Durante o seu período de aprendizagem escolar, Kenneth Anger (1927-2023) teve Shirley Temple como par nos bailes da escola de dança. Assim, o historiador de arte P. Adams Sitney, inicia a apresentação da obra de Anger. Trata-se de um detalhe aparentemente sem grande importância, mas que se torna instrumental para o enquadramento da obra do cineasta. Não poderia haver melhor ironia: o futuro mago do cinema experimental norte-americano como parceiro de dança da criança-estrela favorita de Hollywood. Na verdade, Hollywood tornar-se-ia numa das principais obsessões de Anger. Tendo crescido em Beverly Hills, conta que, para além de ir uma ou duas vezes por semana ao cinema, o que lhe permitiu uma melhor compreensão sobre os mecanismos do ritmo e da montagem, gostava de colecionar boatos, histórias e recortes de jornais e revistas sobre os escândalos e as tragédias de Hollywood. Este interesse e o material colecionado levaram-no a escrever Hollywood Babylon (1959, primeira edição em francês) e Hollywood Babylon II (1984). Embora muita da sua informação tenha sido contestada, os livros são um retrato mordaz da máquina de sonhos, durante o período mudo e na transição para o som e do preto e branco para a cor, com os seus vícios, enganos, assassinatos, suicídios e processos judiciais. Em Hollywood Babylon, o autor escreve que o ocultista britânico Aleister Crowley, em passagem por Hollywood, notou que se tratava de uma multidão de lunáticos sexuais e cocainómanos.

O seu primeiro filme que, segundo algumas fontes, teria sido realizado com apenas quatorze anos, foi rodado com uma câmara de 16 mm, pertencente aos pais, que era utilizada para os filmes de família, particularmente em aniversários e férias. A maturidade chega em Fireworks (1947) que, como outro cinema de vanguarda dessa época, é inspirado na lógica do sonho de Le sang d’un poète (1930) de Jean Cocteau. Anger enviou o filme para o Festival de Cinema de Biarritz, que o premiou. Jean Cocteau, presidente do júri, enviou-lhe uma carta em que escrevia que o trabalho de Anger vinha da noite negra da alma. Anger perguntou-lhe se o poderia ir visitar e, perante a resposta afirmativa de Cocteau, na primavera de 1950, viajou para Paris onde conheceu Jean Genet e Henri Langlois, cofundador da Cinemateca Francesa, com Georges Franju, Paul-Auguste Harlé e Jean Mitry. A afinidade com Henri Langlois incluía o amor de ambos pelo cinema mudo, o “constrangimento delicado do silêncio” ou a “perfeita cidade da imagem”, como lhe chamava André Bazin.

Fireworks é dos melhores exemplos do género psychodrama ou trance film, filmes em forma de sonhos que P. Adams Sitney caracteriza por um percurso do protagonista, marcado pela observação, em vez de ação, entre paisagens naturais ou arquitetónicas e em direção a uma cena clímax de autorrealização. No início do filme, ouve-se a voz off do autor: “Os desejos inflamáveis, amortecidos durante o dia, são despertados à noite pelos fósforos libertários do sono. Estas manifestações imaginárias proporcionam uma libertação temporária”. É algo que parece uma derivação mais luminosa da ideia de sonho no manifesto de Francisco Goya numa das gravuras da série Los Caprichos (1799): “O sono da razão produz monstros: a fantasia abandonada pela razão produz monstros impossíveis; unida a ela é a mãe das artes e a origem das suas maravilhas”. A gravura mostra um artista adormecido sobre a mesa de trabalho, cercado por um conjunto de criaturas pertencentes ao folclore medieval espanhol, como o morcego, a coruja e o lince.
Enquanto regresso à natureza desmedida, selvagem e sublime, segundo o historiador de arte H. W. Janson, o Romantismo (entre o fim do século XVIII e o fim do século XIX, dependendo do autor) surge como sintoma de reação contra os valores consagrados, incluindo a ordem social e a religião, no seguimento de um forte desejo por emoções novas. Uma vez que a obra de Goya, considerado o último dos mestres antigos e o primeiro dos modernos, se posiciona na transição entre o Iluminismo e o Romantismo, a gravura sugere que a imaginação não se deve render à racionalidade, uma vez que a produção artística nasce da combinação entre a razão e a imaginação. Noutra obra desse período, The Nightmare (1781) da autoria do pintor suíço Henry Fuseli surge um íncubo, demónio em forma de símio acusado de procurar relações sexuais com aqueles que dormem, pousado sobre uma mulher adormecida, enquanto um cavalo, outro símbolo erótico, os observa.

Ora, a obra Fireworks, filmada inteiramente em estúdio, apropria-se de muitas das coordenadas estabelecidas para descrever o Romantismo. Antes de mais, é inspirada e construída de acordo com a lógica do sonho ou mesmo do sonho dentro do sonho. Deitado numa cama, o protagonista (Kenneth Anger) sonha com um marinheiro que transporta, nos seus braços musculados, um corpo ensanguentado. O sonhador acorda com uma ereção enorme, que não é mais que uma estatueta erigida sobre o seu corpo, sob os lençóis. Entre planos de estatuetas mutiladas que, no final, readquirem a forma, o sonhador é agredido por um grupo de marinheiros e “salvo” pelo homem musculado, representado em fotografias encontradas ao lado da cama. Fireworks também é um manifesto pós-romântico sobre a homossexualidade de Anger, algo que Jean Cocteau apenas assumiu publicamente numa fase tardia da sua obra. Sem subterfúgios, liberta-se de qualquer limite que possa impedir a liberdade absoluta do poder, do amor e da violência das emoções, uma pulsão atribuída ao Romantismo. Em início de carreira, trata-se de um ato corajoso para a América da época, representada artisticamente pela produção dos macho heroes do Expressionismo Abstrato, de que Jackson Pollock é um dos melhores exemplos.
Entretanto, já a residir em Paris, Kenneth Anger é presenteado com uma mostra da sua obra com a curadoria de Henri Langlois e recebe financiamento da Cinemateca Francesa para a produção do seu próximo filme, La lune des lapins (1950), uma pantomima com dança em que um mimo, com a aparência de Pierrot, tenta tocar numa Lua distante. Numa versão posterior mais curta, por meio da aceleração da velocidade da ação, é ainda mais clara a sua aproximação ao cinema mudo, nomeadamente pela exacerbada expressividade do rosto e do corpo e pelo paralelismo com os delirantes cenários interiores de Georges Méliès, outro mago, mas dos primórdios do cinema, apaixonado pela Lua. Por sua vez, em Eaux d’Artifice (1953), esclarece qualquer dúvida que ainda houvesse sobre a sua inspiração na arte anterior ao século XX. Rodado nos jardins da Villa d’Este, localizada em Tivoli, perto de Roma, o filme apresenta uma figura anã adornada com roupas e acessórios de época, em contraste com a monumentalidade do cenário, a percorrer o jardim arborizado e as construções maneiristas, entre as repetidas ejaculações da água das fontes e das cascatas artificiais. Como noutros filmes, os figurinos e os acessórios foram desenhados ou recolhidos por Anger, inspirado no trabalho da sua mãe que fora figurinista no cinema mudo.

No regresso aos Estados Unidos, concluiu o que ficaria conhecido como Ciclo da Lanterna Mágica, com Inauguration of the Pleasure Dome (1955-66), Scorpio Rising (1963), Kustom Kar Kommandos (1965), Invocation of My Demon Brother (1966-69) e Lucifer Rising (1966-80), cruzando motivos da cultura popular norte-americana com rituais e elementos esotéricos, maioritariamente inspirados na obra ocultista de Aleister Crowley e dos seus seguidores. De um modo geral, em termos formais, estes pequenos filmes sem diálogos começam com uma introdução dos motivos e das personagens e evoluem para uma conclusão alucinatória e orgiástica, composta por variações de imagens sobrepostas, reflexos, feixes de luz e cores contrastadas, sobre um fundo negro. Trata-se de algo que remete para um padrão quase estroboscópico, aspeto que é potenciado pelo ritmo imposto pela montagem, que intercala planos curtos e muito curtos que, por vezes, provêm de outros filmes seus ou de found footage.
Em Inauguration of the Pleasure Dome, um conjunto de figuras, incluindo uma luminosa Anaïs Nin com a cabeça envolta por uma rede metálica e um feiticeiro que se alimenta de adornos e joias, celebram a decadência, enquanto rejeição da disciplina, das qualidades e dos valores instituídos. Scorpio Rising convoca os temas do fascismo, da sexualidade e do culto por James Dean e Marlon Brando em subculturas constituídas por grupos de homens jovens, que poderiam ser equiparados aos motociclistas dos Hells Angels. As imagens repetitivas, suspensas na parede, nomeadamente de James Dean, enquanto um motociclista repousa na cama, vêm lembrar, mais uma vez, os “demónios” sobre o sonhador na gravura de Goya. O fascínio dos jovens americanos pelo automóvel, enquanto objeto fetiche, é o mote para Kustom Kar Kommandos. Sob um fundo musical minimalista composto por Mick Jagger a partir de um sintetizador Moog, Invocation of My Demon Brother apresenta um imaginário erotizado pontuado por práticas ocultistas e performances de bandas rock, incluindo The Rolling Stones. Este filme resulta de material rodado que não seria utilizado em Lucifer Rising, uma celebração da figura de Lucifer, não como anjo caído, demónio expulso do Paraíso, mas como o anjo libertador da ordem conservadora e o promotor da nova era de uma contracultura regida pelo ocultismo.

Para além de incluir frequentemente inserts de outros filmes na sua obra, o cinéfilo Kenneth Anger cita frequentemente a história do cinema nos seus filmes. Tony Rains elenca algumas ligações mais evidentes, principalmente relativas a Serguei Eisenstein, que se revela um dos seus grandes mestres estéticos e cujas teorias sobre a montagem são instrumentais para a construção dos filmes: em Fireworks, a posição de Anger entre uma estatueta fálica e uma pintura da sua autoria replica Serguei Eisenstein em ¡Que viva Mexico! (Que Viva México, 1932) quando coloca homens com feições Maia contra as ruínas de Yucatán, realçando as fisionomias e o paralelismo entre as formas; o movimento da água em Eaux d’Artifice tem semelhanças com as múltiplas ejaculações de leite em Staroye i novoye (A Linha Geral, 1924), também de Eisenstein; ainda deste filme, reconhecem-se em filmes de Anger os grandes planos orgiásticos dos camponeses; os jubilantes close-ups finais de Samson De Brier em Inauguration of the Pleasure Dome são inspirados nas imagens finais de Marlene Dietrich a exultar com a vitória em The Scarlet Empress (A Imperatriz Vermelha, 1934) de Josef von Sternberg.
Para compreender melhor a obra de Keneth Anger, é importante ter em atenção que vários filmes sofreram alterações ao longo dos anos, como a adição de segmentos de outros títulos, existindo planos e cenas que se dispersam por vários filmes. Como Sitney exemplifica, na década de 1970, Anger concluiu Invocation of My Demon Brother, incluindo material de Lucifer Rising, lançou Puce Moment (1949) com uma nova banda sonora, reeditou La Lune des Lapins, acrescentado vários temas musicais e traduzindo o título para “Rabbit’s Moon”. Uma vez que existe esta teia de relações entre os filmes, como Anger confirma, é importante considerar que cada filme é apenas uma parte de um todo maior, correspondente ao conjunto da obra, de modo que, em termos de leitura, o todo resulta maior que a soma das partes. Em última instância, por meio de uma beleza subversiva, a obra de Kenneth Anger vem lembrar a urgência em questionar e derrubar os fundamentos que sustentam a racionalidade e a ordem social, o que, aliado a uma linguagem visual encantatória, pode explicar a inspiração que exerce em outros cineastas importantes, designadamente David Lynch, Rainer Werner Fassbinder, Martin Scorsese, Nicolas Winding Refn, Alejandro Jodorowsky, Yann Gonzalez, Bertrand Mandico ou Derek Jarman. Esta influência alarga-se a outras atividades e artes, incluindo a música, as artes plásticas ou a publicidade.

Entre 3 e 7 de Julho, a Cinemateca Portuguesa apresenta P. Adams Sitney: Sexo e Espiritualidade na História do Cinema, um novo ciclo da rúbrica Histórias do Cinema programado e comentado pelo historiador de arte, que apresenta dois filmes diretamente relacionados com Keneth Anger, Eaux d’Artifice e Arabesque for Kenneth Anger (1953) de Marie Menken, ambos em cópias de 16 mm, em conjunto com outras obras maiores do cinema experimental. Trata-se uma oportunidade única para ver em sala títulos importantes de artistas e cineastas deste movimento, incluindo Maya Deren, Marcel Duchamp, Man Ray, Stan Brakhage ou Hollis Frampton. O próprio Keneth Anger esteve, duas vezes, na Cinemateca Portuguesa para comentar os seus filmes: em 1993, no ciclo Mary Meerson e o Cinema como Magia; em 2009, a estadia contou ainda com uma performance-concerto de Anger, juntamente com Brian Butler, realizada na Galeria Zé dos Bois, memorável, segundo os presentes.