Em 2019, com os meus 20 anos de idade, os intervalos das aulas de Cinema e Televisão teimavam em não deixar fugir as imagens em movimento. A memória não me deixa falhar: a curiosidade espicaçada pela Professora Marta Pinho Alves transformava-se em breves conversas, nas quais a partilha e sugestões de filmes me estimulava, entusiasticamente, a querer desbravar caminho e desencantar aquele que considerava um mundo novo. Foi, sobretudo, a partir desse período, que o cinema cresce, em mim, enquanto linguagem e universo singular, objeto de construção, desconstrução, reflexão e crítica. Numa dessas breves conversas, fala-me de Hiroshima Mon Amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959), confessando ser um dos seus filmes preferidos de todos os tempos. Além de belíssimo, desde o conteúdo até à forma, considerava maravilhosa a possibilidade de vislumbrar, a cada visionamento e revisitação, novos elementos, dimensões e pormenores que, anteriormente, pareciam estar ocultos ou ausentes. Hoje, recuperando esta leitura e observação, diria que essa é uma das idiossincrasias de Alain Resnais: um cinema que se deixa, desejavelmente e permanentemente, ser revisto, relido e reinterpretado.

Uma mão enluvada que segura a maçaneta de uma porta, uma chaleira a ferver, uma mala que se deixa transportar, um cigarro que viaja até à boca, um candeeiro, uma cadeira, um relógio, uma peça de tapeçaria: com cortes abruptos e planos descontínuos, a abertura de Muriel ou le temps d’un retour (Muriel ou o tempo de um regresso, 1963) entra de rompante pelo ecrã adentro. A terceira longa-metragem de Alain Resnais, que sucedeu a L’année dernière à Marienbad (O Último Ano em Marienbad, 1961) e ao mencionado Hiroshima Mon Amour, acompanha Hélène e Bernard, desafiados a percorrer e incorporar o sinuoso e desconcertante caminho da convivência com a memória – a reconhecida coluna vertebral da filmografia do realizador francês. Em 1962, na cidade de Boulogne-sur-Mer, Hélène, uma mulher viúva, dona de uma loja de antiguidades, reencontra, a seu convite, Alphonse, um veterano de guerra, antigo amor seu. Bernard, enteado de Hélène, recém-chegado da Guerra da Argélia, vive angustiado e atormentado pelos fantasmas que carrega do conflito militar: a morte, da qual foi cúmplice, da jovem militante argelina Muriel, torturada pelos soldados franceses.
O regresso a encontros que despertam a máquina do tempo que temos em nós recorda-nos a vulnerabilidade e a fragilidade inerentes à impotência de controlo e resistência da repercussão das memórias no presente.
Se em Hiroshima Mon Amour contemplamos as cinzas da cidade nipónica a cair sob os corpos entrelaçados da atriz e do arquiteto, em Muriel ou le temps d’un retour vemos resquícios das ruínas que esculpem a cidade francesa de Boulogne-sur-Mer, ainda sob reconstrução após a destruição provocada pela Segunda Guerra Mundial. Numa transição que traduz o antes e o depois, acompanhamos as ruas, os edifícios, prédios, cafés, estações de comboios e casinos, a partir de planos não só captados com o propósito de centralizar a componente visual da cidade, mas também de a evidenciar enquanto espaço geográfico habitado por aquelas personagens que, por esta deambulando, assistiram à sua decomposição e, agora, à sua renovação. Não deixa de ser curiosa a analogia que, subtilmente, se deixa construir a este respeito: os destroços de Boulogne-sur-Mer evocam uma outra época, do mesmo modo que Hélène e Bernard se encontram, psicologicamente, vinculados a um outro momento, igualmente fraturante, das suas vidas.

A paisagem do imaginário, o que poderia ter sido e não foi – e a mágoa que daí resulta – corrompe Hélène, que parece culpar o passado, negar o presente e temer o futuro. Repare-se nos gestos verbais e não verbais que ilustram esta melancolia: as demonstrações físicas de afeto com Alphonse, marcadas, por um lado, pelo silêncio e consciência da sua efemeridade; por outro, vincadas pelo afeto e intimidade que instantaneamente se deixam assolar pelo ressentimento e frieza; ou os diálogos em que se dirigem acusações e justificações de parte a parte (a dado momento, Alphonse questiona Hélène: “Naquele noite de Junho de 1939, onde estavas tu?”, admitindo, embora mais tarde: “Tu merecias melhor”). Note-se o plano em que, num desses diálogos, Alphonse manuseia os ponteiros de um relógio, figurando-se-lhe aqui o simbolismo da denúncia da passagem do tempo – realidade que Hélène parece esquecer ou não querer lembrar. Destaque-se, ainda, a cena em que, após a partida de Alphonse, Hélène corre, descomedidamente, até à estação e, ao questionar sobre o comboio que seguiria para Paris, ouve como resposta: “Não passa mais aqui. Apanha-se numa nova estação. As coisas mudam.” E, inevitavelmente, as coisas não são imutáveis. A intervenção desta voz exterior, que verbaliza trivialmente a realidade que, uma vez mais, Hélène aparenta esquecer ou não querer lembrar, parece terminar por ecoar na própria, assim como no espectador.

Sensivelmente a meio do filme, irrompe-se um conjunto de cenas, planos, planos dentro de cenas, exibidos a partir da projeção do registo fílmico amador e caseiro captado pela câmara de Bernard. Simultaneamente à revelação do primeiro plano, surge a voz off de Bernard, que inicia o relato da experiência que o mantém refém: a morte de Muriel. Apresentando-se assim sob a forma de catarse, exerce a função acutilante de atuar como uma extensão da memória – lúcida, minuciosa e visceral – do jovem francês. Enquanto os planos, como componente imagética, expõem unicamente o quotidiano, o mundano, a rotina coletiva dos soldados durante a Guerra, as palavras, enquanto objeto da voz off, preenchem não só os silêncios, mas remetem-nos, sobretudo, para a tortura a que Muriel fora submetida. A cumplicidade do cinema de Alain Resnais com a literatura, a partir da adaptação de argumentos de Jean Cayrol, em Muriel ou le temps d’un retour, Alain Robbe-Grillet, em L’année dernière à Marienbad e Marguerite Duras, em Hiroshima Mon Amour – como esquecer a carga poética dos diálogos em Hiroshima Mon Amour? – contempla-se na relação estabelecida entre Bernard e nas palavras por si verbalizadas. Na decisão de ocultar a projeção de imagens explícitas, numa espécie de elipse, são as palavras que despoletam e sustentam a construção do imaginário visual.
Acedendo o espetador deste modo à presença de Muriel nas memórias de Bernard, do mesmo modo que Muriel invade, regularmente, a memória de Bernard, evidencia-se o momento particular em que, recordando minuciosamente a violência física dos atos bárbaros, o jovem francês relembra, em instantes diferentes, a reação da jovem argelina: “Ela olhou para mim. Porquê eu? Ela fechou os olhos e começou a vomitar” / “Os olhos da Muriel não estavam fechados”. O olhar de Muriel parece fixar-se como um pormenor que Bernard rejeita abandonar, persistindo como uma exteriorização também assinalada nos registos que fazia no seu diário: “Desde a morte de Muriel, já não estou vivo. Não sei porque os olhos de Muriel não estavam fechados”. Assim, a forma como o peso da memória o assola reflete-se no modo como os fragmentos do passado se repercutem no presente. A dada altura vemos Bernard deitado na cama, junto da namorada e, após esta lhe ter confessado que sonhara com ele, surge a resposta: “Não deverias fazê-lo. Não feches os olhos, Marie-Do.” Se em Hiroshima Mon Amour se proclama: “Tu não viste nada em Hiroshima”, em Muriel ou le temps d’un retour, Bernard viu a tragédia e Muriel viveu-a.
Em 1963, Susan Sontag escrevia sobre Muriel ou le temps d’un retour para a Film Quarterly, salientando não só, mas também, o seu formalismo e a mise en scène como catalisadores da disrupção e da sensação de desordem, construída, intencionalmente, por Resnais: “É como se Resnais tivesse agarrado numa história, que poderia ser contada de uma forma muito simples, e a seguisse a contrapelo… é o modo de Resnais transformar uma história realista numa análise da forma das emoções.” Neste sentido, permanece a sensação de que a amálgama entre a narrativa e a sua estrutura, a fragmentação da composição e da montagem, os cortes abruptos e a compressão de planos, assim como a justaposição da voz e da imagem, convocam a impressão de uma desorientação que imerge na tensão, inquietação, estado psicológico e permanente instabilidade emocional de Hélène e Bernard. O regresso a encontros que despertam a máquina do tempo que temos em nós recorda-nos a vulnerabilidade e a fragilidade inerentes à impotência de controlo e resistência da repercussão das memórias no presente. Em Muriel ou le temps d’un retour esta ideia ganha raízes mais profundas ao converter-se numa nostalgia – extrapolando a saudade -, na conceção de que os momentos a que Hélène e Bernard regressam interiormente não poderão ser recuperados e recriados. Diria o filósofo Heráclito: “O mesmo homem não pode atravessar o mesmo rio duas vezes, porque o homem de ontem não é o mesmo homem, nem o rio de ontem é o mesmo de hoje.”
Muriel ou le temps d’un retour (1963), de Alain Resnais, será exibido na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema no dia 25 de Julho.