Se há frase usada até à exaustação, é certamente a tirada de Oscar Wilde sobre a vida imitar a arte e não o seu contrário. No entanto, e correndo o risco de arrastar comigo alguns desses clichés, não posso deixar de pensar no estranho e sombrio eco que as palavras de Wilde têm sobre Cruising (A Caça, 1980), de William Friedkin – e acrescentaria ainda um outro filme, Shivers (Os Parasitas da Morte, 1975), de David Cronenberg, como o segundo sinal premonitório daquele que foi um dos capítulos mais terríveis na história da comunidade LGBT.
Nem Cronenberg, em 1975, nem mesmo Friedkin, em 1980, poderiam imaginar o que seria a epidemia do HIV (os primeiros casos remontam a 1981, sob a infame sigla GRID (Gay-Related Immune Deficiency), e que só um ano depois será renomeada, dando origem à sigla AIDS). No entanto, enquanto espectador posterior à fase inicial da epidemia do vírus e à sua disseminação, não consigo deixar de pensar que a lógica mortífera que conduz ambos os filmes, é a mesma que está presente no HIV. Tanto o prédio de Cronenberg, tomado de assalto por um estranho organismo, como os parques e os bares nocturnos de Friedkin, cruzam-se no meu imaginário, configurando-se como parábolas que anteveem duas sombrias décadas de perda, dor e terror.
Mas não é apenas a sombra do vírus que paira sobre este filme, que o torna inquietante. O mal e a brutalidade que lhe é inerente espalha-se tal como uma doença que corrói tudo à sua passagem. Ninguém escapa ileso. O próprio deambular do “cruising”, adquire o sinistro contorno de uma caçada (não é por acaso que a tradução do título para português, A Caça, é particularmente feliz). O próprio prazer no filme nunca é um prazer cândido – mesmo a relação entre o par Al Pacino-Karen Allen, à medida que a investigação avança (e é particularmente inteligente o uso da pulseira de cabedal com tachas no pulso de Al Pacino e no olhar que Karen Allen lança sobre este adereço enquanto é brutalmente sodomizada) vai distorcendo o estado de graça inicial do casal – pelo contrário, o sexo é a manifestação do poder. É por isso que o filme começa com duas mulheres trans e trabalhadoras do sexo a serem abordadas pela polícia e sujeitas à prestação de “serviços” dentro do carro de patrulha. O próprio rosto de Al Pacino (um rosto capaz de abarcar todo o tipo de agruras, da droga – The Panic in the Needle Park [Pânico em Needle Park, 1971] – às tormentas do sexo), ao longo do filme, vai perdendo a alvura da inocência para dar lugar às olheiras, às marcas da violência e ao olhar final (que abre o filme a uma outra possibilidade).
Mas Friedkin nunca é moralista, pelo contrário, o sexo é apresentado tal como é (e este pode ser inúmeras coisas). O próprio “cruising” é mais do que uma mera prática sexual (e Friedkin compreendeu-o muitíssimo bem), é antes a reivindicação política dos gays à cidade, é a reinvenção do espaço público. O parque que de dia serve à família heterossexual, é sob a luz da lua, um local de sexo, voyeurismo e caça. As ruas que de manhã dão lugar ao corrupio dos honrosos trabalhadores, são à noite infestadas por corpos masculinos que procuram a diversão, o prazer e o dinheiro. Os próprios bares que aparecem no filme são os “safe space” de uma comunidade que só ali (e na descrição da casa) pode ser realmente livre. Os códigos da masculinidade e da virilidade, assim como a própria imagem da polícia (na mítica cena em que Al Pacino se depara com uma noite temática onde todos os homens estão fardados à polícia), são reconfigurados. O léxico homossexual só pode ser descodificado pelos próprios homossexuais (isto é tão evidente no significado que cada cor de lenço tem e na posição do mesmo no bolso esquerdo ou direito das calças).
Cruising foi destratado pelos críticos, gerou manifestações e reacções violentas e ainda suscitou pedidos junto da câmara nova-iorquina e das forças políticas, para proibir a sua exibição e circulação. Em causa estava a ideia (absurda a meu ver, até porque o Cruising é uma das minhas obsessões cinematográficas) de que o filme era homofóbico e pretendia denegrir a comunidade LGBT.
Há ainda um outro aspecto que assombra Cruising. Apesar da distância que separa a tumultuosa estreia do filme e o tempo presente, reverberam ainda certas polémicas sobre o mesmo – apesar do dispositivo banal, que intercala entrevistas com excertos de filmes e a arqueologia bastante limitada do possível cinema gay/queer/camp dentro da máquina hollywoodesca, o documentário de Rob Epstein, The Celluloid Closet (O Outro Lado de Hollywood, 1995), não deixa de ser pertinente na reavaliação que faz do filme, assim como na discussão que abre às possíveis representações da homossexualidade na indústria americana. Friedkin era um nome popular dentro da comunidade LGBT após a realização de The Boys in the Band (Os Rapazes e a Banda, 1970), um dos primeiros filmes onde a homossexualidade surge retratada sem qualquer tipo de rodeio e onde a variedade dos personagens, extrapola a imagem “amaneirada” da representação clássica dos homossexuais no grande ecrã. E não podemos ignorar a escala e a repercussão do filme, porque apesar de The Boys in the Band ser contemporâneo de Waters, Anger, Warhol, Morrisey ou Markopoulos; para não falar dos cineastas porno homossexuais que então surgiam, tal como Halsted, Poole ou Deveau (e mantenho-me, é claro, dentro do círculo americano, porque muitos outros nomes haveria a citar, sobretudo do outro lado do Atlântico, tal como Fassbinder, Prauheim, Schroeter ou Ackeren), eram cineastas de nicho e muitíssimo mais radicais que o filme de Friedkin.
Mas nem o estado de graça que Friedkin gozava o salvou da fervorosa reacção por parte da comunidade LGBT, aquando da estreia. Cruising foi destratado pelos críticos, gerou manifestações e reacções violentas e ainda suscitou pedidos junto da câmara nova-iorquina e das forças políticas, para proibir a sua exibição e circulação. Em causa estava a ideia (absurda a meu ver, até porque o Cruising é uma das minhas obsessões cinematográficas) de que o filme era homofóbico e pretendia denegrir a comunidade LGBT, e em particular a comunidade BDSM, que então saía do obscurantismo das caves e dos parques para o grande ecrã, revelando códigos, hábitos, indumentárias, em suma, um modo de vida incompatível com o caminho aberto à “integração” e à “normalização” da comunidade LGBT.
Creio que este foi o problema central do filme: Friedkin ousou revelar aquilo que não poderia ser revelado (e em toda a sua diversidade – desde a mala no quarto, na cena do primeiro homicídio, onde nos é apresentada uma imensa parafernália de objectos sexuais, que vai dos dildos aos poppers; até a uma cena de fisting). Enquanto a comunidade LGBT surge bem-comportada, reconhecível e integrada nos hábitos da normatividade em The Boys in the Band, Cruising é uma cisão absoluta com esse mundo de homens que dançam “alegremente” (gay) e discutem desporto, enquanto (“assumidos” e “discretos”) tiram os esqueletos do armário. Os problemas dos anos 70 não eram os problemas dos anos 80. Os homossexuais e transexuais que então se digladiavam contra a polícia nas ruas de São Francisco, no início da década de 70, na década de 80 gozavam de uma maior liberdade, sobretudo sexual, e puderam constituir uma série de grupos, hábitos, locais de encontro, uma cultura própria, da qual este filme é um exemplo.
Aqueles que ainda hoje objectam contra este filme servem-se do discurso de que Friedkin não era “entitled de…” ou não tinha “lugar de fala”. Mas será que isso importa para o caso?
Reconheço que o termo “comunidade” é problemático, porque engloba uma multiplicidade de experiências e subjectividades e tende a apagar as dissidências em nome da vaca sagrada da homogeneidade (homogeneidade essa que ainda hoje é responsável pela opressão des transsexuais dentro da tal comunidade, onde impera a imagem dos homens brancos cis), mas sem que deitemos a água do banho com o bebé, é importante reconhecer que a ideia de “comunidade LGBT” foi a primeira tentativa de unir corpos, anteriormente atomizados, politicamente e afectivamente. As revoltas, as marchas, o sexo, as tribos, o desejo, a cultura, o queer e o camp resultam de uma experiência colectiva que se formou a partir da década de 70. Mesmo os exemplos que antecedem esse momento (e claro, são inúmeros – dos estudos de Hirschfeld às fotografias do barão von Gloeden), mais do que fundadores dessa possível “comunidade”, são retrospectivamente resgatados, precisamente porque essa comunidade se formou (caso contrário, teriam sido meras tentativas silenciadas e esquecidas pela narrativa heterossexual hegemónica).
E, acima de tudo, mais do que a representação de Friedkin da comunidade LGBT, o que incomodou foi sobretudo o facto do realizador ser heterossexual. Não é por acaso que um dos ataques que se fez ao filme passa pela equivalência obscena entre Friedkin filmar os homossexuais como o KKK filmaria os negros (hélas, para todos os que acham que as “guerras culturais”, a “cultura woke”, o “cancelamento”, são questões recentes, eis um claro exemplo de como estas tensões sempre estiveram presentes). Já não se tratava de um heterossexual filmar homossexuais, libertando-os das amarras de um sistema representacional homofóbico; mas de um heterossexual servir-se dos códigos de um grupo homossexual para os representar. Aqueles que ainda hoje objectam contra este filme servem-se do discurso de que Friedkin não era “entitled de…” ou não tinha “lugar de fala”. Mas será que isso importa para o caso? Não creio.
É certo que muitas vezes importa, basta pensar no oportunismo de James Franco, por exemplo – o próprio Franco canibaliza este filme para criar o etediante e confrangedor Interior. Leather Bar. (2013) –, um actor-realizador heterossexual que tentou fazer carreira à custa da comunidade LGBT, representado e filmando, por diversas vezes, histórias caras à comunidade LGBT sem o mínimo de pudor, aquilo a que hoje chamamos “queerbaiting”. Mas a história, felizmente, está pejada de heterossexuais que exultam o espírito bicha, queer, camp, sem que este seja um propositado piscar de olho comercial ou uma “apropriação”. Fellini foi um desses expoentes máximos, onde a sua heterossexualidade de um Don Juan contrastou em absoluto com delírio-diva do seu cinema. Haverá filme mais paneleiro que Satyricon (Fellini-Satyricon, 1969)?
Outro dos ataques ao filme baseia-se na ideia de que este se serve do arquétipo “killer-queen” – ou seja, o assassino só é assassino porque é um homossexual recalcado, que procura “castigar” os seus “semelhantes” (inclusive, os semelhantes físicos – todos os homens assassinados e o próprio assassino possuem as mesmas características identitárias) – como motor da acção. Outro cineasta que não tem escapado à luz rasante de uma certa teoria de género é Brian de Palma. Tal como Cruising, filmes como Dressed to Kill (Vestida para Matar, 1980) ou ainda Raisin Cain (Síndroma de Caim, 1992), são analisados como se estes fossem a continuação da máquina psicanalítica hollywoodesca. O que escapa a esta visão é o excesso de literalidade com que analisam estes filmes. Preocupados em desconstruir o mecanismo por detrás das sombrias pulsões de morte (do homossexual ao transexual recalcado), não conseguem compreender que tais filmes não são a replicação, mas antes a paródia desse mesmo mecanismo, que tão bem serviu a Hitchcock. Tanto Friedkin, como (sobretudo) De Palma, destruíram os tabus e os interditos da teoria freudiana sem qualquer tipo de complacência.
Numa época em que estamos tão obcecados em discutir lugares e privilégios, em que tribalizamos discursos e estabelecemos linhas, Cruising continua a ser um exemplo vital de como é possível constituir um território interseccional entre experiências e subjectividades (e que melhor campo há para criá-lo, se não o campo da arte?). A minha admiração por Friedkin é imensa, assim como por este filme. E parece-me que, apesar de Friedkin não ter tido sequer a intenção primária de fazer um filme sobre a comunidade LGBT, mas antes sobre a polícia (Friedkin inclusive disse-o em entrevistas, que estava mais interessado em questionar a linha entre o bem e o mal na polícia – tema caro ao seu universo, basta pensar na sua obra-prima, The French Connection [Os Incorruptíveis da Droga, 1971]), este filme não deixa de fazer parte da constelação de filmes LGBT incontornáveis. Vale o que vale este lugar que lhe atribuo, mas importa ainda lembrar que Cruising serviu à época para denunciar uma série de crimes ocorridos dentro da comunidade homossexual e um certo “desinteresse” da polícia nos casos (e não deixa de ser irónico que tenha sido Arthur Bell quem dá início à cruzada contra o filme de Friedkin, o mesmo activista LGBT, jornalista e colunista, que escreve várias peças jornalísticas para o The Village Voice sobre homicídios de homossexuais, e que, em parte, inspira o filme, assim como o romance homónimo de Gerald Walker). Além de que deste filme descenderam obras tão belas quanto distantes, como é o caso de It Follows (Vai Seguir-te, 2014), de David Robert Mitchell, à obra-prima de Yann Gonzales, Un Couteau dans le Coeur (Faca no Coração, 2018). Mesmo que por vezes o legado de Friedkin seja discreto, a importância deste cineasta é imensa e bastaria Cruising, pelos melhores motivos, para firmar esse mesmo lugar na história do cinema.
Cruising será exibido no Cinema Nimas nos próximos dias 20 (às 22h00) e 26 (às 17h00) de setembro como parte do ciclo que a sala organiza ao longo do mês em homenagem a William Friedkin, recentemente falecido.