mas aquilo que é uma manhã rotineira da vida depois da boda está a anos-luz desses primeiros minutos, ainda que só tenham passado 16 anos desde o casamento de Mary e Fred (John Forsythe). A vida matinal de Mary é feita de roupão, preparando o pequeno-almoço da família, fumando, servindo-se de uma bandeja de comprimidos. Mary inicia um filão a que se irão juntar outras donas de casa mais ou menos desesperadas de filmes como Diary of a Mad Housewife (O Diário Íntimo de Uma Mulher, 1970), Loving (Traições, 1970), Summer Wishes, Winter Dreams (Desejos de Verão, Sonhos de Inverno, 1973), An Unmarried Woman (Uma Mulher Só, 1978), Kramer vs. Kramer (Kramer Contra Kramer, 1979) ou, mais tardiamente, The Ice Storm (A Tempestade de Gelo, 1997). E talvez aquela mulher que mais se aproxima de Mary seja, afinal, uma dona de casa chamada Margot, num filme de Rainer Werner Fassbinder chamado Angst vor der Angst (Fear of Fear, 1975).
Perante um marido demasiado absorvido pelo trabalho (e que deixa que o trabalho absorva toda a sua vida, até mesmo escolhendo os seus amigos, enquanto itens “dedutíveis”) e uma filha que a trata com desprezo, Mary refugia-se no seu único aliado fiel, o cinema. Já no seu tempo de namoro, numa ida ao drive-in, Mary chorava perante um final feliz, demasiado emocionada. Mas este encanto continua a assombrar a sua vida de casada, uma promessa daquilo que podia ter sido, mas que não chegou a concretizar-se. A escolha das mulheres do cinema visualmente citadas e das obras que as representam é, na verdade, absolutamente certeira, assentando em A Free Soul (Uma Alma Livre, 1931) e Susan Lenox (Her Fall and Rise) (Cortesã, 1931), obras-tipo do género Pre-code, com Norma Shearer e Greta Garbo como mulheres fortes, que vivem o amor nos seus próprios termos, em particular a Susan Lenox de Garbo, que tem em si um misto de ternura e indomabilidade que a leva a passar directamente da entrega total para a vingança depois de ser humilhada pelo homem que amou de coração aberto. O seu desejo de magoar será tão forte quanto foi o seu desejo de amar. As escapadas de Mary fazem-se também para Casablanca (1942), em particular para o segmento de Paris – o segmento que é também uma fuga ao próprio Casablanca, o tempo idílico antes dos problemas, antes da interferência da guerra que Ilsa (Ingrid Bergman) tanto odeia.
A realidade do casamento longe de Hollywood não é mais do que uma aliança de ouro que nem sequer é um bem transaccionável, porque ninguém está disposto a comprar as desilusões amorosas de outra pessoa. “Só nos filmes é que as pessoas são felizes” – diz, a dada altura, Agnes, a personagem principal de Lansame Tage (em português, “Dias Lentos”), o livro que Fassbinder adaptou ao cinema em Angst vor der Angst. Os dias lentos de Mary são afogados em vodka Smirnoff, o suco que ela esconde em frascos de perfume. De modo presciente, a publicidade da Smirnoff da década de 60 era, aliás, dirigida de forma muito específica às mulheres, transmitindo uma ideia de cool associada a uma vida doméstica mais relaxada e confortável, a novos hábitos de classe média como o brunch de fim-de-semana com os amigos, em que o Screwdriver era rei.
O casamento não é mais do que uma gestão do tempo. Do tempo de amar, e daquilo que existe fora desse tempo. O tempo infindável que Mary e outras mulheres passam no salão de cabeleireiro, no instituto de beleza, no ginásio, tudo em nome da beleza que foge, do desespero em permanecer jovem, redunda numa guerra já perdida. Elas são zombies que ali estão a matar o tempo, antes de irem para casa matar mais tempo, acreditando que a beleza é um activo que lhes permite assegurar o amor. Também Ash Wednesday (Porque morre o nosso amor?, 1973) mostrou a violência do bisturi na cara de uma mulher – uma mulher que, acordando após a operação, se tornou Elizabeth Taylor –, justamente procurando recuperar a beleza dos seus vinte anos como forma de “segurar” o marido, uma violação do corpo que em The Happy Ending está no tubo que os enfermeiros forçam no esófago de Mary, depois de ela tentar o suicídio.
Num casamento em que tudo é mediano e previsível, é difícil identificar o problema.
As notícias de outras guerras, que não esta luta infrutuosa contra o tempo, chegam pela televisão e pelo jornal e servem apenas para ir marcando o calendário, sendo tão vazias quanto os dias de Mary. As verdadeiras notícias estão ali, naquela casa, naquela terra de ninguém chamada cama, no amar sem amor daquele casal. Mary acaba por ser uma mulher encerrada numa gaiola, sem escapatória. Fred aparenta ser um marido dedicado, sempre preocupado com a mulher, agindo de um modo que seria próprio de um marido que ama a sua mulher (até mesmo a sua secretária o admira como um marido ideal). Mas o carácter insistente das suas acções rapidamente assume a forma de perseguição, deixando Mary cerceada nesse permanente controlo através de chamadas telefónicas para todos os locais que ela habitualmente frequenta (só mesmo o barman lhe é fiel, dizendo desconhecer o seu paradeiro). Um olhar mais atento poderá descortinar no rosto de Fred um laivo de satisfação quando Mary enfrenta a humilhante provação na esquadra de polícia.
Este é um casamento em que não acontece nada de extraordinário – “just…, just…”. Num casamento em que tudo é mediano e previsível, é difícil identificar o problema, não se trata apenas da infidelidade de Fred. Qual o papel da mulher quando a estabilidade financeira já lhe permitiu ter uma empregada que trate da casa e quando a filha já está criada e se tornou independente? Como deve ela ocupar os seus dias, ela que desistiu da sua própria formação para se dedicar integralmente ao marido? É um arrastar-se por locais povoados de mulheres – os salões de beleza, uma indústria dependente de e a sustentar a instituição do casamento. Matar o tempo, até que seja tempo de ir para casa matar mais tempo. Demasiado tempo, demasiados comprimidos, demasiado vodka, demasiados gastos. Fred tem o seu trabalho, e os seus amigos são os seus clientes, uma promiscuidade “fiscalmente dedutível”. E onde fica Mary no meio de tudo isto?
A fuga a esta prisão tem como destino as Bahamas, um sonho vendido por um anúncio publicitário de uma revista, daqueles sonhos que se compram com dinheiro. Afinal, a publicidade é a melhor aliada do negócio do casamento, o casamento que alimenta toda a economia de um país – os empréstimos, as férias, os carros, as prendas para os amores legítimos e ilegítimos. Esse excurso por Nassau gera os seus frutos, uma oportunidade para que Mary possa reequacionar a sua existência por direito próprio, mas não sem dois momentos que ferem. Desde logo, a sedução pelo galã de sotaque italiano que afinal não passa de um hustler em maré de azar, rapidamente deixando cair a máscara quando se apercebe que Mary não tem dinheiro, e, mais tarde, o encontro com um jovem casal feliz, provavelmente na sua lua-de-mel, que pede a Mary uma fotografia, um instantâneo da sua felicidade.
O casting em The Happy Ending é tudo menos aleatório (roçando mesmo a perversidade), desde logo, como já referimos, no que se refere à própria Jean Simmons, passando pela sua empregada doméstica [a sempre entusiasmada e entusiasmante Nanette Fabray, que parece ser a cereja no topo do cocktail diário de tranquilizantes, analgésicos, estimulantes, um raio de sol convocado pela cinéfila Mary a partir de The Band Wagon (A Roda da Fortuna, 1953)], passando ainda pela sempre sensata e cerebral Teresa Wright que, como mãe, não sabe o que fazer dos problemas da filha-mulher-casada, e terminando na escolha de Bobby Darin para o papel de prostituto, ele que com Sandra Dee foi a imagem do casamento americano de sonho da década de 60.
A passagem por Nassau significa para Mary encontrar a sobriedade, encontrar as suas respostas. Esse caminho passa por abandonar a aparência de felicidade – a cegueira de Fred que acredita verdadeiramente que todos os seus amigos são felizes no casamento, que não percebe por que motivo apenas o casamento dele e de Mary não funciona. Não há uma resposta unívoca, cabe a cada um encontrar a sua resposta. Talvez Flo (Shirley Jones), a antiga colega que Mary reencontra, que já tinha desistido de tentar a felicidade com base num casamento, esteja certa ao apostar tudo numa derradeira oportunidade, acreditando que a relação com Sam (Lloyd Bridges) poderá ter futuro. Ou talvez não, talvez esteja apenas a gastar as suas últimas energias com uma instituição que ela já tinha descartado. Não há garantias de final feliz.
Conferindo a palavra ao próprio Richard Brooks [in American Film, 1977]:
“O público disse na altura: A heroína regressa à escola no final? Ela não volta para o marido? O que é que aconteceu? Não foi a infidelidade que os afastou? Eles não eram demasiado ricos. Não eram demasiado pobres. Não tinham demasiados filhos. Qual foi o problema? O verdadeiro problema era o tempo. O tempo destrói o amor e o casamento pode destruí-lo. As condições mudam. As obrigações mudam. Este é o problema das mulheres que se tornam esposas. Já não estamos no tempo dos pioneiros, quando a mulher fazia o mesmo que o homem, atravessando o país numa carroça coberta. Ela tem demasiado tempo livre. O que é que ela faz com o seu tempo? Tenho tentado dizer que a relação amorosa tem três faces. O homem tem a sua personalidade, a mulher tem a dela, e juntos formam uma terceira personalidade. Se um deles abdicar da sua própria personalidade, a terceira personalidade não existe. Era isso que eu queria exprimir no filme. Ninguém queria vê-lo. Mas estou contente por tê-lo feito.”