Um último artigo antes da pausa estival do À pala de Walsh durante o mês de Agosto só podia ter um tema: o próprio verão, e neste caso o desafio lançado aos walshianos passava por escolherem escrever sobre um acidente de verão: um escaldão, um gelado caído ao chão, um mergulho que corre mal, etc. Estas foram as respostas imaginativas dos nossos colaboradores, uma espécie de sortido de contos de advertências para o verão. Boas férias, mas com cuidado.

Era uma vez uma solteirona americana que decidiu viajar até Itália. Nas décadas de 1950-60, Hollywood produziu vários filmes a partir desta premissa, com pequenas variações aqui e ali. Abraçar a Itália, abraçar a Europa, deixar-se seduzir pelos seus encantos, era sinal de emancipação e de uma libertação do pensamento pequeno e mesquinho da América profunda – filmes como September Affair (Paraíso Proibido, 1950), Three Coins in the Fountain (A Fonte dos Amores, 1954), The Roman Spring of Mrs. Stone (A primavera em Roma de Mrs. Stone, 1961), Roman Adventure (Viver é o Que Importa, 1962) ou Light in the Piazza (Uma Luz na Praça, 1962), mostravam-se como sinais de modernidade. Estas turistas eram menos Martin Parr e mais Ruth Orkin, estas eram as mulheres que se passeavam por Roma, Veneza ou Capri vestidas em Dior par Marc Bohan, isto apesar do calor de brasa (ou calor de Brazzi).
Não se pode dizer que Katharine Hepburn seja propriamente uma campónia assoberbada pela beleza de Veneza (não seria possível imaginar Hepburn como algo que não fosse uma mulher sofisticada), mas tal não significa que ela seja imune à beleza do real, e à tristeza das promessas que não se cumprem (David Lean a pegar no lado ingrato das férias, isso de sermos empurrados para o confronto com as nossas expectativas e a nossa vida extra-férias). A queda de Hepburn num dos canais de Veneza acontece quando ela filma, é o olhar filtrado pela lente da câmara que a distrai a ponto de não se aperceber da proximidade do canal. Mas há um aliado que, em tempo útil, é capaz de agarrar a câmara, de modo que não se perca mais do que a honra – humilhada, mas com as imagens para contar a história! É a queda nos canais de Veneza que precede a queda nos braços de Rossano Brazzi, ele que começa por fintar o tornozelo dela em jeito Martini Man e acaba a mandá-la comer os ravioli – “You are like a hungry child who is given ravioli to eat. ‘No’ you say, ‘I want beefsteak!’ My dear girl, you are hungry. Eat the ravioli!“
Daniela Rôla

Filmada a preto e branco, com pouco mais de uma hora e meia de duração, a primeira longa-metragem de Roman Polanski, Nóż w wodzie (A Faca na Água, 1962) abraça, a partir do experimentalismo, um minimalismo ímpar. Confinado ao psicológico de três personagens – o casal Andrzej e Krystyna, e o jovem cujo nome não é revelado – e da relação interpessoal entre estas, é exatamente neste momento, no plano assinalado, que a tensão e violência tangíveis ao longo da narrativa, cuja intensidade progride gradualmente, entram em ebulição e atingem o seu clímax. A disputa física ocupa agora o espaço da provocação (até aqui) puramente verbal – e a faca, não sendo utilizada na sua função máxima de objeto cortante, que agride e fere, representa a intimidação, a dominação e a masculinidade patentes (e não latentes) procuradas por Andrzej e pelo jovem, refletidas no modo como, individualmente, se comportam e posicionam perante Krystyna. Como pano de fundo, vemos, precisamente, a figura feminina, alvo de desejo, sedução e atenção que, sob o olhar atento, observa passivamente a cena, até se ver obrigada a intervir quando Andrzej empurra o jovem – que, alegadamente, não sabe nadar – para o lago. O mesmo lago que, durante 24 horas, é navegado pelo trio e que, à semelhança do próprio espetador, percorre a sensação de um duplo enclausuramento: pelo espaço circunscrito e isolado em que a ação decorre e, simultaneamente, pelas incompatibilidades, a tentação, e a ambição de poder que se encontram envolvidas numa espiral sem fim.
Beatriz Fernandes

Assim que os meus colegas sugeriram o tema, o primeiro plano que me veio à cabeça foi imediatamente o escaldão da Margit Cartsensen, no filme Martha (1974), de R. W. Fassbinder. É certo que a memória cinéfila é sinuosa e logo a seguir vieram outras imagens e cenas, tal como as Les Vacances de Monsieur Hulot (Férias do Senhor Hulot, 1953), de Jacques Tati, ou as peripécias de uma Marilyn Monroe encalorada, em The Seven Year Icht (O Pecado Mora ao Lado, 1955), de Billy Wilder, talvez como mecanismo de defesa contra a violência e crueldade que tal plano desencadeia.
No entanto, aquela cena estava lá gravada, mais funda e primordial: uma imagem que se sobrepõem a todas as outras, quer em clareza, quer em sensação. O cinema é talvez a arte que age mais profundamente sobre o subconsciente – e ciente dessa possibilidade, Benjamin escreveu o famoso ensaio «A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica» – e essa misteriosa acção é capaz de povoar a nossa cartografia mental das mais invulgares e fantásticas formas. Tão certo é que vi Martha uma única vez, há mais de uma década na Cinemateca Portuguesa e jamais pude esquecer aquele corpo branco e sensual escaldado, graças a uma perversa ideia do marido de Martha, que deixa-a propositadamente adormecer ao sol para depois tocar-lhe e massajá-la enquanto fazem sexo. Fassbinder foi sempre implacavelmente requintado, tal como um Sade moderno, onde o prazer e a dor, o sexo e a morte estão intimamente ligados.
Bernardo Vaz de Castro

É a cena mais violenta de toda a filmografia de John Carpenter, realizador que normalmente prefere a violência apenas sugerida ao terror mais gráfico ou gore. Ainda recentemente ouvia o comentário áudio de Carpenter ao seu último – até ver, derradeiro – título, The Ward (O Hospício, 2010), e, nele, Big John recordava o chocante momento em que a miúda de Assault on Precinct 13 (O Assalto à 13ª Esquadra, 1976) é friamente assassinada à queima-roupa pelo líder de um bando de facínoras que aterroriza as ruas de L.A. A velocidade com que Carpenter executa esta cena é equivalente à frieza inadjectivável do gesto homicida. Segundos antes, a miúda teria sido poupada. Aliás, teria sido poupada se, primeiro, não lhe apetecesse comer um gelado num dia quente ou, segundo, se o vendedor de gelados tivesse acertado no pedido! É que o sadismo de Carpenter nessa sequência vai ao ponto de tornar este homicídio também o resultado de um mero acaso (e, portanto, digamos assim, Carpenter torna-se, deste modo, ainda mais cúmplice desse acto bárbaro). É que a miúda tinha pedido “Vanilla Twist” e o vendedor de gelados foi vender-lhe apenas baunilha normal. Ela volta para trás, para reclamar o tal “Twist”, sendo que, entretanto, a carrinha dos gelados já foi atacada pelo temível gangue, com o dono da carrinha a contar os segundos que lhe restam no planeta Terra.
“I want Vanilla Twist” – as últimas palavras da miúda na Terra, palavras de uma cliente reclamando o gelado a que tem direito. A resposta, em contra-campo, é um tiro quase silencioso, disparado com total indiferença. O sangue polvilha a baunilha simples com um vermelho cor de morango. Uma combinação vencedora sugerida na paleta, mas só voltaremos a ver a miúda em queda. O “Twist” sem baunilha dita o fim abrupto e bárbaro desta micro narrativa. Carpenter cita-a como o grande momento-choque na sua filmografia, mas estava a ser modesto, pois é também a mais perturbante sequência de toda a Nova Hollywood (alguém discorda?). Trata-se de uma espécie de “marcação do território”, como quem avisa: “nem pense duvidar, por um segundo, da perversão desta gente”. Não mais Carpenter recorreria a tamanha “bomba atómica” para “estabelecer” as personagens dos seus filmes de cerco, em que habitualmente a maior violência radica nas relações de poder (paranóicas e, ulteriormente, auto-fágicas) entre humanos ou organizações do que na chacina arbitrária de inocentes. Inocentes comedores de gelado.
Luís Mendonça

Depois do recolhimento do outono, da letargia do inverno e do despertar da primavera, chega finalmente o verão, com os campos de férias, os adolescentes e… a líbido à solta. Para os adolescentes (mas não só) o verão é a estação dos excessos e o cinema de terror tem-nos submetido a matanças macabras num subgénero a que se convencionou chamar slasher. Para chegarmos aos slashers, que se multiplicam ao longo da década de 1980, podemos sintetizar um roteiro, ainda que com um ou outro desvio, que parte dos primeiros exploiteers, que atuavam à margem do Hays Code, subscrito pelos grandes estúdios, e segue por Herschell Gordon Lewis, Reazione a catena (Baía Sangrenta, 1971) de Mario Bava e The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974) de Tobe Hooper, até Halloween (O Regresso do Mal, 1978) de John Carpenter. Imensamente inferior aos exemplos anteriores, ainda assim, Friday the 13th (Sexta-Feira 13, 1980) de Sean S. Cunningham possui algumas virtudes, tendo sido assimilado pela cultura popular como nenhum deles, tornando-se no verdadeiro motor do fenómeno. Nos anos seguintes, este título não só deu origem a inúmeras sequelas, como popularizou junto do grande público um interior da América, dominado por famílias ameaçadoras arredadas da civilização, sangrentos campos de férias e escaldantes cenas de sexo entre adolescentes. Carol J. Glover dedicou um estimado livro ao conceito de “final girl”, a rapariga virginal que, no contexto dos slashers, sobrevive às investidas do serial killer.
Segundo Linda Williams, o cinema de terror mais visceral apela a uma ideologia do excesso enquanto reação ao “estilo clássico de Hollywood”, enquadrado por David Bordwell, Janet Staiger e Kristin Thompson. Williams sugere ainda, a partir de Rick Altman, que a sensação, o excesso e a espetacularidade no cinema de terror se apresentam como norma, enquanto no modelo clássico de Hollywood são apenas admitidos como exceção. Retirado de Friday the 13th, o plano que escolhemos é uma bela prova que podemos encontrar no cinema sobre o modo como o excesso do estio se pode traduzir numa alteração da perceção sensorial. Nos últimos momentos do filme, a “final girl” sentada numa canoa procura refúgio no centro do lago, onde a água calma espelha a área circundante. Entre o real e o sonho, a figuração agressiva e a abstração aparentemente tranquilizadora, o cenário exprime a imagem de um interior corroído pelas memórias dos incidentes atrozes ocorridos. Por volta de 1990, o artista plástico Peter Doig iniciou a produção de um conjunto de telas e desenhos inspirados em fotogramas dos últimos planos de Friday the 13th. O fotograma que apresentamos deu origem a uma obra-prima da arte contemporânea a que Doig deu o nome de Swamped (1990). Doig traduz a experiência do excesso numa visão ainda mais alucinada, esbatendo a fronteira entre o sujeito e o seu reflexo, num eco continuo em movimento entre os dois polos, que vai transfigurando as formas reconhecíveis, rumo a um excesso sensorial que apenas um enviesado verão eterno pode acomodar.
Carlos Alberto Carrilho

Na metafísica clássica, o acidente é uma anfractuosidade secundária na economia totalitária do ser: seixo, grão, rugosidade que passa segundo o gerúndio do passando; no cinema, arte temporal digressiva ou dicotômica (o contracampo), a temporalidade tornou-se uma eminência suprema, e o acidente, sua virtù constitutiva; em La femme de l’aviateur (A Mulher do Aviador, 1981), quiproquó assombrado pela metempsicose surrealista de género e de estrutura (o carteiro protagonista que dorme, o parque Buttes Chaumont, as correspondências entre eventos a princípio irredutíveis um ao outro e que se encontram sob os auspícios do menino deus Acaso, como os encontros inesperados de François com Anne, Christian e François, François e Lucie no ônibus, etc), o dom epifánico da narrativa e suas curvas sinuosas é obra de um metódico exercício de usufruto do cinema moderno, que inclui as afabulações do plano sequência, do Nagra e da câmera na mão, da locação e da luz natural: quem dará o próximo lance nesta amarelinha filmada nos arrondissements de Paris? Um thriller anti-climático baziniano… em um texto que ainda hoje me impressiona de sua lavra, Pascal Bonitzer nos fala da relevância da casualidade para o filme de Rohmer; e o que melhor nos restitui este imbroglio de circunstâncias que nenhum metro jamais regrou ou personagem calculou, senão a foto tirada no Buttes Chaumont, que nos ensina que existe um aprendizado, embora secreto, para o advento da Verdade, e que este implica necessariamente a cooptação do sujeito causal pelas retas nada causais do intempestivo Acaso, credo e ave rerum que um dia foi nosso?
Ao encontrar a buliçosa Lucie no ônibus (o primeiro de uma série de acidentes “jamais n’abolira le hasard” de que o cineasta se serve como plataforma para uma amarelinha dos semideuses, apenas em aparência entes que cumprem o programa lapidar do auto-controle da própria vida), François jamais poderia acreditar (se seu conto fosse contado por outro que não por Rohmer, discípulo de Rossellini e de Renoir, os dois epígones eminentes de mise em scène e da forma balada do cinema moderno na Europa), que o destino de sua relação com Anne sofreria uma inflexão fatal, propriamente submetida ao Fatum trazido pela angelical Lucie, mensageira de estrelas e decisões intempestivas; o parque dos surrealistas assistiu ao acidente de André (Breton) conhecendo e, num mesmo movimento abrupto, perdendo para sempre Nadja, mas também à concepção do Paysan de Paris por Louis Aragon. Em A Mulher do Aviador, ele muda as coordenadas de uma narrativa (desvio do foco de Anne para Lucie, e afinal de casal) e de cinco vidas, que passam a dançar segundo a quadrilha de sua troca e alternância de pares, sob o diabolismo transparente lazuli de um dia claro de verão; Rohmer foi neo-clássico e moderno (quando pelas ruas de Paris, Nagra na mão mas jamais zoom actualités), porém sua inspiração tardia conheceu os cimos oxigenados de diferença do Acaso: a acidentada captura lumièriana da foto de Lucie, de Anne (mostrada por François para Lucie) e da mulher do aviador jogam o espectador num vertiginoso carrossel baziniano de empreintes de verité, que caberá unicamente à recepção atenta e atenciosa (para com o jogo dos atores, das ramagens ao vento, do hic et nunc que nos afronta no hierofântico filme laico de Rohmer) desvendar e deslindar. Obra-prima sobre o Acaso elevado à dignidade de maestro da mise en scène (repito: o que poderíamos esperar de um fiel discípulo de Renoir e de Rossellini?), A Mulher do Aviador é talvez o mais generoso presente de Rohmer para seu espectador habitual, aquele que sabe que sob o sussurro inopinado das folhas das árvores se oculta talvez um malicioso demiurgo, cuja maior ruse consiste em nenhum estratagema empregar, pelo menos sob o fluxo anódino das aparências, arte por excelência do cinema.
Luiz Soares Júnior