O Verão já chegou, e do monumento biográfico Oppenheimer (2023) ao sensível filme da realizadora basca Estibaliz Urresola Solaguren, 20000 especies de abejas (20000 Espécies de Abelhas, 2023), é fácil coleccionar menções de sereias enquanto parábolas sobre o desejo humano na cultura popular. Não importa se durante a era dourada do Capitalismo após a Segunda Guerra Mundial, se neste nosso Pós-Capitalismo. Neste segundo filme então, é-nos dito que um dos símbolos do Romantismo Europeu é real, pois mesmo que não ande entre nós, tudo o que existe na nossa imaginação (estou a parafrasear) é real. Para lá da óbvia viagem pela descoberta da identidade da criatura marinha que tem o tronco de uma mulher humana mas a cauda de um peixe, as sereias tanto são seres mitológicos temidos (porque são predadores) como são abraçados enquanto signos de renascimento e renovação necessária à vida e ao devido crescimento dentro dela. A ligação intrínseca entre as sereias e o mar é ainda mais poderosa porque dele podem sair. Escondidas à vista de todos, vivem divididas sem lugar de pertença, entre mundos.
Night Tide (A Noite do Terror, 1961), de Curtis Harrington, é um mergulho livre em código queer à vista de todos. E expande o filme de Solaguren. Onde há signos, há também terreno a ser mapeado sobre o Outro – “O que estamos a ver? O que há aqui para desvendar e compreender?”. A transferência é sensorial como filme artístico no seu entendimento do cinema enquanto chama que deflagra sem se ver. Nesta primeira aventura de Harrington no circuito do cinema comercial, o Outro é trazido para primeiro plano num filme sereno mas prontamente psicossexual, onde se faz da fábula noir das sombras atmosféricas reino do sobrenatural, algo que só os melhores B-movies da década de 1960 (boom do cinema exploitation) conseguem despertar. O facto de que é um filme passado numa praia, neste caso na Califórnia, só alarga ainda mais os sentidos da fantasia.
Parte filme de género estival, parte observação sobre a mulher enquanto criatura marginalizada e fetichizada, as violentas imagens de que se enche o filme inscrevem o seu movimento, em vez da montagem delas o fazer.
Trazido até nós por Nicolas Winding Refn que quer, através do seu projecto de curadoria online, “byNWR”, restaura o valor e estatura culturais de filmes raros ou esquecidos, a cópia restaurada de Night Tide, cujo negativo original Refn possui, é um de 24 filmes, todos Americanos e da década de 1960 e 1970, seleccionados e agrupados num programa da Mubi, e a sua descoberta é, por si só, lustrosa. É o primeiro filme de Dennis Hopper enquanto protagonista. E entre ares de Kenneth Anger e Maya Deren, notórias influências e amigos e mentores com quem Harrington trabalhou, este é antes de mais o filme que coloca fim a quase duas décadas da sua dedicação absoluta às curtas-metragens avant-garde, para colocar em prática agora de forma mais expansiva a sua paixão pelo oculto, pelo ponto nevrálgico do desconhecido, especialmente em tudo o que estava relacionado ou tocava de alguma forma em Edgar Allan Poe e as suas histórias.
A linguagem expressionista de Poe é mais do que evidente em Night Tide, com ênfase para a dualidade entre o natural e o sobrenatural, que se imaginaria sempre replicada neste preto-e-branco granuloso. Até a nível estrutural o filme segue as pegadas da novela literária. Esta é uma pérola noir à beira-mar com um parque de diversões no seu centro – exactamente como Carnival of Souls (O Circo das Almas, 1962) ou até Us (Nós, 2019) -, onde a tensão é conjurada e não se restringe à premissa. É o mood instalado que o impulsiona. A poesia de cada espectador faz o resto.
E a história é simples. Um marinheiro (Dennis Hopper) apaixona-se por uma misteriosa rapariga (Linda Lawson) num clube de jazz. Ela pode ou não ser uma criatura marinha que atrai homens com o seu canto e os mata. A beleza estonteante da jovem mulher e o medo, neste caso Americano, da liberdade da sexualidade feminina expõem a dúvida. Assim que a rapariga explica que trabalha no parque de diversões como uma das atracções do Capitão Murdock (Gavin Muir), ‘Mora a Sereia’, e que enquanto jovem rapariga foi supostamente resgatada pelo mesmo na ilha grega de Mykonos, o filme encontra o seu balanço entre a ameaça gótica, o saudosismo discreto e o comentário social. O batimento do seu coração assemelha-se ao terror do não é pronunciado.
Parte filme de género estival, parte observação sobre a mulher enquanto criatura marginalizada e fetichizada, as violentas imagens de que se enche o filme inscrevem o seu movimento, em vez da montagem delas o fazer. E são elas também que catalisam o que se encontra para lá da superfície brilhante das ondas do mar naquele azul polposo. Há uma sequência de jazz logo no início a documentar a contracultura, Mora dança na praia como um ser electrizado por um ritual ou exorcismo, há uma leitura de cartas de Tarot livre de clichés, uma sequência debaixo de água, e a arrepiante (não esquecer sexualizada) figura de um animal morto na sua jaula exposto para ser visto por todos.
Harrington decide sacrificar Mora para falar sobre a opressão feminina; a falta de alternativas. O elemento do parque de diversões é confirmação disto mesmo; cria terror com as luzes bem acesas. O realizador agarra neste lugar, físico e social e emocional, e faz dele sonho febril, na altura em que os recantos da psicologia começavam a cruzar-se com o cinema.
É um esforço fascinante do início da década de 1960. E nele, um Hopper subtil e nervoso, tão awkward como o jovem marinheiro que protagoniza, depara-se com a vulnerabilidade do seu personagem numa estranha terra onde tudo começa e acaba num parque de diversões. A expressão aberta e solarenga de Linda Lawson exactifica a viagem, mas nada sugeriria o aterrar anti-climático da narrativa que entretanto, quando nos apercebemos realmente, já chegou. Depois de tanto canto, tanta transferência do que não se expõe visualmente, a falta de catarse e o assalto ao mistério in cold blood desbloqueia tudo e transporta-nos para uma seca realidade.
Nos meandros da nostalgia do Verão, deparamo-nos assim no final de Night Tide com o desmaiar da expectativa depois do exercício de tanta acuidade visual. Os amantes não podem ficar juntos e estes dois são o Romeu e a Julieta de Venice Beach. Tudo é espaço cru, pura criação, sentimento e excitação. Sente-se a música e as vibrações dos beatniks. Há medos primordiais e simbologia que os separa; animal e humano, mulher e homem, ambos deslocados do seu habitat natural. A rapariga é inalcançável, porque é pertença da mente de quem a fez sereia. Mas não há só dois lados para cada história. Há mais, muitos mais até Night Tide se tornar monólogo. O marinheiro representa apenas o medo. Ele quer compreender as complexidades de Mora. Mas há um vilão, um homem que, obcecado por ela, a tenta dominar a todo o custo. E Harrington decide sacrificar Mora para falar sobre a opressão feminina; a falta de alternativas. O elemento do parque de diversões é confirmação disto mesmo; cria terror com as luzes bem acesas. O realizador agarra neste lugar, físico e social e emocional, e faz dele sonho febril, na altura em que os recantos da psicologia começavam a cruzar-se com o cinema.
Posto isto, descobrir o filme agora em tempos de transformação social é centrá-lo nos primórdios da rebeldia e activismo basilar da BBS, dos rascals da Nova Hollywood. É pensar em Hopper como voz que abraçou os marginalizados e os trouxe para o ecrã num cinema negociado para ser livre. Vê-lo aqui antes de tudo isso e fazer a ligação é lacrimejante. Nas imagens atordoadas dos carrosséis e da roda gigante e do fluxo e refluxo das ondas do mar, imparáveis e movidas a adrenalina, acedemos a uma memória longínqua de um tempo romantizado, de imagens que se têm vindo a espalhar, que contaminam dentro ou fora do contexto, e que muitos não saberão ser deste filme. Tal e qual as imagens dos nossos verões! E este ano não será diferente. A dominância do homem que diz amar cegamente é a dominância de uma América que tudo quer controlar, e que tende a categorizar aquilo que não consegue de selvagem. Na verdade, só lhe dá ainda mais poder. A simples ideia de uma mulher verdadeiramente livre era assustadora. Fazer-se sereia então era e é não ter que escolher ser uma coisa ou outra. É ser-se simplesmente. Também não interessa se há ou não sereias em Night Tide da mesma forma que não interessava se havia ou não panteras em Cat People (A Pantera, 1942). Tudo o que toca na psique humana, toca na realidade. A implantação do canto de tais imagens no nosso cérebro, algo que se veio a desenrolar e vincar com espessura através de Zulawski, com Possession (Possessão, 1981), tem aqui o seu primeiro rascunho.
Night Tide faz parte do programa Restored by Nicolas Winding Refn e pode ser visto gratuitamente na plataforma MUBI.