A seriedade e o dramatismo (ou a espectacularidade do dramatismo) que Christopher Nolan costuma aplicar aos seus filmes parece muitas vezes desencontrada ou artificialmente exagerada quando estamos a lidar com universos de super-heróis ou de ficção-científica, em que as regras parecem ser feitas no momento e para serem quebradas, parte de um jogo elaborado. Por isso, o que está em causa nesses mundos abstractos nunca parece corresponder à grandiosidade cénica em concreto, porque, à partida, há sempre uma barreira de algum distanciamento emocional; a única vez que isso talvez não aconteça na filmografia de Nolan seja em Dunkirk (2017), em parte por ser baseado numa história verídica, e devido ao estilo visual relativamente comedido escolhido por Nolan nesse filme, jogando apenas com as linhas temporais da história. Em Oppenheimer (2023), porventura por também ser baseado numa história existente, Nolan estica ao limite as possibilidades do seu cinema sóbrio e contido, já que o assunto é suficientemente sério, e a personagem principal suficientemente envolta numa decisão maior do que a vida de todos. O resultado é um elaborado estudo de personagem, sem grandes floreados visuais, em que a forma de contar uma história ganha proeminência sobre os efeitos, e onde os jogos com as linhas temporais funcionam como forma de revelar informação através de uma espécie de reação em cadeia.
A primeira escolha importante de Nolan é mesmo em centrar a história na figura de Oppenheimer, e nas suas inquietações morais, quando muito facilmente este poderia ser um filme apenas sobre o Projecto Manhattan, sobre uma corrida de armamento ou a máquina de guerra americana. Esse é o trunfo maior do filme de Nolan, ao procurar dar-nos um contexto sobre o estado de espírito, as motivações e dúvidas do que já foi apelidado de “Homem mais importante da História”, para assim chegarmos perto de uma das escolhas mais importantes da humanidade, das suas consequências e cicatrizes. Mais do que ser um filme sobre ciência, a partir de certo ponto este é um filme sobre política e sobre filosofia, porque Oppenheimer, para gerir os diferentes egos de uma equipa e o impulso bélico do exército, tem de seguir esse caminho e Nolan acompanha-o, para mostrar, através desse processo político, a ingratidão do tempo e o desfazer de uma ideia de um novo mundo que Oppenheimer imaginava no pós-bomba, tomado por um declínio moral persecutório e hostil.
uma aproximação narrativa ao mecanismo que a bomba atómica utiliza, de várias pequenas explosões-fissões para criar uma reação em cadeia em que diferentes escolhas anteriores, pequenos momentos-explosões levam a um determinado acontecimento (…) todo o filme é sobre consequências.
Formalmente, Oppenheimer é o filme mais clássico de Nolan em muito tempo [mais próximo de Insomnia (Insónia, 2002)], o que deve-se em parte também à estrutura do argumento em três capítulos, correspondentes a cerca de uma hora cada um: numa primeira parte, assistimos ao despertar de Oppenheimer como cientista no realinhar das possibilidades da Mecânica Quântica e Física Nuclear numa mente inquieta (que Nolan evoca com instantes de alucinações de luzes e explosões), em paralelo com o despertar de uma consciência pessoal (através da relação com Jean, interpretada por Florence Pugh); uma segunda parte acompanha todo o processo do Projecto Manhattan e a afirmação pessoal de Oppenheimer mas também das suas dúvidas; e uma terceira sobre o pós-invenção da bomba atómica e o declínio da figura de Oppenheimer junto da opinião pública americana, à medida que este se aproximava de posições anti-belicistas. Nolan utiliza dois momentos distintos para percorrer esta história: o primeiro, “Fissão”, a cores, começa nos momentos finais de uma audiência, em 1954, destinada a renovar ou não as credenciais de segurança de Oppenheimer, e que mais parece um julgamento McCarthyiano sobre a sua vida; o segundo, “Fusão”, a preto e branco, em 1959, durante a confirmação no Senado americano de Lewis Strauss, o homem que conspirou para destruir o legado de Oppenheimer, e cujo processo é usado para revisitar o primeiro momento.
Se estas linhas temporais parecem artificialmente complicadas, confluem aqui especialmente para servir um propósito duplo: primeiro, que é a partir da não-linearidade do tempo (que Nolan explora continuamente nos seus filmes), um dos conceitos da Teoria Quântica, que Oppenheimer vai explorar diferentes hipóteses, mimetizado pelo filme com um entrelaçar da História, em que diferentes momentos influenciam outros e a forma como os percepcionamos e os observamos, independentemente da sua linearidade – por exemplo, a cena final ocorre em 1947, sensivelmente a meio desta história, mas a sua importância reverbera depois para o modo como olhamos em retrospectiva para certos momentos anteriores e posteriores [tal como acontece com uma cena-chave em Interstellar (2014)]; depois, uma aproximação narrativa ao mecanismo que a bomba atómica utiliza, de várias pequenas explosões-fissões para criar uma reação em cadeia em que diferentes escolhas anteriores, pequenos momentos-explosões, levam a um determinado acontecimento (o tal segundo evento, a fusão), como que ilustrando a forma como as decisões anteriores de Oppenheimer o levam a um certo caminho, que, por causa dessas escolhas e ricochetes, parecem inevitáveis: todo o filme é sobre consequências. Apesar desta estrutura permitir criar uma certa tensão narrativa, e de parecer intrínseca a esta história, fica também a ideia de que é complicada em excesso, de forma a problematizar outros momentos menos importantes – mas também ajuda a tornar duradouros momentos visualmente fugazes (como uma breve visão apocalíptica ou uma última imagem de Jean); é nesse equilíbrio que se joga o filme.
Esta fragmentação – ou atomização – da história é atingida através de uma montagem caleidoscópica, em que diferentes cenas respondem por vezes a outras de momentos temporais diferentes, e em que por vezes o campo / contra campo se joga não só com cenas diferentes mas com momentos distintos, num ritmo que vai acelerando ou diminuindo à medida que aumentam as consequências do que está em jogo, imitando a ansiedade das personagens. É uma composição que evoca outro biopic, JFK (1991) de Oliver Stone, um outro filme de acção quase sem cenas de acção, na sua construção metódica de um conflito com o tempo e centralizado no discurso. Porém, é também por causa desta construção em crescendo, que o filme acaba por esvaziar-se no seu último terço: nessa última hora, não só o que está em causa (o legado e reputação de Oppenheimer) parece muito menos consequente do que veio antes (a invenção e decisão de utilização da bomba), como ficam evidentes algumas das limitações da abordagem de Nolan: uma repetição excessiva de personagens em confronto e em diálogo, sem a gravidade anterior mas filmados com a mesma grandiosidade; uma redução procedimental a uma espécie de filme de tribunal; algumas cenas que destoam do tom do filme até aí, como um encontro surreal na Casa Branca; e uma personagem principal complexa e profunda mas rodeada de outras quase caricaturais, de propósito único (Cillian Murphy é um camaleão verdadeiramente impressionante, e apesar do resto do elenco estar repleto de boas interpretações, apenas Florence Pugh e Emily Blunt conseguem mostrar alguma emoção das suas personagens).
Mas… este último terço é resgatado por um final assombroso que remete para uma última questão, capaz de abrir a porta ao que terá atormentado Oppenheimer no pós-bomba (spoilers): a partir de certo ponto, depois da derrota alemã, surge a necessidade de justificar a continuação do desenvolvimento da bomba, e a implicação do seu uso contra um alvo japonês. Oppenheimer acredita primeiro que é vital terminar o desenvolvimento da bomba, que está a criar algo tão gigante e horroroso que impediria para sempre quaisquer novas possibilidades de guerra; depois, que esse poder tinha de ser demonstrado uma vez para não se repetir (acreditava que seria pior, se no futuro, duas potências nucleares entrassem em conflito sem nunca ter havido uma utilização prévia, porque essa primeira vez seria obrigatoriamente seguida de uma resposta e aniquilação mútua). Para Oppenheimer, tornado ele próprio numa espécie de estrela em extinção, este era um desafio impossível, o paradoxo de para salvar o mundo, também o condenar, uma ambiguidade que Nolan consegue manifestar. “Now I Am Become Death, the Destroyer of Worlds”. Terá sido Oppenheimer o “Homem mais importante da História”? Esperemos que não.
★★★☆☆