Killer Joe (2011) é William Friedkin (1935-2023) a, por um lado, levar mais longe certos aspectos do seu filme anterior, o magnífico Bug (2006), e, ao mesmo tempo, a resistir a outros aspectos do mesmo filme, que se produziam, sobretudo, nas entrelinhas. A literalidade de tudo em Killer Joe é a primeira coisa que pode chocar o seu público, como terá chocado parte da imprensa e, seguramente, parte do júri do Festival de Veneza de 2011; é também ela que pode fascinar quem, por exemplo, pediu a plenos pulmões o Leão para Friedkin – e não foram poucos.
De qualquer modo, Killer Joe, como digo, intensifica o dispositivo teatral de Bug (os dois são originariamente “peças de teatro”), mas, ao mesmo tempo, livra-se do discurso politizado sobre os media e a sociedade (o securitarismo pós-11 de Setembro). Claro que continua a ser o retrato de uma certa América, de uma América que já conhecemos em filmes dos Coen ou de Tarantino e que hoje podemos associar a fenómenos espúrios destes nossos tristes dias, como o MAGA e quejandos, certo, mas aqui há um dispositivo que abstractiza mais do que solidifica esse retrato. Killer Joe existe para culminar na última e enorme sequência, espacialmente concentrada na roulotte e que implode dramaticamente aí, à volta de uma mesa mal posta e de uma refeição fast-food de KFC para toda a família da classe média baixa texana se lambuzar depois da reza da praxe e dos falsos discursos de “amor e solidariedade” no mundo… O político não vai mais longe do que isto.
Joe é o grande papel de viragem de Matthew McConaughey, ele que conta ter atirado o argumento para o lixo em reacção a toda a sua selvajaria in your face. Ele é 100% estilo, é 100% texano, mas um 100% tão preciso quanto a sua expressão numérica. Tudo nele – sobretudo, a sua patológica obsessão pela pequena Lolita do filme (Dottie) – é cronometrado, pensado ao milímetro, “protocolizado”, ele é um detective e um assassino ao mesmo tempo, mas ele não é dois, não alimenta uma qualquer “vida dupla”: ele é, de facto, um detective-assassino ou um assassino-detective (a ordem não interessa), alguém que auto-legitima a sua acção com toda a prática e retórica procedimentais, processuais/negociais, próprias de um burocrata do Estado. Ele age em conformidade com o “acordado” e segundo as suas leis – não tão diferentes quanto isso, pensará ele, das leis do Estado.
Os gestos de Joe (mesmo quando reduzidos a zero) são pura coreografia maquinal, de “Estado”, como se o detective se alimentasse do assassino e vice-versa. Ele produz a perfeita unidade entre a lei e o fora-da-lei. Os mecanismos conceptuais protegem-no – a certa altura, a pequena Lolita diz “até dizem que a maior parte dos polícias não chega a usar, por uma vez que seja, a sua arma”, ao que Joe replica “there is a lot of paper work to do”. Joe di-lo, seguramente, por experiência própria, mas sem menosprezo heróico, texano, pelo “paper work”, bem pelo contrário, Joe sabe que o “paper work” é que faz a farda, à xerife lendário, que ele enverga (a burocracia é condição sine qua non para o seu “estilo”), Joe é um “proud detective” e, se virmos, se calhar, até tem “razões” muito objectivas para o ser.
Killer Joe é um exemplar pedaço – não de frango, mas… – de um cinema frio (cool) ao qual respondemos com a única arma possível: a gargalhada provocada pelo mais grosseiro e imprevisível “humor negro”.
Aqui está, enfim, a complexidade (política? Sem dúvida) da personagem principal deste filme de Friedkin, a complexidade decorrente do seu “robotismo administrativo” que choca com o desleixo da bimbalhada pré-Trump que decide contratá-lo para um trabalho sujo. Joe é impecável e todos os outros protagonistas do filme sabem que não o são, sabem que não podem nada contra ele. E é, a partir daqui, que a omnipotência de Joe se transforma num burlesco sobre a sua aparente “impotência sexual”, encenado, numa farsa completamente over the top, excessiva e ultrajante, na sequência final, mas já prenunciado na cena de “strip tease ao contrário” depois do date na roulotte com a pequena, doce e ingénua Lolita (pureza que não mancha o lado impecável de Joe).
Friedkin trabalha, pontualmente – leia-se, ponto a ponto –, para criar as condições necessárias para que Joe se vá revelando até à apoteose final epicamente grotesca. A cena da perninha frita de KFC como segundo falo de Joe lembra as taras sexuais de Frank Booth em Blue Velvet (Veludo Azul, 1986): há uma impotência que é, enfim, uma “in-potência” – o sexo é impraticável, é demasiado sujo em si mesmo, demasiado terreno, para um homem-máquina como Joe, por isso, ele usa um strap-on de frango frito. Enfim, por alguma razão os olhos de Joe “magoam”, como diz a pequena Dottie. De facto, o rosto de McConaughey é liso, 100% inexpressivo, de impenetrável leitura. Dito de outro modo: em momento algum sentimos que conseguimos antecipar o próximo passo de Joe. Ele age de acordo com o acordado, mas age completamente fora do esquema daquela família, fora do nosso esquema, fora do que a expressividade humana deixa (quase sempre) entrever. A burocracia como absoluta perversão do que é espontâneo e selvagem, logo, como extremos que se tocam, expoente da máxima selvajaria humana.
Joe, que age em conformidade com um quadro de princípios e procedimentos, é uma potência que se gera por obrigação burocrática, uma potência que se gera na impotência – a sua impotência de ter “olhos de gente”. Joe é quem empresta ao filme a tal “literalidade” que mencionei no início deste comentário: é ele, com a sua psicose – potência impotente, ou impotência potente –, que cronometra cada partícula que cabe neste filme. Por isso, Killer Joe é um exemplar pedaço – não de frango, mas… – de um cinema frio (cool) ao qual respondemos com a única arma possível: a gargalhada provocada pelo mais grosseiro e imprevisível “humor negro”. É coisa ultra-articulada nos pontos, ultra-desarticulada nas linhas que os ligam entre si, que termina chocantemente com o primeiro esboço de emoção: uma expressão – de contentamento, talvez – no rosto – até aí, 100% liso, 100% não-humano – do detective-assassino que também é o mais cabrão dos assassinos-detectives.