Jacques Tati’s last feature, Parade, is about as unpretentious as a film can get.
Jonathan Rosenbaum, Chicago Reader, 1989
Jacques Tati com Parade (Parada, 1973) dá-nos o seu último filme – e que filme! Grande com aparência de pequeno, elaborado e simples, pleno de graça e pantomima. Detentor de um espírito raro e subtil devolve-nos os papéis implicados na sua criação e fruição, conferindo-lhes um lugar na imagem, numa mise en scène de mestre a filmar um espectáculo de circo. Todos têm direito à sua presença, os pequenos e os grandes, os que estão dentro e os que estão fora. Todos entram no espectáculo: os que fazem os números, os que assistem, os que estão nos bastidores, os trabalhadores, os empregados do bar, todos, além do espectador do filme que entra, também, pela naturalidade do convite. Encontramos também Tati liberto da personagem do Monsieur Hulot, a mostrar-se como mestre de cerimónia e também como artista de alguns números.
Parade foi feito com um orçamento modesto e teve escassa distribuição e publicidade, não obtendo o impacto que merecia de imediato, tendo sido recuperado, mais tarde, com justíssima valorização. O filme soou como um objecto estranho. Para alguns não era um verdadeiro filme, visto antes como um documentário, sem história nem enredo – aparentemente mais distante da anterior obra do realizador. Para Tati, Parade podia até ter esta resistência do público e da crítica, mas na sua perspectiva era “muito menos do que um filme e muito mais do que um filme” [Tati em entrevista a Macha Makeïeff, publicada na revista Le Cinématographe n.° 85 de janeiro de 1983]. Esta ambivalência para ele devia-se ao facto de que ao colocar em oposição o espectador que assiste a um espectáculo e aquele que assiste a um filme, deixa-os ao mesmo nível. Além disso, Tati coloca ainda na imagem o espectador, activando o seu papel no lugar de quem vê e de quem pode participar, relevando a sua presença. Fica abolida a quarta parede e o espectáculo parece completar-se numa forma mais aberta, mais permeável, mais frágil (talvez), com uma inegável touche de autenticidade, muito bem explorada.
Este foi um filme de encomenda da televisão sueca, rodado na sua maior parte em vídeo – outro aspecto que demonstra um lado mais experimental de um Tati avant garde, que lhe permitirá, ainda, poder alongar-se na captação sem a obrigação da economia da película, se bem que o filme acabe depois transferido para película para exibição em sala.
Tati vai atrás das formas e conteúdos a partir dos quais se alimentou ao longo da carreira: a nobre pantomima, o music hall, o valor do espectáculo e do espectador, o valor das pessoas. Para Tati o maior professor era o espectador, e neste filme coloca-o em destaque ao lado dos artistas. A cumplicidade de todos é evidente.
O filme começa no genérico com os tambores a soar e a palavra “Parade” a surgir diante da fachada do Circo. A abertura está dada, e vemos o público a entrar no recinto. O espírito é de alegria, o guarda-roupa é colorido, a estética dos anos 1970 fica bem às artes circenses. A audiência transmite um tom jovial e ligeiro; numa fila dois jovens roubam cones de sinalização de trânsito e colocam-nos na cabeça, deslocando o objecto do seu uso: o humor arranca. Na entrada, um menino e uma menina acompanhados pelo pai e pela mãe destacam-se, notam a presença um do outro – Tati vai dar-lhes mais importância depois. O realizador mestre nos detalhes lança-se nas correspondências, uma flor no décor a ser pintada, a mesma flor no vestido de uma senhora, os cones na cabeça dos jovens, um capacete na cabeça de outro, lenços na cabeça, mais lenços na cabeça, uma leveza cómica assenta neste exercício lúdico de paridades que desperta a acuidade visual (auditiva, também) e faz-nos atender aos pormenores.
As pessoas sentam-se, há coisas a ultimar, pinturas a completar nos cenários, os pintores e carpinteiros são expostos. Tati mostra-nos os bastidores, que não são bem bastidores pois tudo aqui importa e se pode integrar num universo em movimento, onde os papéis se alternam. Estão lançados os não-limites que esbatem fronteiras entre as coisas, entre o espaço cénico e os bastidores, entre os artistas e o público.
Começa e não começa o espetáculo. Entram alguns artistas, surge depois o mestre de cerimónia, o nosso Tati, ou melhor o Monsieur Loyal (senhor Leal, bonito nome), que anuncia que todos podem participar, incluindo igualmente ele. Todos aplaudem, quer dizer, quase todos, o menino (aquele do início) parece aborrecido – detalhes que têm a graça de integrar reacções contraditórias.
O espectáculo mostra-se entre malabaristas, acrobatas, palhaços, músicos, mágicos, bandas, jogadores de hóquei, cantoras. Tudo compõe um leque de números muito originais e moderníssimos – a mão de Tati está na configuração dos números onde transborda a perícia criativa. A participação é simultânea ao espectáculo e ao espectador, isto é, à câmara que o está a ver, a recolher reacções e a devolver-nos presenças. O espírito documental inscreve-se na medida de uma certa realidade e verdade captada, a parecer isenta de grandes efeitos da realidade, pois ela está ali; acontece. Não houve propriamente direcção para os espectadores do circo, houve o olhar de Tati a vê-los reagir, a vê-los não reagir, a deixá-los observar e participar.
Outro detalhe curioso – e assumido – são as fotografias a preto e branco, em tamanho real, de espectadores sentados, colocadas no meio do público real. Tati mostra a construção, brinca com ela, o jogo da fabricação é assumido. A cena de um burro a ser montado, ou melhor, a montar, é delirante, os limites da improvisação e do controle da cena atropelam-se. Não sabemos muito bem quem é figurante e quem é artista.
Parade contem uma simplicidade que se desdobra de frente a um espectáculo que nos é dado ver (com todos os presentes e o imediatismo natural que produz a troca entre os artistas e o público) e, ao mesmo tempo, a projecção de uma complexidade (pela forma como o filme se desmultiplica numa incrível maquinaria cénica em exibição, cheia de ideias e projecções em colossal mise en abyme). Nesta linha de lugares activos, Tati entra no jogo, mestre mimo por excelência executa números seus. A revisitação é bem autoral e a panóplia no seu traço naïf é reconhecível, sobejamente inteligente e divertida: jogo de futebol, o pescador, um cavaleiro, o jogador de ténis… Uma bela repescagem em auto-citação que parece afirmar-se enquanto síntese, transportada para este último espectáculo, através de um corpo colectivo que absorve a criação, os artistas e os espectadores.
A “estética democrática” de Tati, segundo Jonathan Rosenbaum, crítico e investigador de cinema – e especialista da obra de Tati –, dedica-se a uma captação singular que agarra tudo, como privilégio de atenção, e vai mais além, podendo aceitar o que à partida está isento da articulação de um gag, permitindo ao espectador recolher possibilidades cómicas. Esta “câmara distraída” (Rosenbaum) só o é na medida de amplificar e recolher possibilidades, desalinhar o acerto mais previsível da captação do espectáculo, descentralizando-o. Nesta “recolha” pode sair-se do espaço, ver uma criança perdida a ser recuperada, ir ao bengaleiro, observar o trânsito de personagens a abrir portas, um músico, um mágico, uma jovem de capacete e o efeito cómico a acontecer. Há nisto um jogo de liberdade de olhar. Alterando esquemas expectáveis de coordenação de acontecimentos, Tati abre um território cénico mais amplo que transita sem paredes para todo o lado, dando-nos uma amplitude de olhar, de demorar o olhar proposto (não imposto). A circulação da câmara faz o espectador circular também, parar e reparar.
Há em Parade uma “complexa interação entre não-ficção e ficção, acaso e construção” (Rosenbaum) que parece intervir como lances de possibilidade a uma abertura interpretativa, tornando o filme directo e intrigante, leve e profundo – dualidades que parecem instalar-se nesta obra sem limites de género.
Bonito é também ver o abandono de espectadores a esquecerem-se da câmara, as crianças a reagirem ao ritmo da sua espontaneidade e resposta inesperada. Rir ou não rir, a questão está mesmo na liberdade – toda a liberdade aqui proposta em grande bandeja. Pincéis do trabalho nos bastidores transformam-se em objectos para malabarismos, os malabaristas são os pintores do cenário, quer dizer são os artistas, também; um fotógrafo contorcionista em palco capta imagens de uma cantora que deixa o público em êxtase. Os números contaminam-se e provocam-se: músicos a tocar são interrompidos por jogadores de hóquei, tiroleses põem o público a cantar em pleno movimento festivo de união, balões voam no público, um balão esvazia-se, notas de subtileza surgem em momentos mais pequenos, mais poéticos, a pontuação sonora vai dando conta do ritmo, da cadência do filme que sobe e desce no gráfico, modelando-se a cada medida.
O humor é atravessado por uma certa melancolia. O cómico minimal de Tati transparece, inteligente e subtil, com um marcante labor sem vernizes artificiais. A figura elegante do realizador eleva-se, impecável e longilíneo, a conduzir as coisas de um lado para o outro – na verdade, tudo passa a ser principal. Muita coisa acontece, o espectáculo é rico, é cheio, o filme avança em movimento aberto, fora dos eixos do carrossel.
As crianças são colocadas em cena num inesperado epílogo para dar a nota final, tornando-se numa aventura de criação sem freio. A experiência é um jogo, uma verdadeira brincadeira com os elementos que as crianças ali encontram – o palco é para elas. Brincar é o melhor remate.
A singularidade da concepção deste filme-circo/filme-espectáculo encontra-se na entrega da criação dada a toda a gente: criadores, artistas e espectadores. Um filme habitado pelo trabalho do artesão, da bricolage, de construção contínua e colaborativa. Um filme que é um presente. Um filme que se oferece ao espectador e aos artistas com a nobreza andante e nómada da geografia do circo, como lugar primordial de criação, oferecido e mutável, e também familiar e alegre.
“A alegria é a coisa mais séria da vida” (do mestre Almada) está no olhar de Tati, na câmara inteligente, pueril e divertida, muito, muito trabalhosa, do mais charmant pensador e fazedor cómico que complexifica o simples e simplifica o complexo. Pierre Étaix afirmou que, com Parade, Tati tinha elaborado qualquer coisa que é mais verdadeira do que a verdade. Um filme que acaba por ser (em verdade) mais do que um filme.
Parade é exibido no próximo dia 29 de Setembro, sexta-feira, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, pelas 18h00, no âmbito das HISTÓRIAS DO CINEMA: JONATHAN ROSENBAUM / JACQUES TATI, conjunto de cinco sessões que decorre ao longo desta semana, sempre às 18h00 e sempre acompanhadas por apresentações e comentários do crítico Jonathan Rosenbaum.