Não tenho nenhuma intensão de glorificar H.H. Não há dúvida de que ele é horrível, de que é abjecto, de que é um exemplo frisante de lepra moral, um misto de ferocidade e jocosidade que talvez denuncie a suprema desgraça, mas que não inspira simpatia. É cansativamente extravagante. Muitas das suas opiniões casuais acerca das pessoas e das paisagens americanas são ridículas. A sinceridade desesperada que vibra através da sua confissão não o absolve de pecados de astúcia diabólica. É anormal. Não é um cavalheiro. Mas com que magia o seu melodioso violino consegue inspirar uma ternura, uma compaixão por Lolita, uma ternura e uma compaixão que nos extasiam com o livro, embora detestemos o autor!
Prefácio de Lolita (Vladimir Nabokov, 1955)
Na produção artística do nosso tempo, onde se incluem naturalmente as paisagens cinematográficas, desponta um crescente peso de obras orientadas por um discurso político, que apesar de abarcarem causas justas e progressistas, muitas vezes parecem apenas bandeiras, como se o objecto ficasse impresso na casca da noz, com um conteúdo pobre, sem recheio, exangue da possibilidade de interpretação de significados e subtextos, sinais de sofisticação da arte, que enriqueceram a sua fruição e a dotaram de uma potência política soberana. O cinema norte-americano, também pela sua base popular, é paradigmático, como se exemplifica pela introdução do Código Hays. No início dos anos 30, a Associação de Produtores e Exibidores dos EUA, liderada por Will H. Hays, identificou uma linhagem crescente de narrativas e personagens que denominaram de imorais, devido à presença do corpo e do sexo, da prostituição e de doenças venéreas, do uso de drogas, de violência e de outros comportamentos supostamente desviantes, além da utilização considerada profana das religiões, dos seus símbolos e representantes. O Código Hays haveria de impor-se como um mecanismo censório, sendo apenas extirpado nos anos 60, por entre as grandes convulsões sociais, politicas e culturais: The Times They Are A-Changin’, cantava Dylan. Esta prática continuada de censura restringiu a liberdade de várias gerações, ao permitir que um comité, constituído por individualidades de méritos no mínimo discutíveis, pudesse escolher o que a população podia ou não ver nos écrans. Mas, paradoxalmente, as formas de escapar ao Código Hays constituíram-se como um poderoso contributo para o enriquecimento da linguagem cinematográfica que identificamos com o período dourado da produção de Hollywood, na definição de géneros e autores, que conseguiram vingar nos armazéns dos grandes estúdios, onde foi possível associar uma cultura popular a objectos de grande sofisticação.

Lolita (1962), filme de Stanley Kubrick estreado há 60 anos e que adaptou o romance de Vladimir Nabokov, revela-se um objecto exemplar nesta problemática, no que insinua ao invés de mostrar, no que codifica ao invés de exibir.
Nabokov chegara à América em 1940, em fuga da Berlim empestada pelas tropas nazis, depois de vinte anos antes ter escapado, com a família de raízes aristocratas, à revolução bolchevique. A publicação de Lolita foi recusada pelos editores norte-americanos e britânicos, sendo editado em Paris, em 1955, com o rótulo de obsceno. No final desse ano, Graham Greene nomeou-o romance do ano no The Sunday Times, o que abriu as portas à edição, ainda que envolta em controvérsia, no mundo anglo-saxónico.
Os primeiros nove capítulos do romance estabelecem os antecedentes de Humbert Humbert, o protagonista. O professor, depois dos estudos de Literatura divididos por Paris e Londres, chegara aos EUA em 1939, para pouco depois ser internado numa clínica psiquiátrica, devido a um esgotamento nervoso. Essas primeiras quarenta páginas, para lá de identificarem a morte de uma jovem rapariga (Anabela) como a marca das memórias de juventude do protagonista, assinalam também os primeiros desafios à moral do leitor, com a definição de ninfeta, do fascínio pelas adolescentes, que Humbert coloca em várias geografias e lugares da História, como quem desenvolve um estudo cientifico peculiar; pelo meio, iniciam-se também as confissões do narrador perverso e pouco confiável: “Se o meu corpo sabia o que desejava, o meu espírito repelia todos os seus apelos”. Nada disto está no filme, num guião escrito por Nabokov a pedido de Kubrick que, depois do sucesso de Spartacus (1960), buscava o controlo total dos seus filmes. Em parceria com James B. Harris, o seu produtor até então, Kubrick afinou um esboço de 400 páginas enviado pelo escritor, na preparação de uma rodagem que decorreria em Inglaterra.
A primeira sequência do filme corresponde ao fecho do romance e da narrativa, no ajuste de contas entre Humbert, interpretado por James Mason, e o rival Quilty, que libertara Lolita. A presença de Peter Sellers como Quilty acentua a dimensão da personagem, de matizes entre o burlesco e o trágico. A imundície da residência de Quilty com garrafas e copos espalhados, como um fim de festa, é uma síntese dos comportamentos patológicos de Humbert, que obriga o rival a ler uma declaração, a assumir que se aproveitou de um pecado, da sua fraqueza. O filme vai explicitar nas diversas aparições de Sellers que Quilty é uma sombra do protagonista, a juntar um conjunto de obsessões sexuais sem freio. Uma versão ordinária que era necessário apagar, na procura do apaziguamento de Humbert.

Uma analepse de quatro anos coloca-nos em Ramsdale, pequena localidade de New Hampshire, com um contexto mínimo: Humbert acabara de chegar da Europa. O filme propícia o imediato encontro com a viúva Charlotte Haze (Shelley Winters), na procura de um quarto para arrendar naquele Verão, que antecedia a conferência numa universidade sobre as traduções de poesia francesa do protagonista. É uma sequência chave. Humbert tenta escapar-se da casa e da senhoria, até que esta insiste em mostrar-lhe o jardim. Kubrick enquadra Lolita (Sue Lyon) de corpo inteiro alongada horizontalmente no plano, de biquíni e óculos escuros, uma das mãos sobre um livro, banhada por uma luz branca, límpida. A senhora Haze solta um voilà enquanto gesticula e descreve o jardim, mas o olhar de Humbert estava já pregado em Lolita. A rapariga retira os óculos escuros e na troca do primeiro olhar com o professor, este começa a discutir a renda com a mãe. O filme revela uma economia notável ao circunscrever a poucos segundos aquele encontro, algo que o romance fizera escorregar por várias páginas. O filme também omite a presença fantasmática de Anabela no discurso do narrador, mas “aquele clarão, aquele arrepio” descrito pelo livro, encontra tradução nas imagens de Kubrick.
Emerge uma espécie de bailado entre a leitura do livro e o filme, nas ligações que um e outro facilitam entre a moral e a linguagem do cinema. Nabokov escrevera Lolita num tempo em que a Literatura já fora contaminada pelo Cinema, pelo seu imaginário e nomenclatura. Existem inúmeras passagens do romance que explicitam uma escrita produzida em cima de narrativas e técnicas cinematográficas, como quando Humbert descreve Lolita como “uma garota americana moderna, ávida de revistas cinematográficas e perita em close-ups lentos como um sonho (…)”, que o protagonista pensou que “(…) podia beijar, com absoluta impunidade, o pescoço ou o canto dos lábios (…), ela consentiria e até fecharia os olhos, como Hollywood ensina”. O filme liga a sequência do jardim a um close-up de Lolita, que recebe como contra-campo o terror de The Curse of Frankenstein (A Máscara de Frankenstein, 1957), que o plano seguinte nos deixa perceber que se trata de um drive-in ao qual os três assistem: Humbert, entre a mãe e a filha. Perante o horror que sai do ecrã, as mãos delas pousam sobre a mão dele, um prenúncio da disputa entre as duas mulheres, com a já evidente escolha de Humbert, que sacode a mão da senhora Haze, enquanto recebemos no fora de campo os sons dos ataques das criaturas.

Na sequência do baile, começa a notar-se a inclinação do filme pelo tema da moral americana, na apresentação dos Farlows, um casal próximo da senhora Haze. John Farlow começa por fazer trocadilhos com a troca de pares na dança, para pouco depois a senhora Farlow, quando está a sós com Humbert, lhe dizer que ele é responsável pelo renovar do brilho da amiga Charlotte, enquanto lhe confessa que ela e o marido são muito liberais nos costumes, como se aquilo fosse o prenúncio de um ritual de troca de parceiros. O Quilty de Sellers assume-se como uma personalidade exótica, um agente provocador que aparece por todo o lado, que tudo vê e tudo questiona. No baile, Quilty pergunta a Charlotte pela filha: “não tinha uma filha com um nome adorável, lírico – Lolita – diminutivo de Dolores, as lágrimas e as rosas?!” Quilty há-de reaparecer noutras ocasiões, como quando Sellers se mascara de psicólogo e questiona Humbert quanto ao mau comportamento de Lolita na escola, que ele atribui a uma repressão da líbido fomentada pelo agora padrasto. Aqui ele define os americanos como “progressivamente modernos”, na crença de que é igualmente importante a educação dos alunos como prepará-los para “acasalamentos mutuamente satisfatórios”.
A aparência de volúpia só subsiste pois Humbert beija a mãe enquanto olha o retrato da filha. Devido à reputação do romance e a cenas como esta, o filme foi condenado pela Igreja Católica, o que forçou um atraso da estreia de seis meses. Kubrick concordou, por exemplo, em limitar o número de vezes que Humbert mirava o retrato de Lolita enquanto estava na cama com a esposa. Como seria de prever, toda esta controvérsia favoreceu o resultado do filme nas bilheteiras.
O britânico James Mason acabara de protagonizar A Star is Born (Nasceu Uma Estrela, 1954), de George Cukor, corrosivo e melancólico retrato de Hollywood, que colocara o actor como uma das figuras do star system. O seu Humbert herdou o perfil fleumático do actor, que nas ocasiões sociais surge quase indiferente, deslocado do modo de viver americano, da sua moral e das suas convenções. O protagonista questiona Charlotte, pergunta-lhe se ela não estará a ser demasiado liberal com Lolita, o que antecipa o seu estatuto de padrasto e amante, ciumento e repressor. Charlotte responderá que Humbert é antiquado, é por isso que ela gosta dele, sendo que antiquado aqui é sinónimo de europeu, de um mundo antigo em confronto com o admirável mundo novo da América. A viúva insinua-se e Hubert procura esquivar-se. O diário escrito pelo protagonista, que veremos a condicionar a narrativa e o destino dos personagens, impõe a importância das palavras e da Literatura como o barómetro da moral.
Depois de enviar Lolita para um campo de férias feminino, a 300 quilómetros de distância, sob o pretexto de a manter longe dos rapazes, Charlotte declara-se, por carta, a Humbert, depois de recorrer à iluminação da cerimónia dominical na igreja. O protagonista abre-se em gargalhadas enquanto lê a declaração de amor da viúva, mas a troça de Humbert quando ela enuncia que o amor deles é sagrado, enquanto as anteriores relações dele foram profanas, é todo o modo de vida que é alvo de sarcasmo do professor europeu. O protagonista confessa ao diário, que ao aceitar aquele casamento, apesar da amargura e repugnância, também verteu naquelas páginas uma certa excitação e vaidade, talvez até ternura e um certo remorso, atendendo ao plano diabólico para capturar Lolita. No romance de Nabokov, o narrador denunciava a impostura de Charlotte, como um exemplar da hipocrisia da nação americana: “quanto mais vulgares e ordinárias as mostrava” (as relações anteriores de Humbert), mais “Mrs Humbert ficava satisfeita com o espectáculo”. Numa das primeiras cenas do filme após o casamento, Charlotte apresenta a Humbert um revólver, adquirido pelo defunto marido, como um objecto sagrado. Define-se, então, uma espécie de triângulo dourado, que tem nos vértices a moral americana, o credo e a violência.

Na cama que junta os agora conjugues, Charlotte confessa a Humbert a fantasia de ter uma criada francesa, a quem daria o quarto de Lolita, depois de enviar a adolescente directamente do campo de férias para um colégio religioso severo. A cena prossegue, mas a aparência de volúpia só subsiste pois Humbert beija a mãe enquanto olha o retrato da filha. Devido à reputação do romance e a cenas como esta, o filme foi condenado pela Igreja Católica, o que forçou um atraso da estreia de seis meses. Kubrick concordou, por exemplo, em limitar o número de vezes que Humbert mirava o retrato de Lolita enquanto estava na cama com a esposa, numa nova montagem para validar a distribuição. Como seria de prever, toda esta controvérsia favoreceu o resultado do filme nas bilheteiras. Martin Scorsese relembra-nos que no início dos anos 60 “o cinema americano estava em crise, com o sistema dos estúdios a desabar”, e neste enquadramento Kubrick conquistou a autoridade para tratar “certos temas”, pois mesmo numa época turbulenta, de grandes mudanças nos costumes, “a interpretação das imagens”, decorrentes da “colocação da câmara e da natureza do assunto”, ainda se constituíam como material escandaloso.
O filme oculta a minúcia das descrições do romance e coloca o assunto como um subtexto, encontrado na riqueza e significação das imagens, das acções e motivações das personagens. Quase silenciadas são as conversas do narrador com o leitor que o procuram condicionar e até instrumentalizar e desafiá-lo moralmente, que no filme despontam esporadicamente. A morte de Charlotte ocorre fora de campo e na sequência da leitura do diário de Humbert, o que conduzirá o filme a uma das suas cenas determinantes: a primeira noite do padrasto com Lolita num quarto de hotel. No prólogo da cena, o filme dispõe um conjunto de peripécias e sinais. Com Quilty à escuta, Humbert é informado de que há apenas um quarto disponível, pois o hotel está a receber uma convenção da polícia. Em simultâneo, sinaliza-se o crime, moral e público, que o protagonista pretende cumprir, com Humbert a tentar equilibrar-se como um funâmbulo das convenções ao solicitar a colocação de um divã no quarto. Pela manhã, Lolita propõe ao padrasto que joguem a algo que ela aprendeu na colónia de férias com Charlie, um jovem funcionário. Ela segreda-lhe ao ouvido, descrevendo o jogo, em algo que o espectador apenas pode intuir. O filme corta para um ecrã a negro que se prolonga por um largo instante, como se desse a chave para que o espectador encontrasse o que o romance explicita: “15 minutos depois de acordarem eram tecnicamente amantes (…), um mundo novinho em folha, um louco mundo novo de sonho, onde tudo é permitido”.

A segunda metade do filme (e do romance) consome-se em viagens pelas estradas e pelos motéis da América, com o par a possuir um duplo estatuto, na conciliação conflituante das dimensões pública e intima. Caso exemplar ocorre quando Humbert comunica a Lolita a morte da mãe, ocultada até então: ele conforta-a e afaga-lhe o cabelo com ternura enquanto lhe aponta renovados destinos, como se pudesse alternar livremente entre a condição de amante e de pai, estatuto conferido oficialmente após a morte da esposa. Estas viagens possibilitam um retrato da América mediado pelos gostos de Lolita, na música, na publicidade e nas revistas de cinema, mas servem também de metáfora para a transgressão, na condução veloz de Humbert, num tempo em que o automóvel garantia a liberdade de atravessar o tempo e o espaço, sendo assim contemporâneo dos mecanismos do cinema e das suas possibilidades.
Estas viagens também fazem balançar o equilíbrio de poderes entre Humbert e Lolita, na partilha de um segredo e de uma culpa que, se exposta, encaminharia o padrasto para a prisão e a adolescente órfã para o reformatório. Se o livro testava o leitor com o insinuar declarado de Lolita, o filme utiliza as desconfianças do padrasto para desenhar uma jovem rapariga sedutora, que mais uma vez projectava uma sociedade hipócrita e voyeurista: “às vezes tinha a sensação de que vivíamos numa casa de vidro toda iluminada”. Também observamos os personagens a mudar. Enquanto Lolita se liberta estabelecendo linhas de fuga, o Humbert de James Mason perde o porte cortês e assume uma crescente insegurança e fragilidade. O quotidiano de Humbert, que procura restringir os movimentos da rapariga como um pai autoritário e puritano, é preenchido de deveres ao invés do prazer que antecipara no vislumbre do jardim das Haze. As imagens mais libidinosas do filme são as que encontram Humbert a pintar as unhas dos pés de Lolita, enquanto lhe diz que para lá de lhe prover todo o entretenimento, como idas a concertos e ao cinema, é ele quem procede à limpeza e quem cozinha.

O epílogo da narrativa possibilita o reencontro, depois de “três anos áridos sem Lolita”. A rapariga, agora grávida e na penúria, confessa um itinerário comandado por Quilty que a levara para um hotel no Novo México, com promessas de um contrato com Hollywood, no que era afinal a produção de um filme pornográfico. A possível redenção dos dois não poderia ser mais amoral, concretizada através do dinheiro. Humbert coloca nas mãos dela o somatório de todos os seus rendimentos, dinheiro e propriedades, que permitiriam a Lolita e ao pai do seu filho uma nova vida no Alasca.
As salas portuguesas receberam há uns meses Crimes of the Future (Crimes do Futuro, 2022), súmula do trabalho do cineasta David Cronenberg. A partir de um episódio de um dos seus primeiros filmes, com o mesmo titulo e datado de 1970, a obra cumpre uma associação definitiva da criação científica e da arte, com o corpo do protagonista transformado num work in progress, de cancros criativos suscitados pela motivação artística e o seu livre arbítrio, que convertiam o seu corpo, aquando da remoção dos órgãos, numa instalação pública, estabelecida num espaço híbrido, entre a clínica e a galeria de arte. Cronenberg, que filia a sua obra na Literatura, na valorização da metáfora, uma obsessão que nas palavras do próprio lhe define uma existência como escritor, uma existência obscura, tão obscura que não escreveu nenhum romance. Esta genealogia aponta às obras de Nabokov, Ballard e Burroughs, na vontade do cineasta de provocar o espectador, de testar e expandir as convenções. A actriz Helen Hunter, uma das protagonistas de Crash (1995) diz-nos que Cronenberg está interessado em comportamentos e posições morais extremas, uma exploração do código moral que pretende questionar onde é a fronteira e o que acontece se a ultrapassarmos. No caso desta adaptação do romance controverso de J.G. Ballard, a intenção da narrativa é revelar as personagens através dos actos sexuais. Como uma catarse. A vida de todos os dias através do sexo.