Não é possível dizer, com certeza, se as personagens de Destello Bravío (2021), primeira longa-metragem da espanhola Ainhoa Rodríguez, estão vivas. Ou, pelo menos, em que momento(s) estão vivas. Talvez porque, não sendo igualmente possível afiançar da sua morte, elas pareçam orbitar num plano intermédio, um entre–realidades, um espaço liminal. E, todavia, They Live.
Adulterando Mark Twain, apetece dizer que foram manifestamente exageradas as notícias da morte e da vida das personagens de Destello Bravío. Por personagens entendam-se não apenas os homens desta aldeia, mas todos os seus habitantes: animais, natureza e toda a iconografia cristã (em rigor, talvez mesmo a personagem central do filme) materializada nas pinturas, relicários, terços e pendentes que ocupam (asfixiam?) os espaços domésticos.
Em verdade, momentos há – e se voltamos a aludir a “momentos” é justamente no sentido de sublinhar a precariedade ou transitoriedade dos estados de existência no filme de Rodríguez – em que a Natureza, nas suas diferentes manifestações (a lua, o vento, a luz e o breu, os sons, o fogo), parece ser o elemento (a personagem) verdadeiramente vivo, animado, do filme. Entidade silenciosa mas pairante que assombra – ou acorda, num sentido existencial ou revelatório – os habitantes da aldeia (sobretudo, as mulheres). O que, além de enquadrar o filme numa certa linhagem do cinema espanhol actual (pensamos especialmente nas cinematografias oriundas da Galiza), o filia também na contemporaneidade do cinema dito “sensorial”, quer na proeminência concedida a outros sentidos que não apenas a visão, quer na des-protagonização do elemento humano, que deixa de ser o centro irradiante e passa a coexistir no mesmo patamar de existência que as plantas, os animais e entes transcendentes (fantasmas, espíritos, antepassados). As personagens humanas, essas, volvem-se em figuras post-mortem, i.e., seres que não obedecem a uma lógica binária rígida de “vivo” ou “morto”.
Este estar-entre enquanto tempo-espaço habitado pelas personagens joga, por seu turno, com o modo como Ainhoa Rodríguez trabalha duplamente a noção de Tempo. Por um lado, quebrando a linearidade cronológica convencional (sem com isso cair no gesto gratuito de ludibriar o espectador) e invertendo a lógica narrativa das cenas (do tipo causa-efeito), quando não se abstendo simplesmente de as relacionar (antes as deixando à ambiguidade e à imaginação) e trabalhando, antes, a potência da elipse. Por outro, e esticando esta ideia, desacelerando o Tempo ao ponto da sua quasi-imobilização (como se este, enfim, não passasse), através da utilização – cremos que exclusivamente, se a memória não nos falha – do plano fixo de duração longa, ora ocupado por pausados diálogos (ou monólogos) mantidos pelas personagens (apenas humanas ou entre estas e as de outra natureza?), ora privilegiando, ao invés, o silêncio, os sons da natureza, a cenografia doméstica (em especial, a já aludida iconografia religiosa) e a paisagem rural (aqui captada em tons lunares, tão desoladores quanto sci-fi).
Destello Bravío é organizado numa lógica atípica (dir-se-ia “destruturada”). Uma em que as cenas não obedecem ao fio condutor convencional e na qual é operada uma inversão/adulteração do raccord, que deixa de operar na lógica causal.
E, porém, o filme não deixa de denotar, não diríamos uma progressão, mas um movimento contínuo, por vezes subterrâneo, em direcção a um certo desfecho narrativo, aparente paradoxo que é mérito e engenho de Rodríguez. Mesmo se tal “desfecho” (ou desfechos) é dado não no último terço (forma convencional), mas ao longo do filme (a fuga de Cita, o suicídio do homem). Se bem que o filme por vezes conte a(s) história(s) de trás para a frente (mas não linearmente, cenas existindo que são alheias a tal lógica), o certo é que tal dispositivo opera nas sombras, se não mesmo na invisibilidade, permitindo em qualquer caso a criação de uma atmosfera de tensão crescente, cujas “explosões” ocorrem de forma só aparentemente desconexa.
Sem que o argumento denote falhas ou buracos, e estando o espectador impedido de afiançar do encadeamento temporal das cenas, bem pode acontecer que Destello Bravío se encontre organizado, afinal, organizado numa lógica completamente atípica (e, dir-se-ia à primeira vista, “destruturada”). Uma em que as cenas não obedecem ao fio condutor convencional e na qual é operada uma inversão/adulteração do raccord, que deixa de operar na lógica causal (na realidade, em muitos casos, a sequenciação das cenas passa a ser do tipo efeito-causa): em vez da transição do Plano 1 (causa) para o Plano 2 (efeito), passamos a ter uma transição do Plano 2 (efeito) para o Plano 35 (eventual causa do Plano 2), com numerosas cenas, aparentemente sem encadeação lógica ou temporal, pelo meio.
Em termos práticos, tal significa, a título de exemplo, que a “última” cena do filme (o corvo na sala da casa) bem possa ser, afinal, a… “primeira”; ou que determinadas cenas tenham a sua causa de acção em cenas que, na montagem, surgem apenas em momento posterior (a fuga de Cita, por exemplo, é dada na montagem em momento muito anterior às cenas domésticas nas quais ainda vive com o marido). Mais amplamente, coloca-se a possibilidade de, nesta quebra da lógica causal, passado, presente e futuro estarem em constante cruzamento e reenvio. Assim, e retomando a ideia dos habitantes como mortos-vivos (zombies…), surge a possibilidade de os seus momentos em vida e os seus momentos enquanto seres mortos se sucederem sem que qualquer sinalização seja dada pela montagem. Ou a hipótese do envelhecimento, também não-sinalizado, de algumas personagens, processo temporal trabalhado pela elipse e dissolvido na montagem (pensamos na personagem de Cita e na mulher que surge a rir-se enquanto observa o marido na TV, a qual pode ser uma versão envelhecida de Cita, uma “versão do futuro”, ou, então, a própria Cita a rever, anos depois, a entrevista). Ou, ainda, o modo como, num dos encontros das personagens femininas, uma delas pergunta se alguém ouviu um barulho estranho (respondem-lhe negativamente) e, numa cena mais adiante, um tiro seco eclodir no silêncio da noite…
A ideia desta aldeia como um espaço liminal (e, contudo, não é seguro que o filme se passe exclusivamente naquela aldeia) é trabalhada, bem assim, de um ponto de vista eminentemente visual. Desde logo na indefinição do dia e dos dias: nunca é claro se uma cena se passa inteiramente durante a noite ou durante o dia (ou de madrugada), tão-pouco o modo como os dias (não) se sucedem. Aliás, é possível mesmo equacionar, retomando a ideia de “destruturação” acima referida, se todo o filme não se passa, afinal, num único dia – ou mesmo numa espécie de realidade alternativa não definível em função de “dia” e “noite”, “luz” e “escuridão”. De um outro prisma, os sentidos parecem circular ou comunicar conspirativamente: é o caso do tiro no breu que, percepcionado por uma personagem feminina no interior de casa, faz abanar – qual frequência subterrânea –, muitas cenas depois, o candeeiro do tecto de uma outra casa…
A estranheza dos ambientes, personagens e diálogos não deixa, ainda assim, de favorecer a emergência de uma marca de insólito e de humor, como se Roy Andersson e Pedro Almodóvar se tivessem momentaneamente encontrado no plateau.
Servindo-se de tons azulados e verde-garrafa, baços e moribundos (ou do azul de laboratório dos candeeiros), Rodríguez modula uma atmosfera expressionista que, não sendo exactamente ameaçadora (se bem que a música electrónica utilizada por vezes o insinue), não deixa de ser incómoda ou estranha para as personagens, que, sintomaticamente, estão quase sempre na companhia de alguém (em casa, no café, na igreja). Se, porém, entendermos a Natureza como um ser par do Homem – como a atmosfera do filme insinua –, então poderemos afirmar que, em qualquer caso, as personagens(humanas), mesmo sem a presença de outro humano, nunca estão, rigorosamente, sozinhas; antes na companhia dos animais e das plantas, do vento, do sol, da lua. Do mesmo modo, e não obstante a paleta cromática referida, a temperatura (stricto sensu) e a densidade do ar são, elas mesmas, ambíguas, concorrendo para um estado intermédio – um Purgatório? – entre o calor e o frio, a humidade e a secura. O que, por sua vez, joga com o modus vivendi destas mulheres, seres que parecem estar sempre à espera de alguma coisa, quiçá uma milagrosa mudança.
Bem assim, a intermedialidade latente em todo o filme é sugerida pelo modo como, não raras vezes, a estranheza e a incerteza dos ambientes, personagens e diálogos não deixa, ainda assim, de favorecer a emergência de uma marca de insólito e de humor, como se Roy Andersson e Pedro Almodóvar se tivessem momentaneamente encontrado no plateau. Uma curiosa hibridez que impede, pois, o engavetamento de Destello Bravío em géneros: realismo social? Horror-comedy-de-enganos (as gargalhadas da mulher perante o marido desesperado na TV)? Filme-espírita? Objecto místico? Alegoria bíblica?
Enjeitando o expediente fácil de mesclar o real e a ficção como forma de confundir o espectador (traço comum, e estafado, a muito do cinema contemporâneo dito “do real”), Rodríguez constrói, de qualquer modo, o filme em território ficcional, introduzindo apontamentos de um registo que poderemos designar de “documental” (desde logo na utilização de não-actores). É o caso da personagem do pastor, quer por via do texto que lhe cabe (reproduzindo histórias orais da aldeia, passadas entre gerações), quer pelo modo como a câmara o segue (ângulo, enquadramento, composição). É disso exemplar o modo como Rodríguez filma, num longo plano fixo, o pastor através da janela de sua casa, posicionando a câmara no exterior, à altura do olhar do transeunte, e captando-o “de fora para dentro”, como se de um momento do quotidiano, subitamente captado por um habitante da aldeia, se tratasse.
O facto de a janela, metade aberta e metade fechada, dividir o plano em duas secções concede novas leituras à cena. Em primeiro lugar, sugerindo que as palavras do pastor, embora proferidas num espaço privado (em casa), também possam ser (ou devam, como um aviso…) apreendidas pelos demais elementos da comunidade (na linha das tradições orais), desta forma perdendo a câmara a qualidade de voyeur ou intruso. Aspecto reforçado por uma outra cena em que Isa (que, seguindo esta ordem de ideias, bem pode ser, afinal, quem observara o pastor à janela) observa da rua, novamente através de uma janela, uma mulher masturbando-se no interior de casa (libertando em privado o que lhe é censurado em público).
Por outro lado, estando a visibilidade da secção esquerda do plano com o pastor obstruída pelo vidro fosco da janela, não fica claro se este é, afinal, um monólogo do pastor ou um diálogo mantido por este com uma segunda personagem (humana?), dúvida que só se desfaz quando uma segunda voz assente à pergunta do pastor. Outros momentos existem, aliás, em que Rodríguez exercita este tipo de abordagem, quer quando coloca as personagens a olhar ou falar para/com o fora-de-campo (estarão a falar sozinhas ou com alguém ou alguma coisa?), quer quando, na cena do jantar entre as quatro mulheres, os rostos de duas delas são deliberadamente deixados fora do alcance do espectador. Esta obstrução da visão tem o seu prolongamento na própria caracterização das personagens e dos acontecimentos, que, quase nunca dados de forma declarada ou explícita, obrigam o filme a laborar na elipse, nos não-acontecimentos, nos espectros, modelo narrativo que poderíamos designar de parentético.
Ainda o pastor. Em termos composicionais, ao homem situado na secção direita do plano junta-se, filmado à mesma altura, um pato em cerâmica e, acima de ambos (como que substituindo a cruz de Cristo presente em numerosos outros espaços interiores), a caveira e os cornos de um animal (uma cabra do pastor ou um dos veados cuja violência humana o relato e a fotografia do caçador no bar da aldeia testemunham?). Reafirmando a ideia (por que acima começámos) de que o Homem é apenas uma de entre as demais personagens do filme, a presença da caveira introduz uma nota de fantástico (ou macabro) que, sob outras manifestações, vai pontuando todo o filme.
Eis um filme que, possuindo um olhar inegavelmente político, o faz recorrendo à alegoria e ao mistério, dispensando o histrionismo panfletário de grande parte do cinema contemporâneo.
Num filme em que as personagens humanas habitam entre a vida e a morte, um acontecimento em particular ganha destaque: o (re)nascimento de um homem. Os ritos da Páscoa que se vão sucedendo ao longo do filme conduzem à ressurreição daquele que, até esse momento, apenas aparecera representado em objectos (quadros, pendentes, terços) enquadradores das personagens. Gesto de óbvio simbolismo que, na realidade, reenvia para um renascimento maior: o de uma mulher (Cita) que decide, enfim, abandonar o marido. Partir, desaparecer, rumo a “Álilu”, a terra mítica – ou águas míticas – sonhada na infância.
Na sua atitude rompedora, a decisão de Cita funciona como a antítese da comunidade feminina da aldeia, mulheres imobilizadas no e pelo Tempo e pelos costumes conservadores (quando não machistas e opressores, como as conversas dos homens e os desabafos das mulheres revelam). O facto de, contrariamente ao expectável (assim se afastando maniqueísmos), Cita não ser uma mulher submissa ou oprimida pelo marido (pelo contrário, é uma figura autoritária que ordena que este se levante da cama e lamba o… tecto) só adensa a complexidade e riqueza da personagem e do filme na globalidade. Não por acaso, Rodríguez capta as conversas de grupos masculinos e femininos sempre em separado, modo de sinalizar uma segregação de subjectividades, assuntos, tabus. No caso das mulheres, a ideia de imobilização é favorecida pela forma como as suas conversas, decorrendo em cenas longas, de acção lenta e demorada (os diálogos, os gestos, os rostos, a própria fisicalidade das personagens, como se o corpo fosse o prolongamento do seu espírito definhado), estão permanentemente a jogar com os planos de quadros de natureza mortas (por sua vez mimetizados pelos planos de exteriores da aldeia e da natureza). Passo em que o filme joga com a ideia desta comunidade, sobretudo a feminina, como um lugar doente, apodrecido, atrofiado, tópico (illness) igualmente caro à corrente “sensorial” (especialmente, a um cineasta como Apichatpong Weerasethakul, mas também, em parte, Pedro Costa).
Como uma rebelião, da natureza morta destas mulheres opera-se a transição – impossível, onírica, mesmo surrealista – para um tableau vivant nos dionisíacos momentos em que, à mesa da refeição (lugar de carne, vinho, prazer, enfim, de pecado), as mulheres dão largas às fantasias e ao desejo (momentos antes, a imagem de um conjunto de salpicões ocupa o plano…). Não por acaso, depois dessa cena, Rodríguez corta imediatamente para o plano de uma missa na qual se ora à Virgem Maria, espécie de comprimido (ou de agente re-conformador) para a azia (para a culpa) que se segue ao pantagruélico banquete dos sentidos.
Mas mesmo nesses momentos escapistas, ainda um tableau; um quadro, moldura que enquadra, que aprisiona (forma e função levados quase à literalidade num filme como Der amerikanische Freund (O Amigo Americano, 1977), de Wim Wenders, no qual Bruno Ganz é um restaurador de quadros existencialmente emparedado na molduras com que trabalha). Momentos cuja verosimilhança nunca é possível de atestar, nomeadamente se correspondem ou não a um instante de delírio ou alucinação (de uma ou de várias personagens), ambiguidade potenciada pela utilização expressiva do ralenti.
Sintomaticamente, Cita nunca está no grupo dessas mulheres, nunca é natureza morta, nem mesmo tableau vivant. Cita não está no quadro, Cita sai do quadro – eis, possivelmente, o destello (clarão ou flash) conjurado pela Natureza. Tal evento sobrenatural é mesmo sinalizado numa das primeiras cenas do filme na qual Isa, escutando uma cassete áudio (gravada de si para si), ouve a anunciação (tal qual o Arcanjo Gabriel sussurrou a vinda de Jesus a Maria); uma voz segredando-lhe que tudo irá mudar, que todos olharão para um céu lindo e, absorvidos pela luz, perderão a memória… Desaparecer. Alguns momentos depois e também o pastor alerta que “pode haver algo na aldeia, na terra, na vida”, mas do qual não se deve guardar medo…
À constante captação dos grupos de homens e de mulheres em ambientes perfeitamente separados, acresce o locus onde tais encontros se sucedem: os homens confraternizando no exterior (café), as mulheres no interior (no “recato do lar”).
Precisamente pela sua natureza rompedora, não-conformista, por não se abster de concretizar o Desejo (“Senta-te e espera, é o que nos compete”, ouve-se a duas mulheres), Cita é mal-vista e julgada pelas restantes habitantes numa cena que decorre, simbolicamente, na igreja (antítese da mesa de refeições e lugar de Virtude onde a carne é trocada pela hóstia e só ao padre é consentido tomar do vinho). Da mesma forma que, depois de ouvir a cassete, Isa se apressara a re-normalizar o seu próprio discurso, dizendo para o gravador que não tem sonhos, que só sabe cozinhar, que nos dias de festa marido e esposa devem ir juntos ao baile porque, enfim, “Así si”. Retorcida reverberação de um machismo culturalmente cristalizado (inclusivamente inoculado pelas próprias mulheres) que, no concreto caso de Cita, faz desta aldeia, mais do que um espaço liminal, um espaço-nulo (de referências, aspirações, desejos) que propiciará o seu desaparecimento (outras coisas desaparecerão ao longo do filme: um homem num aparente suicídio, a imagem da Virgem de Dolores do medalhão…). Neste contexto, tal desaparição deve, pois, ser entendida como um gesto de se reencontrar, de, afinal, re-aparecer; uma fuga não para o fim (nem mesmo para a frente), mas para um re-início (uma ressurreição). Et voilà: eis um filme que, possuindo um olhar inegavelmente político, o faz recorrendo à alegoria e ao mistério, dispensando o histrionismo panfletário de grande parte do cinema contemporâneo, transformado em autêntico activismo audiovisual prêt-à-porter.
À constante captação dos grupos de homens e de mulheres em ambientes perfeitamente separados, acresce o locus onde tais encontros se sucedem: os homens confraternizando no exterior (café), as mulheres no interior das suas casas (no “recato do lar”). Tais geografias não são inocentes e, para lá de remeterem para papéis de género culturalmente sedimentados (o histórico enclausuramento da figura feminina), encontram o seu prolongamento no teor das conversas mantidas por uns e outros.
Um outro tipo de diálogo, desta feita mantido entre a iconografia religiosa e as personagens femininas, sobressai. A este propósito, tenha-se presente que o nome da personagem “Cita” é diminuto de “Carmencita” (é possível ver o nome completo na peça que passa na televisão), por sua vez derivação de Carmen, nome bíblico (tal como o da jornalista Eva) cuja origem hebraica remete para “Vinha” ou “Jardim” de Deus (vindo depois a ganhar, no latim, a acepção de “poema” ou “canto”). Tal diálogo, especialmente na figura de Cita, processa-se sob diversas e contraditórias formas (o imaginário religioso como agente de opressão e obscurantismo, sim, mas também manifestação do Belo e crónica da aventura humana), preenchendo os espaços materiais e, sobretudo, imateriais (mentais, psicossociais, espirituais) da aldeia. A certa altura, Cita, deitada na cama que partilha com o marido, diz estar farta que todos a observem, referindo-se não apenas aos homens (que a cobiçam) e às mulheres (que a julgam), mas também às figuras religiosas que preenchem a casa (o Cristo e a Virgem Maria juntos à mesa de cabeceira).
É interessante, porque paradoxal, que essas figuras religiosas, invariavelmente representadas com uma expressão de sofrimento, abnegação ou graciosidade, funcionem, afinal, como factor de esmagamento ou condicionamento das acções das personagens (algo que um cineasta como João Pedro Rodrigues tem justamente subvertido, reencontrando o erotismo e a volúpia nessas mesmas representações). Espécie de Vigilantes de quem as personagens se podem a qualquer instante socorrer em caso de dúvida acerca da natureza (virtuosa, pecaminosa) dos seus actos. Mais curioso ainda se pensarmos que tais representações têm mão humana, i.e., são criadas pelos mesmos que depois as temem ou que nelas buscam perdão. A Religião, como a aldeia de Destello Bravío, bem pode ser um lugar estranho – um espaço liminal de consolação e maldição auto-induzidas.
Destello Bravío, de Ainhoa Rodríguez, está disponível para visionamento da plataforma de streaming Filmin.