Sur ce sentiment inconnu dont l’ennui, la douceur m’obsèdent, j’hésite à apposer le nom, le beau nom grave de tristesse.
Françoise Sagan, Bonjour tristesse (1954)
Se o leitor ou a leitora deste texto pertence àquela estirpe de pessoas que foram picadas pelo bichinho das tatuagens à saída da adolescência, certamente já tiveram de explicar o significado de alguma delas a um olhar mais curioso. No meu caso, além de aproveitar para dar uma lição de História de Portugal de cada vez que um francês me pergunta que flor é esta que tenho no braço – um cravo vermelho, claro está –, quando me interrogam sobre o rabisco no meu pulso esquerdo, faço sempre questão de precisar que “não, não é só uma lágrima a cair de um olho” (e diga-se de passagem que esta descrição da tatuagem soa de tal modo cliché que quase me arrependo de a ter feito – bem, o facto de o tatuador ser um ex-namorado também não ajuda, convenhamos).
Adiante: tal como os red shoes que adornam o meu tornozelo, este olho traçado a preto é, acima de tudo, um clin d’œil cinéfilo. O grafismo foi pedido emprestado ao artista Saul Bass, autor dos cartazes e dos genéricos dos filmes de alguns dos maiores cineastas de Hollywood, como Alfred Hitchcock, Billy Wilder, Stanley Kubrick, Martin Scorsese e, sobretudo, Otto Preminger, com quem colaborou numa dúzia de projetos – entre os quais o sublime, mas mal amado, Bonjour tristesse (Bom Dia, Tristeza, 1958).

O genérico em questão, acompanhado por uma melodia instrumental pungente que dificilmente esqueceremos, apresenta uma iconografia estilizada que associamos às sucessivas estações do ano: pequenos círculos e asteriscos coloridos vão preenchendo o ecrã, inicialmente em tons quentes que evocam os pores do sol de fim de verão ou a folhagem outonal, depois progressivamente mais frios, como se fossem flocos de neve, pétalas de cristal ou uma chuva torrencial (de lágrimas?); até que, por fim, em torno de uma das gotas pintadas a azul, surgem os traços de um rosto feminino: nos lábios finos, um sorriso de Mona Lisa; nos olhos, dois corações em vez de pupilas.
Foi precisamente com um destes olhos lacrimejantes que escolhi decorar três centímetros do meu corpo, como um lembrete para acolher – a fim de aprender a melhor viver com eles – os humores mais sombrios que, de quando em vez, me visitam. Mas deixemos de lado as minhas tatuagens e os meus humores, e cedamos a palavra a quem tão bem os soube descrever:
“Sobre esse sentimento desconhecido cujo tédio, cuja doçura me inquietam, hesito em usar o nome, o belo e profundo nome de tristeza. É um sentimento tão complexo, tão egoísta, que quase me envergonha, ao passo que a tristeza sempre me apareceu digna. Esta, eu não conhecia, mas sim o tédio, a saudade e, mais raramente, o remorso. Hoje, algo se dobra sobre mim como uma seda, leve e suave, e me separa dos outros.”
Assim começa Bonjour tristesse, o romance de estreia de Françoise Sagan, escrito num Verão, após ter chumbado nos exames de acesso à Sorbonne, e publicado, em 1954, quando esta tinha apenas 18 anos. Envolto pela aura existencialista em voga, o livro tornou-se rapidamente uma referência para toda uma geração de jovens franceses da classe burguesa, que começavam a ganhar consciência da frivolidade do seu estilo de vida no pós-guerra; mas o sucesso sem precedentes de Bonjour tristesse deveu-se também ao facto de a sua autora ter sido alvo de polémicas e até de censura em vários países: em causa estava o retrato traçado por Françoise Sagan de uma juventude privilegiada e promíscua, protagonizada por uma jovem caprichosa e atreita aos prazeres da carne, na época considerados como inaceitáveis para uma jeune fille rangée.
O escândalo não impediu o romance de Sagan de ser rapidamente adaptado por Hollywood, num argumento de Arthur Laurents levado ao ecrã, em 1958, por Otto Preminger. O realizador de Laura (1944) encontrava-se então numa fase de transição, entre os films noirs centrados em estudos psicológicos de femmes fatales sob rostos angelicais [Angel Face (Vidas Inquietas, 1952)], e as superproduções em torno de temas históricos ou políticos [Exodos (1960); The Cardinal (O Cardeal,1963)]. Com efeito, em meados dos anos 50, cansado de fazer concessões à Fox e na mira dos defensores do Código Hays, Preminger decidiu assumir as rédeas – e o financiamento – de projetos mais pessoais, como The Man with the Golden Arm (O Homem do Braço de Oiro, 1955) ou Saint Joan (Santa Joana, 1957). Apesar de ter sido um fracasso, é graças a este último que Preminger descobriu, entre as milhares de adolescentes que se candidataram às audições para o papel da heroína Jeanne d’Arc, uma jovem atriz que viria a marcar a história do cinema nas décadas seguintes: Jean Seberg.

Ao lado de atores top notch como David Niven (no papel de Raymond, o pai viúvo e Don Juan inveterado e imaturo) e Deborah Kerr (no papel de Anne, a amiga de família, mulher independente e futura candidata a madrasta), Jean Seberg, com o seu look pixie icónico, revela-se deslumbrante na pele da jovem Cécile, bronzeada pelo sol da Côte d’Azur, ora em fato de banho, ora em vestidos de haute couture Givenchy. Se a deliciosa cumplicidade (levemente incestuosa) entre Cécile e Raymond nos conquista de imediato – são sem dúvida o “casal” com maior química do filme –, é sobretudo pelo seu caráter de menina mimada que a personagem interpela (e diria até que é ela “a pior pessoa do mundo” de quem descende a Julie de Joachim Trier, tão irresistivelmente imperfeita quanto esta – ainda que as consequências dos seus atos se venham a revelar bem mais trágicas). Apesar de se mover num meio social inacessível à maioria dos comuns mortais, a personagem não deixa de nos comover com as suas idiossincrasias de adolescente que quer ser tratada como uma mulher e que, ao mesmo tempo, deseja que nada jamais mude em seu redor, sendo capaz de tudo para afastar aqueles que ameaçam o status quo. Como Cécile, muitos de nós já desejámos que o verão nunca terminasse; e, como ela, também nós conhecemos, mais tarde ou mais cedo, a desolação de um quotidiano sem sentido, para sempre manchado pelas consequências das ações passadas.
Fiel ao romance de Sagan, o filme de Preminger, narrado na primeira pessoa, evoca a série de acontecimentos que, bruscamente no verão passado, transformariam profundamente o modo como Cécile encara a vida. Estes eventos surgem na forma de longos flashbacks que tingem o presente da narração introspetiva de Cécile com novas tonalidades emotivas, num cocktail agridoce onde se misturam nostalgia e remorsos, melancolia e alienação. Para figurar a fissura aberta na consciência da protagonista, o cineasta recorre a uma solução visual simples, e que provavelmente seria considerada como um cliché nos dias de hoje, mas que, ao mesmo tempo, é perfeitamente coerente à luz da estrutura narrativa do filme: o passado na Riviera Francesa, rememorado como um paraíso perdido, é representado a cores, enquanto as sequências do presente desencantado e monótono em Paris, que abrem e concluem Bonjour tristesse, são filmadas a preto e branco.
Para além de situar temporalmente as sequências do filme, este procedimento revela-se finalmente mais complexo, ou até subversivo, no que diz respeito à psicologia das personagens, na medida em que o Technicolor resplandecente não só é usado para “embalsamar” as memórias de um passado que talvez não fosse assim tão perfeito, como torna opacas as verdadeiras motivações e maquinações de Cécile, que só vamos compreendendo graças à narração em off; em contrapartida, o preto e branco reflete com uma limpidez implacável a sua tomada de consciência do lado mais sombrio da sua existência – cristalizado no grande plano final, em que Cécile tira a maquilhagem em frente ao espelho e, sob a máscara, revela a cara que merece; e ouvimos, novamente, a melodia eternizada pela voz de Juliette Gréco: “Amie qui me ressembles / Tu est le seul miroir / Où je peux contempler ma jeunesse / Bonjour tristesse.”

Nunca tive a oportunidade de passar um verão assim na Côte d’Azur mas, graças a Bonjour tristesse, imagino que seja exatamente como Preminger a pintou: uma temporada de dolce far niente em CinémaScope e em Technicolor; banhos de sol e de mar, gelado ao pequeno-almoço para curar as ressacas de champagne, noites de dança, de jogos de sorte no casino e de passeios ao luar. De forma semelhante, também a fotografia a preto e branco exalta na perfeição o charme intemporal de Paris, como anos mais tarde os cineastas da Nouvelle Vague se encarregarão de mostrar: viver (em) Paris, nos anos 60, é percorrer os boulevards sem rumo a bordo de um automóvel, é flâner e swinguer ao som do jazz nas ruelas e nos caveaux do Quartier Latin, é tentar esquivar-se ao ennui encadeando encontros fortuitos… E gosto de pensar que não só À bout de souffle (O Acossado, 1960) não existiria se Preminger não tivesse descoberto Jean Seberg, como muito provavelmente Le Mépris (O Desprezo, 1963) e Pierrot le Fou (Pedro, o Louco, 1965) não seriam os mesmos filmes se Godard não tivesse visto Bonjour tristesse. Estes são apenas alguns dos exemplos das marcas duradouras que o filme de Preminger deixou na memória cinéfila, e às quais me permito acrescentar, a uma escala bem menor, o desenho indelével do olho de Saul Bass no meu pulso: não, não é só uma lágrima a cair de um olho; é uma despedida da idade da inocência, e um “bom dia” ao aprender a pintar a vida com uma nova paleta de emoções.
Bonjour tristesse será exibido na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema nos próximos dias 4 (19h) e 24 de Agosto (21h30 – sessão ao ar livre), no âmbito do ciclo Technicolor: O Esplendor da Cor.