É um mistério para mim como é que caiu no esquecimento a primeira obra realizada por Alan Arkin (1934-2023), actor marcante do final dos anos 60 e inícios dos anos 70, que foi sendo remetido em décadas posteriores para o lugar de secundário de luxo. É mesmo da ordem do incompreensível que um título tão poderosamente sui generis como Little Murders (Salvo por Amor, 1971) não tenha entrado de rompante no cânone do seu tempo, tornando absurda a sua inclusão numa categoria crítica como esta, a de Recuperados. A força e violência esgrouviada desta obra, talvez excessiva para o seu tempo, mas auscultando-o intimamente como poucas (o caso Watergate estala pouco depois da sua estreia), deixam-nos desejosos por mais desenvolvimentos, por parte do realizador [Arkin só realizaria mais uma longa de ficção, chamada Fire Sale (1977)] e seu elenco de formidáveis actores. Há uma linguagem oferecida aqui, praticamente desde os primeiros minutos, que nos deixa desamparados, perdidos e, até, revoltados. Mas não sabemos ao certo porquê e, ulteriormente, contra o quê nasce a dita revolta. Temos de descobrir por nós, enquanto espectadores confusos, alienados, incapazes de saber se “a coisa” é para rir ou para nos aterrorizar de morte. Estamos tragicamente sozinhos na tarefa de dar conta da “batata quente” que nos é lançada.
Quem perpetra esses “pequenos homicídios” que parecem acontecer por todo o lado, a toda a hora? A pergunta faz-se mas as respostas tardam. Aliás, umas vezes não parecem nada “pequenos” os ditos “homicídios” e, na realidade, também não estamos certos do móbil ou natureza desses “actos criminosos” enunciados no título e rapidamente passados para a pele deste drama teatral, com argumento do cartoonista e encenador Jules Feiffer e com Elliott Gould no principal papel (o actor mais cool do início dos seventies, aqui também na qualidade de co-produtor). O filme aparece como um concentrado de micro e macro agressões da vida contemporânea, em plena América no ano da graça de 1971: o salvamento que propicia o encontro amoroso – o amor, essa palavra tão torturada no verbo torrencial deste filme – decorre de uma cena de violência totalmente gratuita – segundo a personagem de Alfred, fotógrafo de profissão interpretado por Gould, é algo que faz parte do seu dia-a-dia – que envolve pancadaria de meia-noite e insultos homofóbicos à luz do dia, para toda a gente ver, ouvir e “apreciar”. Esta cidade de Nova Iorque, em regime de auto-destruição convulsiva, é o pano de fundo erguido por Feiffer e Arkin para o drama. E – primeiro acto terrorista desta dupla de criadores – quando digo “drama”, deveria ou poderia antes dizer “para este boy meets girl”, porque Little Murders é ou tenta também ser, ou ser essencialmente (?), uma história de reconversão sentimental e ideológica baseada num encontro fortuito em que ela (magnífica Marcia Rodd na pele de Patsy) toma a iniciativa de mudar as coisas, colocando-se entre o fotógrafo agredido, o herói apático interpretado por Gould, e o bando de inanes que o violentam até mais não. Mas a agressão é maior depois – chama-se “amor”, um coup de foudre em tempos conturbados, mas também amorfos, atravessados por um clima (tenso como conheço em poucos filmes americanos, de qualquer período) de guerra civil.
Little Murders é uma obra grandiosa – enformada por um gesto quase terrorista, mas também muito clínico, de análise ao Zeitgeist – sobre a pequenez da sociedade moralmente criminosa que construímos para nós mesmos.
A personagem de Gould diz-se um “apático” ou, melhor dizendo, um devoto “apathist” (mistura de apático com ateu) e confessa à amada que não sabe o que é o amor, por isso, não pode dizer que a ama, ainda que, claramente, amando-a. As personagens falam, gritam, esperneiam, guerreiam consigo e entre si, de uma maneira desajeitada e amiúde histérica (histerismo contido, que nunca rebenta em pleno, salvo talvez no desenlace ferreriano). Mas elas nunca concretizam nada ou quase nada. A família de Patsy parece-se com um grupo de pacientes detido num hospital psiquiátrico, mas, afinal, em que medida eles são assim tão diferentes de todo o mundo lá fora? Esta é parte importante do filme de Arkin: ele não nos apresenta necessariamente personagens “deste mundo”, mas cria efectivamente um mundo dentro do nosso, eminentemente reconhecível no ecrã, onde os comportamentos das personagens obedecem a uma lógica e a leis próprias. E vamos sendo apresentados a este mundo – talvez “mais real” do que aquele que conhecemos e consideramos “normal”, mas que se esconde “no armário”, como a homossexualidade da personagem do irmão de Patsy (Jon Korkes) – personagem após personagem, situação após situação (ia escrever “sketch após sketch“, mas já nem sei se ainda vale, em mim, a ideia de que este filme chocante será mesmo uma comédia).
Muito buñuelianamente algures entre El ángel exterminador (O Anjo Exterminador, 1962) e Le fantôme de la liberté (O Fantasma da Liberdade, 1974), o texto fílmico de Arkin (que, já agora, participa da acção, no papel de detective, numa altura em que definitivamente o filme muda de tom, da comédia esquisita e, a espaços, delirante para essa tragédia histérica e angustiante para a qual estaremos sempre pouco preparados) está ele próprio, na sua apresentação, na sua retórica áudio/visual e cénica, enfermo, doente até à outrance. Está, enfim, como o sentimento profundo que perpassava – e não perpassa mais? – a América nos dias finais da administração de Nixon e, como evidencia a célebre tirada de Easy Rider (1969) (“We blew it”), descrente quanto às oferendas da geração do amor livre ou do flower power.
A família? Um tédio. O amor? Não sei o que é, mas se calhar não existe. Deus? Não falemos Dele, por favor. Com efeito, o protagonista niilista exige que Deus seja a palavra abolida no seu próprio casamento, previamente censurada no discurso do padre [interpretado magistralmente por Donald Sutherland, numa prelecção ácida sobre o facto de sermos todos seres defeituosos (avariados? Obsoletos?) e que a mudança não é possível, restando-nos o sentimento doce-amargo de conformação absoluta à nossa mediocridade intrínseca]. É uma comédia? Talvez tão cómica quanto são, e não são de todo, enfim, títulos como Dr. Strangelove (Doutor Estranhoamor, 1964) de Stanley Kubrick, Week End (Fim-de-Semana, 1967) de Jean-Luc Godard (aliás, Gould tentou, numa primeira instância, que fosse Godard a adaptar ao ecrã o furioso argumento de Feiffer) ou The Meaning of Life (O Sentido da Vida, 1983) dos Monty Python. Ou Mother! (Mãe!, 2017) de Darren Aronofsky, obra mais contemporânea que, a meu ver, se aproxima do olhar eminentemente catastrófico lançado, como uma granada, ao reduto familiar e amoroso. Little Murders é uma obra grandiosa – enformada por um gesto quase terrorista, mas também muito clínico, de análise ao Zeitgeist – sobre a pequenez de todos os dias, leia-se, visando a sociedade moralmente criminosa que construímos para nós mesmos. E nos acostumámos a considerar como um lugar normal e seguro (haha!), onde a liberdade, o amor e a expressão humana – a criatividade e a felicidade – até se podem realizar em pleno. No way Jose.