Aconteceu, por vicissitudes várias, que me achasse a tomar uma água com gás, numa abafada tarde de sexta-feira, com João Botelho. A conversa passou, rapidamente, do profissional para o circunstancial e, de forma inesperada, sai da boca do realizador a questão, já foste ver o novo do Wes Anderson? O filme tinha estreado na véspera, tinha previsto vê-lo nessa noite, ainda não. Ah, mas tens que ir, vais-te mijar a rir. Estranhei. Embora goste por norma dos filmes do realizador norte-americano, nunca se deu (como com Hawks, Brooks, Allen, Lewis ou os Farrelly’s) que alguns dos seus filmes me fizesse gargalhar sequer. Sorrio apenas, com admiração.
O humor é talvez o mais idiossincrático dos nossos atributos. Rir ou gracejar é algo simultaneamente muito particular (o tipo de piada, o tom, o jeito, o tempo) e eminentemente universal (dir-se-ia que a espontaneidade do riso é uma forma de agregação social, capaz de transcender contextos e especificidades individuais). No entanto, não surpreende que para João Botelho, o cinema de Anderson, em particular Asteroid City (2023), o entusiasme. Percebo, agora, que há uma estranha afinidade entre os seus cinemas (a palavra hoje em voga é universos).
De facto, tanto Tráfico (1998) como A Mulher que Acreditava Ser Presidente Dos EUA (2003) têm qualquer coisa do cinema de Wes Anderson, antes do próprio ser o Wes Anderson em que entretanto se tornou. Repare-se nos enormes e repletos elencos, no humor seco, erudito e com tendência para o absurdo, na velocidade do texto, nas personagens caricaturais, no gosto pela irrisão nacional, na propensão para as composições pitorescas ou na expressiva (e expansiva) gama cromática. A isso junta-se, neste mais recente filme, a “questão do teatro” – uma peça dentro de um filme, dentro doutro – assunto muito caro a Botelho. É, assim, fácil de perceber porque razão achou tanta graça o realizador português a Asteroid City: há uma forma de reconhecimento e uma misteriosa sintonia estético-humorística.
(…) este seja um filme de auto-análise: Wes Anderson a filmar-se, a filmar o seu método, a sua escrita, a filmar a sua trupe, tudo em modo autoconsciente, como quem reflete sobre as suas limitações, os seus trejeitos, as suas tendências e obsessões.
Asteroid City marca, na obra de Anderson, um ponto de autorreflexão. Com The Life Aquatic with Steve Zissou (2004), o realizador chegou a um ponto limite na sua produção. Ali todo o seu cinema se apresentava, fresco e impante. Daí em diante, a variação ou a cristalização passaram a ser o modo de progredir – sem de facto sair do lugar. The Darjeeling Limited (2007) resulta pelo exotismo e pelo modo como se lança no mundo, mas as personagens e as situações são já ruminações do que vinha antes. Depois surge o desvio pelo cinema de animação, primeiro com Fantastic Mr. Fox (2009) e, uma década depois, com Isle of Dogs (2018), a partir do qual o olhar de Wes Anderson se reveste de uma qualidade obsessiva, desejosa de controlar tudo e todos (como é próprio do cinema de animação).
A experiência da animação infetou o cinema “de imagem real” do realizador, aproximando-os, ou melhor, atraindo o segundo para as práticas, métodos e soluções do primeiro. Os títulos onde se identifica, de forma clara, essa declinação visual do cinema de “imagem por imagem” são The Grand Budapest Hotel (2014) e The French Dispatch (2021). Não por acaso, são os mais estilhaçados dos filmes do realizador, todos construídos numa lógica de acomulação, não só narrativa, mas estética. Estes dois filmes de “imagem real” imediatamente precedentes a Asteroid City apresentam-se como demonstrações de um estilo, forma de afirmação de que o “método Wes Anderson” se aplica a qualquer género cinematográfico, a qualquer circunstância ou a qualquer época – daí a fragmentação dos quartos de hotel e dos artigos de revista (cada um com o seu parêntesis estético-narrativo).
Desde Moonrise Kingdom (2012) – ou seja, há uma década – que Wes Anderson não fazia um filme com uma forte unidade de espaço, de tempo e com uma certa linearidade narrativa. Asteroid City é, nesse sentido, um filme mais contido que os anteriores. E, talvez por isso, o seu melhor filme desde há vários anos. A graça é que esta viragem para o espartilhamento é não só auto-imposta como sucessivamente pervertida pelo próprio (ainda que se preserve, apesar das perversões, o poder de constrição).
A primeira grilheta é estrutural: o filme é a adaptação (e o documentário dessa adaptação) de uma peça de teatro, onde tudo se passa num mesmo local, o palco, e num curto espaço de tempo, diegeticamente, uma semana, em cena, uma hora e pouco. A primeira perversão prende-se com o décor: onde o teatro é um espaço de fechamento e clausura, o filme lança-se no mais amplo e luminoso dos lugares, o deserto americano. Porém, o poder de constrição é o mesmo: na planície quente e árida o realizador redescobre o artificialismo cénico do palco (as entradas e saídas de cena, os diálogos oposicionais, a falta de profundidade ou a planura dos fundos). Esta tensão sistólica e diastólica (para usar a terminologia do colega walshiano Miguel Patrício) é a razão do batimento muito singular deste Asteroid City, um filme de ambiguidades alternadas, sempre em posição incerta, sempre gracioso mas sem graça, sempre uno e disperso, sempre triste e luminoso, sempre de época e profundamente contemporâneo.
Daí que, retomando o ponto inicial, este seja um filme de auto-análise: Wes Anderson a filmar-se, a filmar o seu método, a sua escrita, a filmar a sua trupe, tudo em modo autoconsciente, como quem reflete sobre as suas limitações, os seus trejeitos, as suas tendências e obsessões. Asteroid City é um filme de balanço, sem no entanto ser um filme de impasse. Mais do que noutros dos seus filmes, torna-se evidente que aqui a figura do dramaturgo Conrad Earp (Edward Norton) é a encarnação do autor enquanto personagem. Duplamente autor, diga-se. E é, também, a assunção de que o cinema de Anderson – como Quentin Tarantino nos seus últimos filmes – se aproxima progressivamente do teatro, encontrando no trabalho dos atores e na escrita verborrágica a materialização coral de uma torrente de citações, referências e piscadelas de olho.
Mas regressando a João Botelho, vi há dias aquele que foi o “seu” primeiro filme, antes da curta Alexandre e Rosa (1978) e de Conversa Acabada (1980), refiro-me a Os Bonecos de Santo Aleixo (1977), realização coletiva da Cooperativa Paz dos Reis (onde se incluíam, além de Botelho, Pedro Massano de Amorim, Álvaro Saldanha da Gama ou Jorge Loureiro). Os cooperantes por detrás de Os Bonecos deliciam-se a pensar a escala do palco no quadro da imagem, em reduzir a área útil do ecrã a metade ou mesmo a um terço (operando segundo as lógicas gráficas do espaço negativo), planificando o fundo ou o entorno do palco. Muito disso encontra-se no cinema de Wes Anderson, e em particular neste último filme (onde a relação com os atores tem, igualmente, semelhanças com o Bonecreiro do Teatro de Bonecos de Mestre Sandes). Essa é, a meu ver, a revelação de Asteroid City (ou antes, a confirmação daquilo que já era óbvio mas que não havia ainda sido enunciado explicitamente): como Botelho, que trabalhou longamente como designer, também Wes Anderson é um realizador da composição gráfica, da disposição sobre a superfície da tela (feita cartaz), da planura da banda desenhada, das margens de corte e das provas de cor. Tudo no filme o confirma, dos Looney Tunes às assimetrias enquadradas das janelas, portas, corredores e split screens. A coincidência de ter visto estes filmes com um pequeno intervalo de dias fez-me perceber que tanto um, como o outro, entendem a relação entre a câmara e o palco (ainda que para Anderson o palco seja fictício) não tanto como um trabalho de mise en scène, antes como um trabalho de mise en place. Wes Anderson não é já bem um cineasta, está algures entre o vitrinista, o chef de cozinha que emprata e o designer gráfico. Ele sabe-o. E ainda bem.
★★★☆☆