Black terror descended like bats, sucking her breath away, and dry lightning flashed across her skin. She gasped for air and sweat streamed over her forehead and back.
Train Choir, dentro de Livability: Stories, de Jonathan Raymond
Se olharmos de perto para os filmes que se fazem mecanismos dos respirares das vidas-relógio (daqueles que adorariam sucumbir à cadeia de miserabilidade que os enforca, mas não podem), estes atingem o seu auge nos momentos transitórios. Chamemos-lhes entretantos, porque não são pausas propriamente ditas, mas também não as deixam de ser. É obrigatório que sintamos que a acção ainda decorre, mas que este é o caso em que o passageiro dela precisa de um segundo para a fazer aguentar. É neles que o verdadeiro peso do inferno é confirmado e atirado para o espectador, pois são estes que afastam o exercício das engrenagens plásticas.

Há um respirar fundo / fechar de olhos que antecede o bater da porta de um cacifo e antevê a luta que aí vem. Há um desligar da rádio quando uma voz proclama “não conseguimos fazer face às despesas”. Há um adormecer alucinado na banheira. Há um beijo previsível a alguém que simplesmente ajuda. Um lamento na forma como a palavra évidemment é pronunciada à resposta da amiga que diz que irá voar de Londres para Paris por causa das greves. E mais tarde há uma pequena sequência que se compõe de dois movimentos contrários, movimentos estes que forjam o notre social e político desta segunda longa-metragem do Canadiano Éric Gravel. Em frente a um espelho, antes de mais um dia de impossibilidades, Julie (Laure Calamy), coloca pó na cara com uma puff de algodão. Perante o seu reflexo no espelho e o movimento de feitura, lágrimas começam a cair-lhe pela cara abaixo e não querem conseguir parar, desfazendo todo o trabalho realizado. Julie persiste e limpa-as com um lenço de papel, sem nunca tirar os olhos da mulher que vê reflectida no espelho, não para “inflamar a auto-comiseração, mas porque queremos sentirmo-nos testemunhas do nosso desespero”, como me lembro de ler em Bluets (2009, Maggie Nelson).
Assim o é. À Plein Temps (A Tempo Inteiro, 2021), vencedor de prémios César e Orizzonti no festival de Veneza, produz e acelera esse testemunhar do desespero retratando o medir de pulso de uma mãe solteira que vive numa aldeia na periferia de Paris, e trabalha na capital como gestora da equipa de limpeza de um hotel de luxo, durante uma greve de transportes públicos. Para além disso, é naquela mesma semana que Julie tem uma entrevista para um emprego que a colocará numa posição mais estável para ela e os filhos. A nossa projecção nela rapidamente virá, mas não sentiremos que está a acontecer. Quando nos junta a Julie, o filme junta-nos ao seu respirar durante o sono e ao sobressalto quando dele sai. Fará isto mais vezes. Não muito diferente de um galgo treinado para correr ao disparar do sinal da partida, também Julie parte. Tudo no mundo dela será, dali em diante, sobre as várias e diversas urgências (bem mais do que o normal) que surgem no balançar (e falhar) de obrigações sem poder recorrer aos habituais e vulneráveis recursos. Noutras palavras, À Plein Temps é sobre extracção. E é sobre como o filme a absorve gramaticalmente, deixando-nos a observar Julie durante 9 dias enquanto esta lida com o crescer dessa silenciosa violação.

Dentro do thriller de acção onde se camufla a retórica do filme social, Julie resiste. Esta será a palavra-chave. No ecrã, o fôlego da presença do actor vista através da lente anamórfica (em vez de esférica) do CinemaScope é inesgotável. As composições favorecem um acompanhar íntimo, ainda que distanciado (porque observacional), nesse monumentalismo deitado que vem ao nosso encontro de forma adrenalizada como se de um filme dos irmãos Safdie se tratasse. Mas esta imersão não sugere que as imagens foram roubadas por operadores de câmara como acontece em Good Time (2017), por exemplo. A magnética Laure Calamy, toda ela impacto e fluxo resistente à libertação, tanto corre com propósito na nossa direcção como deixa a câmara sobrevoar para reter as suas feições. Quando achamos que está prestes a sair de campo, Gravel volta sempre a re-enquadrá-la ou vai mesmo buscá-la outra vez. Nunca não estamos com Julie. O filme desde muito cedo, antes dos carros ocuparem todas as ruas de Paris juntamente com as manifestações (das quais ouvimos falar nos relatos da manhã da rádio mas nunca chegamos a ver), a olha maravilhado. A unidade de tempo que passa a ser praticada rapidamente se come viva. E este é só o início do microcosmos do desencanto e da indizível solidão, já para não mencionar também a decantação feita da cidade enquanto prisão. Pensemos na relação entre a precariedade e a medição de tempo. Tudo o que Julie terá de fazer será agarrar o que foge do seu controlo e viver com a amargura da causa-efeito de tudo o que acontece ou não acontece, que é essencialmente e assim mesmo dito no que se baseia a luta do dia-a-dia. Poderia perfeitamente não funcionar, tendo em conta a hipérbole de elementos. Mas não é distópico dessa forma. As suas imagens são penosas e mundanas e vão de encontro ao real.
(…) não há como começar do início e é demasiado fácil alguém sem uma rede de apoio ver toda a sua existência a capotar. A figura da mulher invadida socialmente que corre avenida abaixo é o símbolo da economia moderna enquanto batalha impossível de vencer.
Segunda-feira. Julie levanta-se ainda antes do anunciar da alvorada, acorda os filhos, tenta tomar banho (o esquentador não funciona), desiste de tomar banho, faz o almoço para levar enquanto os filhos tomam o pequeno-almoço e as notícias inundam a cozinha (“…comboios substituídos por autocarros…”). Deixa os filhos com a Madame Lusigny, uma vizinha idosa que ficará ao cargo deles até ao anoitecer. E lá começa a corrida. Comboio, autocarro de substituição apinhado, outro comboio, o dia nasce. Paris. Antes de entrar no hotel, tem uma chamada do banco sobre a hipoteca da casa. Encontra uma colega, pede-lhe que a substitua no dia seguinte para que possa ir a uma entrevista de emprego. Há uma nova empregada para treinar esta semana. O dia de trabalho manual e de supervisão corre a um ritmo de marcha e ainda lhe falta entregar os relatórios que não estão feitos. Pede por quinta, na quinta entregá-los-á. Parte e encara a cidade mais uma vez. Agora tem que regressar. Liga ao ex-parceiro. Precisa da pensão de alimentos que ele ainda não lhe fez chegar. Passa numa loja. O filho faz anos no sábado. O que lhe comprar? Consegue apanhar um comboio, vai buscar os filhos a casa da Mme Lusigny. Continua a não ter água quente. Coloca os filhos a dormir e prepara-se para a entrevista do dia seguinte.
Nos restantes dias, a garantia dos serviços mínimos perde-se. Tal como o esquentador, o carro de Julie já não funciona há algum tempo. Através de boleias, uso clandestino e dispendioso do táxi do hotel e o eventual aluguer de uma carrinha, Julie carrega nos ombros uma missão Jenga, onde a posição em que as peças se fixam é crítica. Basta uma ser colocada em cima da torre um pouco mais para a esquerda do que deveria, que tudo cairá de seguida. Calamy na verdade faz isso mesmo com o filme. É ela que evoca e carrega consigo as nuances (da culpa, da vergonha, da fúria) nos gestos identitários de uma mulher com um mestrado em economia e uma carreira em pesquisa de mercado na indústria alimentar sem tempo para se reinventar quando a empresa fecha. Quatro anos depois, encontramo-la onde tudo é trabalho, e o desgaste é sempre emocional, mas a força que a mantém no caminho desejado é uma de habilidade física, que vai buscar adrenalina ao medo (de quem vive salário a salário) em vez de fazer uso da queima de energia.


Dito isto, o que À Plein Temps sabe fazer com tanto vigor reconstitui os passos de Wendy and Lucy (Wendy e Lucy, 2008), de Kelly Reichardt. Filmes profundamente diferentes, no sentido em que um sussurra e o outro grita, mas ambos articulam que não há como começar do início e é demasiado fácil alguém sem uma rede de apoio ver toda a sua existência a capotar. A figura da mulher invadida socialmente que corre avenida abaixo é o símbolo da economia moderna enquanto batalha impossível de vencer. Empunhando o mesmo lavrar capitalista, Gravel não desperdiça um plano, um segundo.
Julie somos todos nós, activos mas não presentes, e este é o cinema da sua alienação, uma ode à solidariedade do trabalhador na sociedade neo-liberal. (…) ela é não é um corpo que se força a. Esse limiar já foi ultrapassado. Ela é um corpo que não pode parar.
Associado a isto está um pormenor curioso. À Plein Temps explora uma ambição que é, por si só, um traço particularmente americano num filme que respira a tradição do cinema da denúncia social francesa (recordemos Stéphane Brizé). É “feliz” a incessante procura por um outro trabalho enquanto se lida com a letargia do que já se tem. Especialmente porque Gravel nem começa por raspar a superfície dos vários nervos exploratórios do automatismo laboral na indústria da limpeza como se viu recentemente em Ouistreham (Ouistreham-Entre Dois Mundos, 2021), de Emmanuel Carrère. Também não o faz em relação aos contornos das greves da indispensável rede de transportes públicos que assolam os mais vulneráveis. Nem comenta a relação entre os grevistas e os trabalhadores. É-nos apenas evidenciada a exigência da invisibilidade, esse apagar da identidade, o que para uma empregada de limpeza de um hotel onde não há margem para erro implica até esconder o odor corporal e viver segundo as exigências ditadas pelo relógio. A meta para Gravel e Calamy passava por conseguir colocar no corpo do espectador o volume do cansaço sentido aquando da interrupção do movimento rotineiro. Não há vestígios discursivos ou aplicações tópicas deles.
Enquanto filme de género centrado no individual, neste caso numa mulher branca e heterossexual não-religiosa (para todos os efeitos, as marcas do privilégio social), para localizar um colectivo bem mais vasto, ficamos suspensos na expectativa. Queremos que a heroína consiga sair ilesa daquela forca. A questão é, e Gravel deixa isso bem claro, não há como sair do presente sistema económico, ou seja não há como nos retirarmos dos quadros das nossas vidas ao mais pequeno faro de fluência, de soltura. Julie somos todos nós, activos mas não presentes, e este é o cinema da sua alienação, uma ode à solidariedade do trabalhador na sociedade neo-liberal. Enquanto cidadã que faz parte do mundo e dele extrai uma existência, ela não é um corpo que se força a. Esse limiar já foi ultrapassado. Ela é um corpo que não pode parar. Há uma enorme diferença e é nessa diferença e na figura de estilo presa ao Jardin d’Acclimatation, um parque de diversões que serve de pano de fundo para um recomeço com uma Julie tão ofegante como nos primeiros segundos do filme, que o soberbo À Plein Temps diz mesmo ao que vem. Tudo continuará a ser árduo e a devorar. E a sobrevivência de Julie depende demasiado do seu equilíbrio e determinação.

Enquanto eco, o filme reassegura quão importante é segurar aquela porta do comboio, deixar alguém com pressa passar, oferecer a outra metade da sandes do almoço ou o bilhete de autocarro, especialmente no desenrolar dos dias na cidade, onde estamos sempre em grande proximidade com a desigualdade. Uma pequena ajuda num momento de grande necessidade ajuda a desbloquear o dia seguinte. É de reflectir também que Julie é reconhecida na dureza daquele cenário citadino – da linguagem corporal à forma compacta de se vestir – mas isso não faz dela receptor de carinho ou cuidado. Quando a deixamos ao som de uma familiar jingle de carrosséis, o realizador esclarece que, na sobrevivência do permanente desfazer do dia-a-dia, temos que ter em consideração o papel crucial da sorte para quem não pode depender de ninguém a não ser de si mesmo. Num gesto imponente, À Plein Temps pergunta ad infinitum: como impedir as lágrimas de cairem quando se prepara a cara para mais um dia nas trincheiras?
★★★☆☆