Je voudrais être une anonyme célèbre.
Jane Birkin
A mais fotogénica das vozes, “a mais francesa das inglesas”, Jane Birkin (1946-2023), tinha apenas vinte anos quando obteve o seu primeiro papel de figurante em The Knack… and How to Get It (Lições de Sedução, 1965) de Richard Lester, um dos filmes emblemáticos da Swinging London, logo seguido de uma aparição – escandalosamente a nu – em Blow-up (História de Um Fotógrafo, 1966) de Michelangelo Antonioni. O arranque da sua carreira de atriz em França foi impulsionado pelo mítico encontro com Serge Gainsbourg, durante as filmagens de Slogan (1968) de Pierre Grimblat, e o resto é história: rapidamente, Jane Birkin tornou-se a musa e companheira do cantor e compositor, que lhe prestou homenagem em Histoire de Melody Nelson (1971) e a dirigiu na sua primeira realização, o polémico Je t’aime moi non plus (Amor Marginal, 1976).
O que são cinco décadas de cinema na vida de uma mulher? Figura icónica na paisagem cultural francesa da segunda metade do século XX, Jane Birkin desdobra-se em campanhas de moda, tournées musicais e papéis ecléticos no grande e no pequeno ecrã, atravessando simultaneamente o cinema popular (ao lado de Pierre Richard em várias comédias de Claude Zidi) e o cinema de autor pós-Nouvelle Vague [tendo sido várias vezes dirigida por Jacques Doillon, com que foi casada [La Fille prodigue (1980), La Pirate (A Pirata, 1984), Comédie! (1987)] e por Jacques Rivette [L’Amour par terre (1983); La Belle Noiseuse (1991), 36 vues du pic Saint-Loup (36 Vistas do Monte Saint-Loup, 2009)]. Mesmo após uma vida de excessos, o diagnóstico de uma leucemia, no final dos anos 90, e a tragédia da morte da sua filha mais velha, a fotógrafa Kate Barry, em 2013, a aura sedutora e irreverente da It-Girl manteve-se intocável ao longo dos anos.
Obviamente, Jane Birkin não é imune à passagem do tempo, e sabe-o bem. A questão do envelhecimento, e do modo como este a afeta, ocupa um lugar central em dois documentários singulares que lhe foram consagrados, com trinta anos de intervalo. O primeiro, Jane B. par Agnès V. (1988), trata-se de um portrait-en-cinéma, assim o define Agnès Varda, realizado por ocasião do 40° aniversário de Birkin, data particularmente receada pela própria; o segundo, Jane par Charlotte (Jane por Charlotte, 2021), constitui uma espécie de testamento invertido de uma filha (a atriz Charlotte Gainsbourg) para a sua mãe, então com cerca de setenta anos, e cuja saúde começa a dar os primeiros sinais de alerta.
Estes dois filmes constituem um excelente double bill para assinalar a nossa impossível despedida a Jane Birkin, falecida, aos 76 anos, no passado dia 16 de julho: o retrato caleidoscópico Jane B. par Agnès V. celebra o paradoxo da mulher-atriz que sempre admitiu gostar de posar para as câmaras, mas que ao mesmo tempo desejava ser uma “anónima célebre”; já o dueto intimista Jane par Charlotte celebra menos o ícone Birkin dos palcos e das capas de revista, do que a plenitude de Jane enquanto mãe imperfeita e mulher madura.
Exceções na carreira de uma artista, musa e modelo, tantas vezes fetichizada pelos homens que a dirigiram, filmaram, amaram e idolatraram, os filmes realizados por Agnès e Charlotte são provavelmente os únicos em que Jane – autorizo-me a tratá-las pelo nome próprio –, não sem pudor e humildade, concebe despir-se da imagem de sex symbol que se lhe colou à pele durante várias décadas e, alma enfim posta a nu diante das objetivas carinhosas da amiga e da filha, se revela infinita e inigualavelmente outra(s).
Com efeito, em Jane B. par Agnès V., Varda pretende menos capturar a essência de Birkin tal como ela foi cristalizada pelo male gaze dominante, do que estilhaçar a sua persona através de uma miríade de retratos cinematográficos que sublinham a sua natureza inefável e camaleónica: nas palavras certeiras da cineasta, Birkin oscila entre um androgyne tonic e uma Eva de plasticina; e o poder da câmara é precisamente o de moldar, através da luz, a presença irradiante da atriz no ecrã, mesmo que isso implique deformar ou refratar a sua imagem. Diante da objetiva de Varda, Birkin incarna assim, sucessivamente, Jeanne d’Arc, Calamity Jane, Jane/Mogli ao lado de Tarzan (e de Serge), Laurel ao lado de Hardy, Marilyn Monroe rodeada por espelhos a cantar a sua devoção ao seu pai (My heart belongs to daddy), uma mãe rodeada pelas filhas (Kate, Charlotte e Lou) e por retratos de família, Ariane no labirinto perseguida por um monstro (a câmara), femme fatale num film noir a cores, odalisca, serva ou ninfa numa pintura flamenga ou renascentista… ou simplesmente uma mulher banal em confidências com uma amiga, numa qualquer esplanada parisiense.
Este caráter ostensivamente paródico e artificial dos diferentes sketches que compõem o documentário é um corolário do dispositivo de mise en scène inventado por Varda: “É como se eu fosse filmar o teu auto-retrato”, explica a cineasta no início do filme, ao mesmo tempo que encoraja Jane a olhar diretamente para a câmara, como se se tratasse de um espelho: “Não estarás sempre sozinha no espelho. Haverá também a câmara (que é um pouco eu)”. Fiel à dimensão auto-reflexiva característica do cinema de Varda, Jane B. par Agnès V. dá acesso aos bastidores do processo criativo, sendo que a cineasta que não só discute com a sua atriz/modelo a composição dos vários tableaux vivants, como se autoriza a aparecer por momentos ao lado dela nos enquadramentos, presenteando-nos, assim, com o seu próprio auto-retrato.
Entreas várias micro-ficções que parasitam Jane B. par Agnès V., é a dada altura mencionada a história de uma mulher apaixonada por um adolescente, uma ideia da autoria de Jane Birkin, que Agnès Varda se apressa a realizar: o resultado é Kung-fu Master (1988), uma longa-metragem de ficção, menos auto-biográfica do que proustiana, na medida em que, para Birkin, a intriga amorosa não passa de um pretexto para evocar a sua infância em Inglaterra. De certo modo, Jane B. par Agnès V. documenta igualmente a génese de Kung-fu Master, que por sua vez assume contornos de um filme de família, já que Birkin contracena não só com Mathieu Demy, o filho de Agnès Varda e Jacques Demy, como com as suas próprias filhas, Charlotte e Lou. O mesmo desejo de regressar a um passado familiar envolto por uma aura de nostalgia estará na origem do único filme realizado por Jane Birkin, Boxes (2007), com Geraldine Chaplin e Michel Piccoli nos papéis dos pais fictícios da protagonista, interpretada pela própria.
Jane Birkin transmitiu às suas três filhas a sua paixão proteiforme pelas artes e o seu dom particular da fotogenia, dom esse que consiste menos em dar prazer ao ser olhada, do que em exercer a sua liberdade de provocar e de devolver o olhar, segundo as suas próprias “regras do jogo”, como dizia Varda. Esse legado constitui precisamente o ponto de partida de Jane par Charlotte: a realização do documentário não passa de um pretexto para Charlotte poder observar, durante mais tempo e mais de perto, a sua mãe, de quem ela sempre se sentira algo distante e se afastara ainda mais após a morte da meia-irmã. O pudor e o mistério que as separa terá eventualmente levado Jane Birkin a querer interromper as rodagens, iniciadas durante um concerto no Japão, seguido de um primeiro tête-à-tête, tão intimista quando intimidante, na antiga moradia de Ozu. Para convencer a mãe a retomar o projeto, Charlotte teve de repensar todo o dispositivo das filmagens: por um lado, a equipa técnica tornou-se gradualmente invisível, como se fizesse parte do mobiliário da casa na Bretanha onde mãe, filha e a neta Alice se retiram; por outro lado, em vários momentos a própria Charlotte tomou a câmara em mãos para filmar os instantes de iluminação que irrompem no quotidiano partilhado.
Uma das principais sequências de Jane par Charlotte consiste numa sessão fotográfica em que a objetiva de Charlotte examina minuciosamente as marcas da idade no rosto e nas mãos da mãe, ao mesmo tempo que esta confia a sua dificuldade em aceitar o envelhecimento, explicando que a única forma de o suportar tem sido atenuar os traços da sua feminilidade, banir os espelhos ao seu redor e “remover os óculos”, para que a sua imagem se torne menos nítida. Charlotte respeita esse desejo de dar a ver uma faceta mais “desfocada” da mãe – desejo esse que faz eco de uma outra confidência feita em Jane B. par Agnès V.: “Gostava de ser filmada como se fosse transparente” –, e daí resultam alguns dos mais belos retratos do filme.
Em mais de uma ocasião, Jane e Charlotte discutem sobre a composição dos planos, procurando o enquadramento e a iluminação que mais as favoreçam: a preocupação com a imagem mantém-se; assumi-lo é o primeiro passo para assumir, também, os seus erros e as suas rugas. Com efeito, a transparência assumida na realização de Charlotte Gainsbourg é precisamente o que permite ao filme alcançar uma dimensão de intimidade (e de verdade) que, apesar de todas as qualidades e criatividade que lhe reconhecemos, faltava ainda ao filme de Varda. Ainda que Jane par Charlotte siga uma estrutura bem definida, apresentando sequências com uma unidade espácio-temporal (por exemplo, a visita à casa – futuramente museu – de Gainsbourg) ou formal (como quando Charlotte e Birkin conversam deitadas lado a lado numa cama de lençóis brancos), a dimensão artesanal do próprio dispositivo de filmagens aproxima-se por momentos da estética do home movie ou do filme de família – uma afiliação que é corroborada não só pelas inúmeras câmaras analógicas que vemos Charlotte manusear ao longo do filme, como pela penúltima cena, quando são projetadas sobre a silhueta de Jane imagens de home movies antigos, mostrando nomeadamente aqueles que já não estão entre elas, Kate e Serge.
“Porque é que aprendemos a viver sem a nossa mãe?”, pergunta Charlotte, perto do fim. “Acho que é um objetivo que definimos para nós próprios, emanciparmo-nos. Eu não me quero emancipar. Quero-me colar.” Na última cena, Jane é filmada à beira-mar enquanto ouve a voz de Charlotte numa gravação áudio. Nesse momento, o documentário deixa de ser sobre Birkin para passar a ser universal, o filme de todas as filhas que percebem que as suas mães não ficarão para sempre junto delas. A emancipação será inevitável, mas o abraço que conclui Jane par Charlotte nunca se dissolverá.