Exibido pela primeira vez no Festival de Cannes, na Semana da Crítica, a primeira longa-metragem da escocesa Charlotte Wells, Aftersun (2022), foi, para mim, um dos mais belíssimos filmes do ano passado. A estreia arrebatadora que apetece, pela sua raridade, guardar no (in)consciente, arrumar no coração e jamais esquecer, foi reconhecida e premiada nos diversos circuitos internacionais. No mesmo ano, o Festival de Cannes apresentou, na Quinzena dos Realizadores, Falcon Lake (2022), da canadiana Charlotte Le Bon, estreado em Portugal em meados de agosto. O que têm em comum, além do nome Charlotte? No primeiro momento, identificamo-las por assumirem o posto de primeira longa-metragem; depois, por se enquadrarem no género coming-of-age. Posteriormente, com um par de visionamentos, de uma leitura e reflexão, ficaram-me, sobretudo, cravadas na memória a sensibilidade, subtileza e singularidade – cada uma com a sua mise-en-scène – deixadas no exercício de construção de atmosferas apetrechadas de prenúncios e elementos sugestivos, que nos desafiam a questionar e adivinhar os seus desfechos.
Desloquemos o nosso olhar até Falcon Lake. Bastien tem um pé na infância, o outro na adolescência. Chloé tem um pé na adolescência, o outro na maioridade. Nesta história de amor e de fantasmas, o tímido, introvertido e observador jovem francês, de 13 anos, viaja com a família até ao Quebeque para usufruir dos quentes dias de Verão numa cabana à beira do lago. Cabana, essa, pertencente a um casal amigo da família, e à sua filha, a extrovertida, desafiadora e misteriosa jovem canadiana, de 16 anos.
Filmado em 16mm, perpetuando o grão da película fotográfica, e recuperando o nostálgico formato 4:3, de aplicação incomum no cinema contemporâneo, Falcon Lake cria, a partir da sua composição visual, uma sensação quase imediata de melancolia e nostalgia. A experiência sensorial acentua-se pela captação de paisagens pictóricas e de natureza etérea, com laivos de Call Me By Your Name (2017), de Luca Guadagnino – influência referenciada pela própria Le Bon – e algo reminiscente da obra de Éric Rohmer. As árvores que envolvem a floresta são a moldura omnipresente nos passeios de Bastien e Chloé; o sol, que queima a pele, e cujos raios confluem com a serena ondulação da água; e o lago, que surge, frequentemente, em primeiro plano, quase como se de uma personagem se tratasse. Faz-se ouvir o canto das cigarras, os pingos da chuva que caem, interruptamente, pelos vidros das janelas da cabana, e o pulsar do coração de Chloé sentido por Bastien, que descansa a palma da mão no lado esquerdo do seu peito.
É nesta atmosfera, ilusoriamente despojada, delicada e de plena contemplação, que o vínculo afetivo e íntimo entre Bastien e Chloé floresce, num equilíbrio entre a sensualidade e a candura, e o explícito e o implícito. Entrelaçam-se num processo de amadurecimento e transição, na procura e identificação por uma identidade, numa manifestação de desejos carnais desconhecidos ou reprimidos, e nas primeiras pulsões sexuais, numa exploração simultaneamente emocional e física de si mesmos e do outro. A introspeção e a ingenuidade de Bastien contrastam com a sociabilidade e a sagacidade exteriorizadas por Chloé, que esconde, no seu interior, a sua vulnerabilidade e fragilidade maiores: o medo da solidão, estimulada pela sensação de não-pertença à sociedade. Mas, de espaços, corpos e vozes (ir)reconhecíveis, (in)visíveis e (in)audíveis se compõe Falcon Lake, e por essa razão, Bastien assegura-lhe, ternamente: “Sozinha não estás. Terás sempre o teu fantasma.”
Apesar do constante clima caliginoso que atravessa a obra, a inexistência daquele desfecho, e a consequente substituição por um outro que não envolvesse uma carga fatídica, resultaria na perda da camada poética e espiritual que Le Bon pretende colocar na presença sobrenatural.
É, justamente, nesta proposição que a estreia de Charlotte Le Bon se eleva a um patamar superior. Os cenários bucólicos e idílicos, pintados nas linhas anteriores, assumem-se, simultaneamente, como quadros de um imaginário sombrio e obscuro. O elemento sobrenatural assenta na lenda, contada por Chloé, de que o corpo de uma criança foi encontrado no lado selvagem do lago, vítima de afogamento, sendo, desde então, identificada como a figura que assombra aquelas águas. Acompanhamos, assim, a obsessão de Chloé pelo universo fantasmagórico, traduzida em comportamentos sui generis: envolve-se em lençóis brancos, reproduzindo a fisionomia de um fantasma, pregando partidas a Bastien; e submerge no lago, de madrugada, longe dos olhares do mundo, ora para experienciar a sensação de ausência de respiração, aproximando-se de uma simulação de asfixia, ora para procurar, através de sussurros, comunicar com a tal figura sobrenatural. A floresta, que envolve o lago Falcon, já não é mais o espaço de sossego e de conforto, mas antes de desassossego e agitação; a escuridão das águas sobrepõe-se aos raios de sol que lhe eram refletidos; e o calor do Verão é ameaçado pelo “peso” da chuva e da nebulosidade.
A este propósito, Le Bon refletiu, em entrevista, sobre o elemento simbólico de Falcon Lake, amplificando o sentido de dualidade que, aqui e ali, vem sendo pincelado: “As águas dos lagos são maravilhosas, mas são águas escuras, às vezes mornas. Eu via sempre nadar num lago como uma faca de dois gumes: a alegria de chapinhar em volta, mas sempre com uma ligeira ansiedade. Nunca sabemos o que está no fundo. E esse sentimento pode tornar-se incrivelmente preocupante.”
De igual modo, as relações afetivas, o amadurecimento e o crescimento ocupam o mesmo espaço das águas do lago: enquanto seres humanos, somos, simultaneamente, compostos por fragmentos ora à superfície, acedidos, pela sua parca exposição, com relativa simplicidade; ora nas profundezas, onde perfurando a camada exterior, se alcança a visceralidade e a complexidade (e, enquanto se escreve estas linhas, como não lembrar Ingmar Bergman, que descodifica tais inquietações de forma ímpar?).
Chegados ao desfecho, os minutos finais são reservados para a explosão da tensão que, gradualmente, se foi adensando. Não deixa de ser curioso que a dualidade apresentada ao longo de Falcon Lake resulte numa certa ambiguidade no seu momento de receção: por um lado, aqueles que interpretaram os tons sombrios como peças de um puzzle que, uma vez encaixadas, comporiam e desenhariam o trágico fim; por outro, aqueles que percecionaram os prenúncios como não-prenúncios, isto é, como meros adereços, dispositivos e objetos necessários ao exercício de construção psicológica das personagens e da atmosfera mística envolvente, sem que tal justificasse e influenciasse um qualquer fim. Esta afigura-se, aliás, como a sua força maior: apesar do constante clima caliginoso que atravessa a obra, a inexistência daquele desfecho, e a consequente substituição por um outro que não envolvesse uma carga fatídica, resultaria na perda da camada poética e espiritual que Le Bon pretende colocar na presença sobrenatural.
Na cena final observamos Chloé – a partir do olhar de Bastien – de costas, sentada, à beira do lago. Dos lábios de Bastien sai o nome de “Chloé”. Instantes depois, ciente da presença do rapaz, vêmo-la, subtilmente, a movimentar-se, preparando-se para encará-lo. Fade-out. Bastien estava certo. Chloé terá sempre o seu fantasma.
★★★☆☆