No movimento daqueles que dançam, a ausência de meta torna-se caminho, a ausência de finalidade torna-se meio, pura possibilidade de movimento, política integral. E a dançarina, que parece perdida na densa floresta dos seus gestos, na realidade dá secretamente a mão à sua própria aporia, e deixa-se conduzir pelo seu próprio labirinto.
Giorgio Agamben, O Gesto e a Dança (1992)
Entre 1958 e 1960, Kenneth Anger, o enfant terrible e “aprendiz de feiticeiro” da vanguarda americana, acompanhou Marie Menken, a “fada-madrinha” dessa geração de cineastas experimentais e underground, numa viagem por Espanha. Se o principal objetivo da estadia era, para Menken, a recolha de material para um documentário sobre os rituais funerários de um grupo de monges numa localidade da Andaluzia [o raríssimo The Gravediggers of Guadix (1961)], é também a esta viagem que devemos a génese de um dos seus “cine-poemas” mais conhecidos: Arabesque for Kenneth Anger (1961). Segundo o cineasta a quem este é dedicado, o filme foi realizado num só dia, durante uma visita ao palácio Alhambra de Granada, apogeu da arquitetura árabe na Península Ibérica. Bolex 16 mm em punho, Menken ter-se-á lançado à descoberta do local, filmando-o à medida que o percorria:
“Ela olhava pela câmara, uma câmara bem pequena, e eu guiava-a à medida que ela se deslocava para evitar que tropeçasse em alguma coisa ou caísse (…). Éramos uma espécie de duplo tandem, eu por trás dela, Marie como que dançando com a câmara. Ela tinha um olho dançante e um ótimo olho para os detalhes. E diria mesmo que o filme foi praticamente montado na câmara, porque ela parecia conhecer todos os pequenos detalhes que pretendia combinar como num puzzle.”
Kenneth Anger em Notes on Marie Menken (2006) de Martina Kudláček
Além de destacar a agilidade e a acuidade perceptiva de Menken, Anger comparou o processo de criação de Arabesque à construção de um puzzle; contudo, se os planos filmados “encaixam” naturalmente na montagem, isso não quer dizer que tenham seguido qualquer ordem de rodagem pré-estabelecida, já que Menken filma no impulso do momento, sem se preocupar com o resultado. À luz do testemunho de Anger, poderíamos comparar Arabesque a uma dança improvisada in situ, na medida em que os planos filmados se encadeiam na montagem como os passos de dança numa coreografia – coreografia essa que, por sua vez, restitui o itinerário das deambulações da cineasta na sua descoberta da cidadela árabe. Nesse sentido, o filme prolonga a exploração da “câmara somática” que Menken inaugurara na sua primeira curta-metragem, Visual Variations on Noguchi (1945), na qual o enquadramento móvel dos planos traduz os gestos da cineasta enquanto filmava as esculturas de Isamu Noguchi.

No início de Arabesque, é através de movimentos proeminentes executados com a câmara na mão – essas panorâmicas “livres, oscilantes e arrebatadoras” que Stan Brakhage considerou como revolucionárias para a sua geração (“Marie’s free, swinging, swooping hand-held pans changed all that, for me and for the whole independent filmmaking world”) – que são apresentados os diversos espaços e ornamentos de Alhambra, com as suas torres e os seus pátios, as fontes e as estátuas de pedra, os mosaicos zellige e as entradas de luz natural. Estes planos mais dinâmicos e voláteis, que denotam o entusiasmo e as hesitações da cineasta, alternam com outros planos fixos que, sem serem establishing-shots convencionais, fornecem uma visão global do complexo palaciano. Vista de fora, a arquitetura milenar de Alhambra impõe-se como austera e imperturbável; mas basta que a câmara penetre nas alcovas do palácio para que nos deixemos deslumbrar pela riqueza e delicadeza dos ornamentos que, repletos de arabescos geométricos e florais, conferem ao espaço um dinamismo inebriante.
Face a cada objeto inerte capturado pela objetiva e “reanimado” pelas operações cinematográficas (…), Menken reinventa as modalidades da sua presença no mundo: ela é olho, corpo ou máquina – pintora, dançarina ou cineasta – ou tudo ao mesmo tempo.
Para cada detalhe, Menken improvisa uma atitude corporal aliada a um movimento de câmara específico: panorâmicas verticais sobre as torres maciças sobrevoadas por pássaros, corridas precipitadas ao longo dos frisos esculpidos em baixo relevo ou das arcadas colunadas nos pátios interiores, piruetas vertiginosas sob os tetos abobadados, saltos no eixo para destacar os detalhes dos azulejos coloridos, agitações e ziguezagues da câmara transformando os mosaicos em composições caleidoscópicas e os focos de luz numa “chuva de estrelas”… Tal como fizera Germaine Dulac em Étude cinégraphique sur une arabesque (1928), Menken explora a polissemia do motivo gráfico, realçando a riqueza plástica e rítmica dos ornamentais arabescos através de movimentos sinuosos da câmara, ao mesmo tempo que experimenta atitudes corporais de suspensão ou de equilíbrio que evocam a figura coreográfica homónima. Porém, contrariamente a Dulac, que procurara capturar os movimentos invisíveis de arabescos luminosos e aquáticos encontrados no seu estado puro na natureza, filmando com a câmara fixa e com um mínimo de intervenção, os arabescos de Menken em Alhambra resultam sobretudo da forma como esta se desloca no espaço e como manuseia a câmara.

Transportada pela banda sonora de inspiração andaluza composta pelo japonês Teiji Ito, a montagem de Arabesque segue um ritmo rápido e frenético, sublinhado pela melodia alegre da guitarra e pelo matraquear das castanholas (no início do filme, ouvimos também uma flauta oriental que acompanha as panorâmicas mais longas). Em regra geral, os planos sucedem-se numa cadência acelerada, muitas vezes demasiado rápida para que possamos distinguir o início e o fim de cada movimento; mas, em vez de um efeito disruptivo, os tremores da câmara móvel e os solavancos patentes na montagem contribuem para criar uma impressão de espontaneidade e de fluidez contagiantes.
Arabesque conta também com alguns momentos de acalmia, em que o ritmo da música abranda e a câmara interrompe brevemente a sua corrida desenfreada. Nesses instantes de suspensão, adivinhamos a presença da cineasta por detrás da câmara através das leves oscilações do enquadramento, como se Menken recuperasse o fôlego antes de retomar o movimento. Para P. Adams Sitney, essas pausas têm o poder de “interromper a energia balética” do filme, absorvendo todo impulso cinético gerado pelo movimento da cineasta antes de o libertar novamente, fazendo-o reverberar no espaço. É o que acontece no final de Arabesque, quando a câmara de Menken avança com um movimento ambulatório irrefreável ao longo de uma galeria colunada, filmando de forma intermitente, por entre as colunas, o pátio onde se encontra a famosa Fonte dos Leões. A aceleração da imagem deve-se aqui a um efeito de time-lapse [a que Menken recorrerá novamente em Go! Go! Go! (1964)], de modo que as imagens parecem suceder-se a um ritmo sobre-humano, menos dançante do que no resto do filme, e que associamos mais facilmente ao caráter mecânico do dispositivo cinematográfico. Por fim, Arabesque termina com o plano de um repuxo que se “ergue” no centro do enquadramento, no qual se destaca a água cristalina em movimento sob um fundo azul, num clin d’œil óbvio a Eaux d’Artifice (1953) de Kenneth Anger.

À exceção da sequência final, em que Menken parece enfim avançar com um objetivo preciso, os seus movimentos são erráticos e incertos, aparentando serem menos guiados pelos elementos concretos que se insurgem no seu campo de visão, do que galvanizados por estímulos sensoriais vindos do fora de campo, que quase a fazem tropeçar ou desviar-se da sua trajetória inicial. Deslumbrada como uma criança num parque de diversões, Menken não se contenta em observar à distância, ela precisa de provocar o contacto com a matéria e a experiência do movimento, no imediatismo da filmagem – por exemplo quando, fiel ao seu fascínio pela ideia de “pintar com a luz”, ela agita e faz rodopiar a câmara diante das frestas nas paredes por onde entra a claridade, de forma a crivar o ecrã de pequenos rastros luminosos evanescentes.
“Fazer ver que ver é uma dança” (“Faire voir que voir est une danse”): através deste adágio lyotardiano, poderíamos definir a prática cinematográfica de Marie Menken – ou simplesmente a sua maneira de estar no mundo, atitude que P. Adams Sitney associou à figura whitmaniana da “criança visionária” em constante movimento, capaz de se projetar nos objetos sobre os quais o seu olhar se demora (“There was a child went forth every day, / And the first object he looked upon that object he became”); assim, o olhar de Menken terá incorporado as esculturas abstratas de Visual Variations on Noguchi (1945), as árvores e as flores de Glimpses of the Garden (1957), os espermatozoides vistos ao microscópio em Hurry! Hurry! (1957), as manchas de tinta de Drips in Strips (1961), as luzes de Natal em Lights (1966)… Face a cada objeto inerte capturado pela objetiva e “reanimado” pelas operações cinematográficas (movimentos de câmara, variações de velocidade, técnicas de stop motion, time lapse ou light painting), Menken reinventa as modalidades da sua presença no mundo: ela é olho, corpo ou máquina – pintora, dançarina ou cineasta – ou tudo ao mesmo tempo.
Também em Arabesque, o olhar-câmara de Menken “faz corpo” com o espaço arquitetural, inscreve-se nele tanto quanto o descreve, trançando deste modo novos arabescos para o olhar dos espectadores; estes são, através das imagens do filme – que é como quem diz através dos olhos de Menken –, convidados a percorrer a Alhambra coreografada pela cineasta, com Anger como “anjo da guarda” das suas deambulações. Mulher-criança visionária, ela parece corresponder perfeitamente à imagem da dançarina evocada por Agamben: ao aceitar abrir mão das suas inibições e perder-se na “floresta de seus gestos”, Marie Menken faz da própria possibilidade do movimento a força do seu cinema.
Arabesque for Kenneth Anger será projetado no dia 5 de Julho às 18h, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Programa de curtas-metragens experimentais (Maya Deren, Kenneth Anger, Marie Menken, Ian Hugo e Stan Brakhage), no âmbito do ciclo Histórias do Cinema – P. Adams Sitney: Sexo e espiritualidade na história do cinema.