Malheur à qui n’a pas le cœur de regarder en face… Ne pas se dérober, accepter de payer, ne serait-ce que d’un regard, pour commencer. Quelque chose, malgré le, les dangers, me troublait vers le savoir. Arracher, dans l’unique spectacle des corps, une histoire ; arracher une histoire des corps à ce qui restait captif, trop anciennement, dans les mythologies de la peste.
Georges Didi-Huberman, Mémorandum de la peste (1983).
Imagine-se um filme cuja intriga atravessaria várias décadas da História, projetada, em fragmentos lampejantes, sobre os movimentos coletivos ou individuais dos corpos sem rosto, dançando ao ritmo das músicas e das modas que marcaram as épocas sucessivas e que seguem pautando a inexorável passagem do tempo. Conceba-se uma temporalidade simultaneamente difusa, dilatada ao longo de vinte e cinco anos, e concentrada numa noite por semana, tendo por unidade espacial uma discoteca, autêntica heterotopia foucaultiana. Imagine-se que, nesse huis clos escavado nas margens da sociedade, e ainda assim perfeitamente incrustado nela, se imiscuiria a promessa (ou a ameaça) de uma revelação capaz de tudo revolucionar; e que, nesse “espaço outro”, antro de ficção e de epifanias sensoriais, brotaria uma história de amor entre duas almas solitárias consumidas pelas febres de sábado à noite.

Eis alguns dos ingredientes da poção mágica na origem do filme-feitiço que, a julgar apenas pela sinopse, gostaria de ter eu própria conjurado, e pelo qual estava pronta a deixar-me enfeitiçar. Trata-se de La Bête dans la jungle (2023), a quinta longa-metragem do ainda relativamente pouco conhecido cineasta austríaco Patric Chiha. Se o filme se insere plenamente na atual vaga de cinema de autor poético-fantástico (associada a cineastas franceses como Gaspar Noé, Yann Gonzalez, Bertrand Mandico ou Julia Ducournau), La Bête dans la jungle constitui igualmente uma espécie de síntese de três das realizações anteriores de Chiha: a sua longa de estreia, Domaine (2009), com a vamp Béatrice Dalle na pele de uma matemática alcoólica que seduz um adolescente, e os documentários Brothers of the Night (2016), sobre um grupo de jovens imigrantes búlgaros que se prostituem nas noites de Viena, e Si c’était de l’amour (2019), em torno de uma tournée do espectáculo The Crowd da coreógrafa Gisèle Vienne, inspirado nas raves dos anos 90.
Inscrevendo-se em perfeita coerência e continuidade com os microcosmos underground que haviam servido de pano de fundo a esses primeiros noctu/docu(d)ramas, o novo filme de Chiha convida os espectadores a embarcar numa vertiginosa viagem no tempo através da cultura do clubbing, entre o final dos anos 70 e o início do novo milénio. Duplamente prisioneiros numa camera obscura – a discoteca/caverna em que decorre a ação, mas também a sala de cinema –, envoltos pelos néons, fumos e flashes que emanam da pista de dança e preenchem o ecrã, embalados pelas batidas, por vezes contagiantes, outras vezes entorpecedoras, dos vários estilos de música ao longo das décadas (disco, new wave, techno, trance…), assistimos à evolução da coreografia dos corpos, que se movem entre luz e sombra, êxtase e transe, resistência ou entrega.
O cocktail estroboscópico que banha La Bête dans la jungle assenta num esboço de intriga livremente adaptada da novela homónima de Henry James (A fera na selva, publicada em 1903) – novela essa que já anteriormente servira de fonte de inspiração para François Truffaut, em La Chambre verte (O Quarto Verde, 1978).
Dois corpos destacam-se entre a multidão anónima: o de uma jovem mulher, de seu nome May Bartram (resplandecente e magnética Anaïs Demoustier), perfeita com qualquer indumentária, quase sempre em movimento, autêntica dancing queen sobre quem recaem todos os olhares; e o de um homem, John Marcher (escolha menos óbvia do ator israelita Tom Mercier, cujo sotaque marcado pouco acrescenta à natureza assumidamente insondável da personagem), corpo vertical, imóvel e rígido, tão parco em palavras quanto em gestos, mero espectador da vida que fervilha diante dele. A esta dupla improvável junta-se ainda a inconfundível Béatrice Dalle, no papel da porteira da “discoteca sem nome”, mais tarde baptizada La Bête dans la jungle. Auto-proclamada la physionomiste, a personagem de Dalle, para além de contribuir para a atmosfera espectral e vampírica do filme, faz-se porta-voz e narradora da intriga que lhe serve de fio condutor.

Esta intriga diz respeito ao misterioso segredo e subsequente pacto que unem John e May: adolescente, John havia confidenciado a May, uma rapariga que encontrara num baile popular, ter o pressentimento de que algo de extraordinário lhe estava reservado; quando se voltam a cruzar, anos depois, na noite de inauguração de uma nova discoteca parisiense, John continua na expectativa de que esse acontecimento se produza, e May, que nunca o esquecera, aceita acompanhá-lo na sua espera. Assim, praticamente todos os sábados entre 1979 e 2004, May e John encontram-se nessa mesma discoteca e, juntos, à caça, observam os corpos que se agitam na pista de dança, enquanto aguardam a chegada da tal coisa… A menos que sejam eles as “presas” que a “fera” espia antes de atacar (fera essa que é simbolizada, no início do filme, pela imagem de um leão à espreita, que figura num cartaz de uma exposição de Henri Rousseau com que May se depara a caminho da discoteca).
La Bête dans la jungle convida-nos a substituir a ideia da discoteca como heterotopia de emancipação dos corpos e de manifestação de comportamentos desviantes e de sexualidades não heteronormativas, por uma crítica da alienação da sociedade contemporânea à luz da alegoria da caverna de Platão.
O cocktail estroboscópico que banha La Bête dans la jungle assenta num esboço de intriga livremente adaptada da novela homónima de Henry James (A fera na selva, publicada em 1903) – novela essa que já anteriormente servira de fonte de inspiração para François Truffaut, em La Chambre verte (O Quarto Verde, 1978) e que fora transposta aos palcos por Marguerite Duras, em 1981, numa primeira encenação de Alfredo Arias, com Sami Frei e Delphine Seyrig nos papéis principais. Para além da adaptação de Chiha, a novela de Henry James foi também recentemente transposta ao grande ecrã por Bertrand Bonello, no seu novo filme de ficção-científica, La Bête (2023), que acabou de ser apresentado na última edição do Festival de Veneza.
Enquanto na novela de Henry James a dupla de protagonistas se move na esfera da alta sociedade londrina do início do século XX, na versão de Chiha a intriga é transposta para a subcultura noturna parisiense de finais do século. Através da rádio e da televisão, chegam ao interior da discoteca as notícias de alguns dos acontecimentos históricos mais marcantes da época, como a eleição em França de François Mitterand (1979), a queda do Muro de Berlim, (1989), a epidemia de SIDA nos anos 80/90, ou o ataque às Torres Gémeas, (2001)… Mas John, convencido de que o espera um destino único e solitário, permanece tão indiferente e impassível face aos tumultos coletivos da Grande História quanto perante as pequenas estórias individuais daqueles com que se cruza; afinal, para ele é inconcebível que a coisa drasticamente transformadora que lhe está reservada seja algo tão simples e banal como apaixonar-se e viver uma história de amor.

Obra-prima de ambiguidade psicológica e de ironia narrativa, a novela de Henry James, narrada na terceira pessoa, mas adotando o ponto de vista da personagem masculina, concentra-se nos colóquios entre May e John – “o homem das frases misteriosas” – e, sobretudo, na obsessão e na cegueira inveteradas deste último. Já a câmara de Chiha parece mais sensível à dança das sensações e dos sentimentos de May, sendo capaz de apreender não só o seu “estado de graça” inicial, como a sua gradual tomada de consciência e consequente imobilização face ao seu destino. Nesse sentido, esta adaptação cinematográfica de Chiha parece-me mais próxima da dramaturgia de Duras do que da novela de Henry James: para além dos diálogos eminentemente durassianos, o filme é percorrido por motivos, questões e dilemas explorados pela autora em várias das suas obras, nomeadamente em Le Navire Night (1979) – outra história de amor não consumada por receio que o desejo se esvaneça uma vez concretizado, outro filme de deriva noturna num espaço-tempo incerto (já dizia Foucault que o navio é a heterotopia por excelência: “pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado sobre si e é entregue, ao mesmo tempo, ao infinito do mar”).
À medida que a música se simplifica em loops e beats repetitivos, e que as roupas se tornam cada vez mais reduzidas e reveladoras dos corpos, o sentimento de comunidade vai-se perdendo, e o corpo de baile vai-se desagregando numa massa de “radicais livres”.
Uma outra interpretação possível da dimensão metafórica do espaço em que se desenrola a ação de La Bête dans la jungle convida-nos a substituir a ideia da discoteca como heterotopia de emancipação dos corpos e de manifestação de comportamentos desviantes e de sexualidades não heteronormativas, por uma crítica da alienação da sociedade contemporânea à luz da alegoria da caverna de Platão: não é apenas John quem é prisioneiro das suas convicções ilusórias, mas todos aqueles que, deslumbrados pelo “barulho das luzes”, contagiados pela energia dos corpos que os rodeiam, ou anestesiados pelo álcool e as drogas que consomem no interior da discoteca, se vão esquecendo que a vida continua a acontecer lá fora.

A temporalidade do filme, essa, revela-se resnaisiana, sendo que a montagem sublinha a abstração e a ambiguidade do tempo cronológico; para isso, Chiha decide não envelhecer as suas personagens, o que faz com que seja particularmente difícil determinar quando tempo decorre entre duas cenas, ou mesmo entre dois planos. Com efeito, apreendemos a passagem do tempo através da própria evolução dos estilos de dança e de música que são retratados, evolução essa que dá conta de uma transformação progressiva do estado das almas (e dos corpos), que passam da exuberância jubilatória e contagiante da disco, aos ritmos hipnóticos e obsessivos da música electrónica. É de salientar que o genérico inicial corrobora esta leitura ao convocar imagens amadoras de bailes populares onde se reúnem crianças, casais e idosos num ambiente festivo; este olhar sobre a dimensão comunitária da dança amadora como espelho dos movimentos da sociedade é, a meu ver, um dos achados da realização de Chiha: à medida que a música se simplifica em loops e beats repetitivos, e que as roupas se tornam cada vez mais reduzidas e reveladoras dos corpos, o sentimento de comunidade vai-se perdendo (a ponto de a pista de dança ficar praticamente vazia no pico das mortes causadas pela SIDA), e o corpo de baile vai-se desagregando numa massa de “radicais livres” absortos nas suas respetivas trips alucinatórias.
Eventualmente, também o entusiasmo inicial do espectador face ao submundo noctívago de La Bête dans la jungle esmorece à medida que a euforia dos corpos na pista de dança vai arrefecendo, que o dispositivo fílmico estilizado deixa de constituir novidade, e que a narração omnisciente de Béatrice Dalle se torna redundante uma vez decifrada a “moral da história” – e não é preciso termos lido a novela de Henry James para percebermos que, sem que as personagens se dessem conta, já acontecera aquilo que tinha de acontecer: “La bête existait bel et bien et elle avait bondi”.
E se o filme acaba por ser vítima do feitiço que havia lançado ao espectador e por sucumbir ao peso da adaptação literária, Chiha tem o mérito de tomar o partido dos corpos e de, através do modo como os filma, procurar responder a um desafio enunciado por Georges Didi-Huberman: “extrair do espectáculo único dos corpos uma história; extrair uma história dos corpos àquilo que durante muito tempo permanecera cativo, nas mitologias da peste” (bem como, diria, nos imaginários das danças macabras e outras coreomanias medievais). Em última instância, La Bête dans la jungle constitui uma celebração da dança dionisíaca como ponto de encontro entre o Eu e o Outro, entre pulsões de vida e de morte, ao mesmo tempo que reitera o potencial transformador da dança enquanto forma de contágio, comunhão, evasão ou resistência.
La Bête dans la Jungle é o filme de abertura da 27° edição do festival Queer Lisboa, e será exibido no Cinema São Jorge, na sexta-feira, dia 22 de setembro, às 21h.