Em algum momento entre o reencontro com Albertine in memoriam e a soirée reveladora da princesa de Guermantes, Proust descobre que a arte consiste em uma promessa de felicidade; em Pialat, cineasta, segundo Bergala, do ressentimento (e portanto, do passado intransitivo, porque tudo é sequestrado pela conjugação mortuária daquilo que permanece arraigado na crónica desenvolta da textura de seu cinema como recalcado), como poderíamos imaginar a plenitude do presente intransitivo que a própria ideia de felicidade suscita, de hic et nunc elevado à categoria de eterno? Jamais ousaríamos endossar esta premissa epifánica, a princípio, mas apesar da dificuldade da captura in vitro de sua maravilha, a epifania vige lá, sobretudo em La maison des bois (1971). Vige, só que transfigurada pelo fragmento espectral, pelo estilhaço fantasmático da duração, daquilo que insiste em passar mas permanecerá incrustado no ente receptor mortal: na atenção crispada de uma criança para recordar o poema do albatroz por Baudelaire (o nome lhe foge, como a entonação…), no zoom intermitente de marulho com que refigura os planos de conjunto, no découpage sobriamente colorido (em suma: uma síntese da cadeia desordenada de impressões da vida no campo em seus detalhes mais vivazes, mesmo quando, com diligência de escolar atarefado, flagra a morte no trabalho, como no acidente que mata a esposa do Marquês) e no uso acidentado da duração conjugada ao travelling ótico como reveladora de estados de espírito com que nos restitui as sensações que também foram do Proust das raparigas em flor, do Renoir pai e do Renoir filho. Pialat coloca como pedra de toque de sua descrição buliçosa do pequeno mundo da província francesa uma ameaça de ruptura que o recupera, mas transido de morte pelo desaparecimento iminente suscitados pela Guerra, a idade adulta, a espada de Dâmocles da Necessidade.
Em La maison des bois, tudo pertence ao prestissimo do instante hebdomadário, que amanhã já mudou de registo, de pátina, de tom e de deus, de não-mais aqui que inerva toda captura de plano com a férula do ocaso. La maison des bois, obra-prima da pintura de caracteres e do motivo magistral (as flutuações do tempo e de seus objetos devaneantes sob a perspectiva da Duração infinita de uma paisagem de província, capturada em seus instantes pregnantes), é assombrada pela avó caduca e terna de Partie de campagne (Passeio ao Campo, 1946) de Renoir, mas esta agora é uma carpideira semi-hemiplégica que perdeu seus filhos nas batalhas de aeroplanos da primeira grande guerra. Meio século se passou desde as aquarelas naturalistas de Maupassant que Renoir filmou, e eis-nos diante dos destroços da impressão, da via crucis do fenómeno impressionista: a lentidão quase cósmica de nebulosa com que Pialat se aproxima de um corpo pousado sobre o areoplano decaído no final do quarto episódio é o leimotif chave de nossa circunavegação pelas errâncias da infância órfã da França do princípio do século passado; o luto impossível pelos corpos que permaneceram fora de quadro e de campo no cinema clássico e que agora, neste arrazoado neo-clássico anti-expressionista, que passou pelo mal-estar do cinema verdade e da Nouvelle Vague, nos aborda segundo o dom e o metro de uma eminente volta para casa, que no meio do caminho perdeu a vetustez e o cinzento claustral da vivenda senhorial para aprender a ser nova com os delinquentes da crónica pialatiana dos meados dos 60 e 70.
Pialat pratica em sua excelsa verdade uma arte do passado (a pintura de caracteres, o registro de uma vida em comum sob a égide da épica de uma época e um Nomos que foram nossos) que aprendeu, com os experimentos formais/experiências epocais das suas curtas-metragens turcos e de L’Enfance-Nue (A Infância Nua, 1968) (La maison des bois é, cronologicamente, a sua segunda longa-metragem, filmado enquanto tal em 16mm), a ser contemporâneo de seus pósteros sem abandonar a morada clássica da clareza e e da limpidez de registo (pelo menos aqui, quando mesmo sob a unção de patético in extremis do reencontro final de Hervé com Mãe Jeanne, tudo permanece no umbral da comoção jansenista).
Estoicismo e fé na vida são as coordenadas valorativas das crianças corajosas de Pialat em La maison des bois; se a finitude da vida fenoménica é o material de base com que devemos contar para edificar a subjetividade, é aos revezes novelescos descritos com atenção clínica por Pialat que devemos nos ater para capturar as cicatrizes temporais da existência, os pontos em que esta se incrusta machucando com decisão significativa: cada episódio se dedica ao retrato de um evento, um clima, um relato que deverão, ao cabo da totalidade do conjunto (e, de fato, o plano de conjunto é o emblema-chave de figuração na minissérie), reencontrar seu lugar no mosaico solicitado; a passagem transcendental do que passa é o diapasão deste caderno de anotações em fá sostenuto e destes gestos em suspensão (não o pretérito mais que perfeito do sido, mas o gerúndio ou o pretérito imperfeito para pósteros do sendo: processo do acontecimento pregnante). No último episódio (volta de Hervé com a família para Paris), como se recapitulando com arquitetura de Summa os detalhes do todo, nota-se a sistematicidade com que Pialat se utiliza de uma herança característica do cinema moderno, a integridade do tempo, dilatado pela ação contínua acompanhada em sua totalidade, sem contra-campo ou reenquadramento: a canção de Ravel ao piano, a recitação do poema de Lamartine ou o discurso do professor aos alunos entusiastas no dia do armistício. Aqui, a diferença está na sistematicidade com que este recurso fenomenológico de captura sans merci da presença humana é utilizado, mas durante toda La maison des bois o corte só vem quando solicitado pela integração num découpage variegado arquiteturado pelo plano sequência: a sequência do piquenique no bosque é um capítulo à parte de saturação aquarelada, de impromptus orquestrados pelo gesto imprevisto, de um ballet da duração entrecortada pela elipse abrupta, tão típica de seu cinema de fôlego curto mas grandes vistas humanas.
Com um rigor descritivo temperado pela ternura dispensada aos personagens e uma alacridade crepuscular de afinador de pianos fora de estação, Pialat redescobre seus dons de pintor nascituro: desenha, delineia, retoca adelgaçando, espessa maneirista, rarefaz em sfumato, erode os traços pré-rafaelitas do reboco inicial para sobrepor, às arestas do contorno de base, as fulgurações da paleta cromática; é o seu filme mais humano, se humano quiser dizer alguma coisa de um artista rigoroso nas linhas de estrutura e de fuga que também soube ser afetivo nas encenações encarnadas do gioco entre os atores, e levar o classicismo a se animar com o corpo inventivo do ator, centro ocluso e ressoante de tudo. Mas ao génio pictórico, La maison des bois acrescenta a fugacidade attaca che subito! do musicista, porque é uma obra moderna em seus horizontes de arranque: temporal. Quando Hervé volta para casa para rever Mamãe Jeanne doente, ele reencontra no caminho o seu amigo Marquês, e o découpage concertante de parada com que a intimidade paulatinamente se estabelece entre o menino, pai do homem (Wordsworth), e o homem idoso permanece em minha memória como paradigma da digressão acidulada de crepúsculo com que grandes cineastas dos 70, época acidentada, reelaboraram o classicismo como arte de transições, de partidas e de chegadas graduais que serão o umbral do passado revelado e do futuro presciente. Trata-se aqui de uma Lição a ser comentada pela posteridade dos filhos de Hervé e dos espectadores tardios dos 80: é preciso abandonar o passado (Madame Jeanne, a infância no bosque), voltar para a casa parisiense e aprender a crescer.
É para isto que o cinema, arte entomológica e mediúnica dos finais do século 19, nasceu: para ensinar e intuir, para vaticinar e profetizar. Romance de formação de rudeza camponesa, do detalhe diagnóstico, da musicalidade camerística, como também de elegância citadina da Belle Époque em seus últimos estertores, tinto do sangue da História madrasta mas também dos respingos de vinho na chupeta com que os adultos da época comemoravam o bebê recém-vindo, La maison des bois é também um espécime de ensinamento precioso, sob o ponto de vista genealógico, que nos mostra o que poderia ter sido a TV se Pialat, Paul Newman, Cassavetes, o Fassbinder de Nora Helmer (1974) e Berlin Alexanderplatz (1980) ou Marcel Bluwal tivessem sido a norma, e não a exceção sem amanhã. É uma obra-prima sem par em seu tempo, mas sobretudo hoje, diante da inanidade dos sub-produtos semi-apodrecidos (rubricas e retóricas empalhadas, reaproveitadas dos 80, sem o génio e a invenção que se poderia esperar de um meio tão caro aos huis clos de câmara e de câmera que consistiriam no uso ideal de sua miniaturização das grandes vistas mundanas do cinema, arte épica e classicista, pois a TV tem por objeto o homem médio em medianas proporções de cenário e de voz), que se disseminam pelas nossas telinhas de hoje. É um consolo (genealógico) e um lamento em coro suntuoso, a ser rememorado e comemorado sempre.