O ar é algo que se sente sem ser visto. Interessante dinâmica essa no cinema, arte que vive de fazer mover a emoção dos espectadores, os seus sentimentos, através da palpabilidade da vida, do materialismo da acção e da existência. Pode pensar-se nessa dinâmica da visibilidade do invisível também através do fora de campo, do não dito, da elipse do que ficou por fazer/dizer. Dito isto, o ar desta quinta longa-metragem de Ben Affleck como realizador não podia ser mais palpável. Os Air Jordan, uns ténis customizados da Nike desenhados para a grande estrela da NBA, então com apenas 21 anos, Michael Jordan.
Affleck trabalha a partir de um argumento de Alex Convery que tem como finalidade mostrar-nos como a marca americana conseguiu ultrapassar as suas duas concorrentes nos anos 80 (a Converse e a Adidas) no patrocínio de jogadores de basquetebol, em particular pela visão de um profissional de marketing desportivo Sonny Vaccaro (Matt Damon) que quis apostar mais do que tudo e todos na ligação da marca à jovem estrela em ascensão.
Affleck colocou “barrigas artificiais” a todas estas personagens, com quem apetece estar, sendo elas a face visível e simpática desse ar que não se vê, que está escondido: o tal corporativismo sem dinheiro, o ideal da fama e da ascensão, no final a lógica da caridade…
Affleck decide esbater da história o rosto e a personagem de Jordan (surgindo apenas de costas ou perfil e em imagens de arquivo no final) numa decisão que tem algo dessa invisibilidade presente do ar. Mas as razões são mais prosaicas: “quem poderia acreditar que um ator a fazer de Michael Jordan seria de facto Michael Jordan?”, justificou o realizador. Brinquemos, mas há talvez uma noção, ainda que algo näif, de que a lenda (viva) de Jordan resiste à sua duplicação/imitação, como um bem absolutamente infungível.
Se não temos um filme biográfico sobre Jordan, resta saber o que potencialmente atrairia o espectador para uma história de fundo biográfico acerca de negócios de ténis e seus agentes? Duas respostas, uma menos e outra mais convincente. Primeiramente, há qualquer coisa de conta-me como foram os anos 80, que procura nas várias referências -por exemplo na montagem de abertura, a marcas, tecnologias, momentos históricos, músicas, filmes, uma vontade de revivalismo (Affleck tinha doze anos em 1984, ano em que se passa o filme) – um fundo algo orientador e nostálgico que, por sua vez, ajuda a localizar o espectador-tipo deste filme. Em segundo lugar, esta é uma história que procura dispor bem. Isto é, não há propriamente vilões à vista (mesmo o agente de Jordan, interpretado por Chris Messina, acaba por revelar-se bom) e o seu cerne é, afinal, a habitual apologia dos homens-de-sucesso, os lutadores que contra tudo e contra todos, cumprem as tábuas da lei do empreendedorismo corporativo, ascendendo ao céu da riqueza. Por outras palavras, por detrás do dinheiro envolvido (que, como Jordan, é o ar sem visibilidade, que parece esvair-se de campo por entre os planos) está a materialização da ideologia financeira.
Essa duplicidade não deixa de se afigurar como um dos elementos mais interessantes de Air (Ar, 2023). Por exemplo, na cena em que conhecemos a mãe de Michael Jordan (Deloris) fico emocionado com o olhar sereno de Viola Davis, o tom de voz transmitindo retidão e humildade. Algo que abranda um pouco o ritmo wiseguy vivido na empresa, sobretudo na dinâmica Matt Damon e Jason Bateman. Mas, perto do final, o mesmo tom e postura de Davis servem o seu discurso de justiça que se traduz afinal em reclamar ainda mais dinheiro a Sonny e à Nike. Ou ainda a banalidade da personagem de Damon, a sua barriga postiça de jantares de micro-ondas e obsessão nerd por basquete, que fazem canalizar a crença num desportista para uma jogada financeira. O que pretendo dizer é que Affleck colocou “barrigas artificiais” a todas estas personagens, com quem apetece estar, sendo elas a face visível e simpática desse ar que não se vê, que está escondido: o tal corporativismo sem dinheiro, o ideal da fama e da ascensão, no final a lógica da caridade…
Seria talvez excessivo dizer que parte desse ar que não se vê é Affleck, o realizador. E a sua personagem, o CEO, conduzindo um porche com 7 demãos de tinta e vestuário de jogging exuberante, acaba afinal por ser eloquente dessa espécie de discurso vazio, com assomos de boa vontade. Num filme cheio de corredores, conversas telefónicas e salas de reunião, talvez a chave do seu gesto esteja na congregação de uma “equipa” de bons actores, dos quais sobressai o velho conhecido Matt Damon [não deixei de me lembrar de Good Will Hunting (O Bom Rebelde, 1997) de Gus Van Sant que catapultou ambos para o estrelado, pelas personagens e pelo argumento que co-assinaram]. São eles que afinal de contas dão rosto humano à busca do dinheiro, são eles afinal que tomam o primeiro plano de um filme sobre concorrência empresarial. Se é verdade que isso não chega para fazer de Air um grande filme, permite-lhe ao menos espreitar um certo anacronismo, um sorriso pela ingenuidade na crença do capitalismo como jogo que equipa.