Quais folhas criadas pela estação florida da primavera,
quando de súbito crescem sob os raios do Sol,
assim somos nós: por um tempo de nada, nos deleita
a flor da juventude, sem conhecermos o mal ou o bem que vêm dos deuses.
Mimnermo, em [Lambi et Elegi] Hélade
Perante a dificuldade em afirmar a celebridade do cineasta Jacques Rozier que, tendo tido uma vida longa e uma actividade prolífera, tendo sido o precursor da Nouvelle Vague e o derradeiro dos seus protagonistas a deixar-nos com o fim do mês de Maio, muitos, no entanto, desconhecerão por completo a sua obra cinematográfica, pois a mesma, como aconteceu em Portugal, nunca teve exibição comercial e, além disso, uma grande parte da sua carreira profissional foi repartida pelo vídeo e pela televisão, ainda assim porque não recorrer ao critério pessoano segundo o qual «o génio não reside nas coisas acidentais, por exibição, mas sim no carácter representativo desses acidentes» não deixando de, mediante um raciocínio análogo, pretender chegar à conclusão de que «o [cineasta] posterior é que é o primeiro»[i].

Quando, com o passar do século e tendo já então Jacques Rozier dobrado a casa dos setenta, começaram a ser organizadas retrospectivas da sua obra (para muitos a oportunidade de a ver pela primeira vez) tornou-se inevitável uma outra apreciação da mesma. Em Novembro de 2001, o Centro Georges Pompidou em Paris levou a cabo uma retrospectiva «integral» na qual uma trintena de obras de todos os formatos, de todos os géneros, em todos os suportes, vinha juntar-se às longas-metragens conhecidas, ainda que ao mesmo tempo ficávamos a saber, pela boca do próprio realizador, que essa «trintena de filmes mostrados no Beaubourg representava apenas um terço ou a metade de tudo o que foi começado, rodado, imaginado e apenas em parte montado». A retrospectiva organizada pela Cinemateca Portuguesa, entre fins de Abril e começos de Maio de 2018, de menor dimensão, em virtude da situação patrimonial que continuava a limitar a difusão de uma obra entretanto em curso de restauro, contribuiu para dar visibilidade, entre nós, a secretos tesouros. Sem contar com os títulos inéditos, a amplitude e diversidade dos registos do que então foi possível conhecer, obrigava, de certo modo, a rever os epítetos de diletante e preguiçoso que tinham sido colados ao seu autor.
Com efeito, descontados que sejam «os filmes que mais tarde acabarão por aparecer, os interrompidos, os inacabados, os perdidos, os malditos», parece difícil contrariar a defesa de Rozier quando afirma que «durante a minha vida não parei de filmar, trabalhei ininterruptamente em projectos. Quando não podia rodar para o cinema, fazia televisão. […] Não estabeleço uma diferença entre vídeo e filme, entre longa e curta-metragem, entre géneros, tudo faz parte do mesmo trabalho, da mesma matéria. É possível rodar e montar documentários como ficções e histórias como reportagens. A tudo isso, em conjunto, chamo cinema»[ii].
Para quem, ao começar, afirmava a pretensão de «no futuro trabalhar em inteira liberdade» e, aos setenta e cinco anos, dava conta de que «nunca [ia] de férias, fic[ava] sempre em Paris para desenvolver projectos, filmar, montar», sem que tenha renunciado àquilo em que mais acreditava «que é preciso divertir-se, quer dizer casar o diletante com o trabalhador forçado», e muito menos tivesse desistido da sua escolha primordial ― filmar férias e viagens, só nos resta reclamar por justiça à «figura viva».
Evocamos, para tanto, a descrição feita por Louis Skorecki: «Rozier, um preguiçoso sem igual, parece surgir de uma sesta intemporal a qualquer momento. […] Sobrevivendo a fracassos repetidos, compulsivos, convulsivos (quatro longas metragens em cinquenta anos, menos que Jacques Tati, não há como não fazer), transforma graças à teimosia ou à santidade esses fracassos em moral minimalista, serenidade, alegria de viver»[iii].
Tendo frequentado o IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques, escola de cinema de Paris) no início dos anos 50 e feito um estágio determinante com Jean Renoir na rodagem de French Cancan (1955), o espírito de independência que sempre cultivou e o gosto particular que nutria pelo neorrealismo italiano condizia bem com o apreço que tinha pelos mestres Jean Renoir e Roberto Rossellini. Se há quem veja nele o último representante da tradição clássica francesa «Lumière/Renoir que soube miraculosamente evitar o naturalismo transcendendo-o graças a preces profanas e acidentes de rodagem»[iv], ele próprio não se afasta da convicção segundo a qual «se considerarmos o cinema como o legado dos irmãos Lumière, então é melhor ser receptivo a tudo o que pode acontecer durante as filmagens, não prever nem esquadrinhar tudo com antecedência»[v]. Não deixando de anotar, como contributo para a formação do seu perfil profissional, que, tendo começado a trabalhar na televisão na secção de teledramáticos, aí aprendera a apreciar, confessa, a rapidez de execução e a mestria dos realizadores de que foi assistente.






Ao relembrar estes passos do seu percurso, antecipo circunstâncias que poderiam ser aduzidas, mas não cabendo aqui fazer a demonstração duma afirmação tão peremptória quanto a de considerar que o travelling (correntemente designado cena do passeio, 30’ 48’’- 33’ 23’’) de Adieu Philippine (1962) bastaria para fazer a glória de um realizador de cinema, uma vez mais, socorrendo-me de Pessoa quando diz que «cada homem tem muito pouco que exprimir e a súmula de toda uma vida de sentimento e pensamento pode, às vezes, caber inteira num poema de oito linhas »[vi], arrisco substituir «poema de oito linhas» por “travelling de dois minutos e meio” para dizer que com isso já haveria dele o suficiente para mostrar que era um cineasta de eleição.
Jacques Rozier, com razão, insiste:
«Existem duas espécies de realiazadores: aqueles que sabem, de antemão, o que querem fazer, e os outros. O realizador da primeira espécie é, para mim, um pobre homem: alguém que sabe tudo antecipadamente, não inventa nada. Assemelha-se a um pintor que sabe exactamente como vai ser o seu quadro antes de o pintar: trata-se de um péssimo pintor. Um pintor ou um músico ― eles encontram, eles criam através do contacto com as coisas, só assim se tem na devida conta o fenómeno da criação, da presença da matéria, da pesquisa. Se se sabe de antemão, o que se produz é déjà-vu. Ora o que interessa é surpreender-se a si mesmo, ser o primeiro espectador do seu filme.»[vii]
O que uma tal experiência propicia radica na concepção muito particular de Rozier desse primeiro espectador dum filme, capaz de captar o que designa por «momento mágico do cinema», tomando como referência o que se passa no visionamento das primeiras cópias de trabalho: «a projecção das rushes é como algo que só acontece uma vez, pois num olhar de relance, o primeiro, vê-se o filme tal qual ele irá existir e a vida tal como ela foi.»[viii]
Poderá parecer forçado assimilar uma tal experiência à que o travelling acima referido é capaz de propiciar. Uma análise detalhada poria diante dos nossos olhos, no entanto, que este passeio, aparentemente um plano-sequência, com dois minutos e meio de duração, é, na sua elaboradíssima construção musical, constituído por quinze planos, distribuídos por quatro segmentos, correspondentes ao tema musical (com a duração de 32”, com uma abertura de 8”) seguido de três variações (de igual duração e uma coda de 8”), em que assenta a montagem da sequência. Se a justa posição dos elementos na cadeia é assegurada pela composição musical, a transfiguração do naturalismo faz da flor da juventude pura graça. Falar da vida que anima as formas não é uma metáfora vitalista, é dar um nome à energia, à força que as sustenta. É ter, num momento mágico, de relance, a vida tal como ela é.
Qual «operário em construção» ― essa é a metamorfose «em largo e no coração» propiciada pelo momento mágico de uma tal experiência ―, «o [espectador] adquiriu / uma nova dimensão: / a dimensão da poesia»[ix].




Na primeira versão do argumento, dando corpo a uma ideia inicial cujo eixo era a vida dos jovens antes de partirem para o serviço militar ― estava-se em Janeiro de 1960 ―, que teve por título “As últimas férias”, era já explícito que esse tempo correspondia ao período antes de partir para a Argélia, com particular ênfase para o seu estado de espírito durante as dispensas de serviço. Entre a sinopse apresentada (por intermediação de Jean-Luc Godard, ao produtor Georges Beauregard, interessado em projectos de filme sobre a juventude), que refere «a última semana de um rapaz que vai partir para a Argélia» e o tom de comédia musical em que «duas raparigas disputam entre si um rapaz que parte», consolida-se a versão a que foi dado o título de “Adieu Philippine”, de cuja rodagem resultou um filme de 2 horas e 30 minutos, sem som síncrono, devido à ausência de um operador de som durante a rodagem.
Desentendimentos sobre a duração final do filme e, particularmente, sobre o modo como decorrera, durante a montagem, a reconstrução do som (dos diálogos), a que Rozier, inamovível, se dedicara por largos meses por considerar tratar-se de «um filme inteiramente baseado num certo estilo dos diálogos», levaram à mudança de produtor, a que se juntou a necessidade de filmagens acessórias e a procura de um novo distribuidor, atirando a finalização da segunda versão do filme para Janeiro de 1962. Tendo sido seleccionado para a Semana Internacional da Crítica, foi apresentado durante o Festival de Cannes em Abril, no entanto, durante um ano não encontrou distribuidor interessado, pelo que o filme só teve a sua primeira exibição comercial em França em Setembro de 1963.




Havendo muito embora divergências nos dados coligidos à época pelos Cahiers du Cinéma e os da sua rectificação feita pelo próprio Rozier por ocasião da retrospectiva no Beaubourg em 2001, pareceria convir-lhe inteiramente a designação de «arquétipo de filme Nouvelle Vague: baixo orçamento, grande margem para a improvisação, rodagem em exteriores, som directo, exaltação da juventude, revelação de novos actores, desenvoltura e atrevimento na gestualidade e na linguagem, registo de mudanças sociais, culturais e mediáticas»[x]. Contudo, fruto da convicção de Jacques Rozier de que «um filme tem que ser uma aventura», ou da sua atitude «visceralmente adversa aos constrangimentos industriais», ou da margem intencionalmente destinada ao «aleatório», torna-se imprescindível considerar o desvio que Adieu Philippine introduz no modelo: sem negar (ou para não negar) que «no cinema é o som que está em primeiro lugar», o som é integralmente reconstruído em estúdio; tendo já terminado a guerra da Argélia no momento em que o filme acaba por ser exibido, dissolve-se «a linha de separação entre os que então tinham vinte anos e a guerra mortificava e a indiferença a que a questão era votada pela restante população francesa». Se algo permanecia, correspondendo à intenção de «aplicar o método dos meios ultra-leves a uma longa-metragem», que constituía um adquirido de Blue Jeans (1958) em termos de método e produzia um resultado insólito relativamente ao cinema francês contemporâneo, dizia respeito à determinação de pôr a rodagem sob o signo do neorrealismo italiano, usando, nos exteriores, câmara à mão ou instalada num tripé montado num 2 CV[xi].
Complementarmente, tendo tomado a decisão de todo o texto do argumento ser escrito em estilo indirecto, fora dada aos intérpretes (actores e não actores) a possibilidade de manter o seu próprio registo, confiando na releitura que nos diálogos os mesmos fariam do texto e das situações. Cada cena é sempre diferente e o desfasamento é aproveitado para alimentar o ritmo e a graça.




Um “cartão” ― «1960. Sexto ano de guerra na Argélia» ―, antecedendo o início do filme, não deixa dúvidas sobre o tempo histórico e sobre o que o marca, tal como a sequência de abertura, tendo como décor um estúdio de televisão, para além de situar a condição profissional do protagonista, mostra de forma algo exuberante como o novo meio desperta a curiosidade das “jovens” que aspiram entrar no mundo do espectáculo, sem deixar de conceder um plano de destaque ao papel da televisão então emergente ― este filme sendo, segundo Rozier, o «único documento disponível sobre as emissões em directo nessa época» ―, que mais do que à disputa com o do cinema, sabendo-se que por falta de sistema de registo o cinema na televisão não era viável, abria caminho a um «método de rodagem» a usar no futuro, cujo termo de comparação fora colhido no pilotar de avião[xii].
Não pode deixar de registar-se a convergência, para uma definição de um paradigma para o homem-da-câmara do cinema moderno, com uma indicação deixada por Gilles Deleuze ao eleger como campo de génese de metáforas, em vez da caça do paradigma baziniano, os novos desportos. Assim, um primeiro traço fundamental haveria que colhê-lo naquilo em que o jogador de ténis, como inventor, revela o seu verdadeiro estilo, assente nas mudanças qualitativas ou ideias: «todo o novo estilo implica, não tanto um novo golpe, mas um encadeamento de posturas, quer dizer, um equivalente da sintaxe que se realiza na base do estilo anterior, mas rompendo com ele». Contudo, a disposição mais global seria de procurá-la no desempenho do praticante de surf ou de asa-delta: «trata-se fundamentalmente de inserir-se no movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, de “colocar-se entre” e já não de ser a origem de um esforço». Por contraposição à atitude de espera do caçador baziniano, na performance do praticante de surf ou de asa-delta será de relevar a capacidade de sintonização com as vagas e as correntes, sem esquecer tudo o mais que a arte do improviso requer[xiii].
Dos epítetos com que Jacques Rozier foi presenteado, haverá um que mais lhe convém, a saber, o de funâmbulo: num exercício em que caminha sobre a corda a uma significativa altura do solo, ou melhor, «em tão longa marcha de caminho andado // quanta pirueta de corda esticada / na distância certa»[xiv], na sua doce ironia, nos convida a seguir o corpo que «se transfigura / e toca o seu próprio elemento / num corpo que já não é seu»[xv].
[i] Fernando Pessoa, «Heróstrato ou o Futuro da Celebridade», em Prosa Íntima e de Autoconhecimento, ed. Richard Zenith, trad. Manuela Rocha, Obra Essencial de Fernando Pessoa 5 (Lisboa: Assírio & Alvim, 2007), 351–52.
[ii] Antoine De Baecque e Jacques Rozier, «Rozier tous azimuts», Libération, 2 de novembro de 2001, sec. Interview.
[iii] Louis Skorecki, «Adieu Philippine», Libération, 18 de setembro de 2000, sec. Critique.
[iv] Skorecki.
[v] Didier Péron, «Rozier sauvage», Libération, 30 de outubro de 1996, sec. Interview.
[vi] Pessoa, «Heróstrato ou o Futuro da Celebridade», 405.
[vii] Nicole Zand, «Le Dossier Philippine», Cahiers du Cinéma XXV, n.o 148 (1963): 36.
[viii] De Baecque e Rozier, «Rozier tous azimuts».
[ix] Vinícius de Moraes, «O operário em construção», em Novos Poemas II (Rio de Janeiro: São José, 1959).
[x] Jacques Mandelbaum, «Le présent lui appartient», em Jacques Rozier, le funambule, ed. E. Burdeau, Auteurs (Cahiers du Cinéma) (Paris: Cahiers du Cinéma, 2001), 12.
[xi] Jacques Rozier, «Inventaire I: Propos de Jacques Rozier», em Jacques Rozier, le funambule, ed. Emmanuel Burdeau, Auteurs (Cahiers du Cinéma) (Paris: Cahiers du Cinéma, 2001), 28.
[xii] Emmanuel Burdeau, ed., Jacques Rozier, le funambule, Auteurs (Cahiers du Cinéma) (Paris: Cahiers du cinéma, 2001), 29–32.
[xiii] Gilles Deleuze, «Les Intercesseurs [1985]», em Pourpalers (Paris: Les Éditions de Minuit, 1990), 180, 165; José Bogalheiro, Empatia e Alteridade: A Figuração Cinematográfica como Jogo (Lisboa: Sistema Solar / Documenta, 2014), 483–84.
[xiv] António Franco-Alexandre, «Sobre uma longa marcha», em A Distância (Lisboa: Edição do autor [distribuidor: Publicações Dom Quixote], 1969), 69.
[xv] Mário Cesariny de Vasconcelos, «Poema», em Poesia (1944 – 1955) (Lisboa: Delfos, 1961), 161.