É muito difícil fazer um documentário ensaístico que desarruma o passado pessoal para contestar e rectificar a história (de que se faz o presente) sem cair no lugar comum que o uso do “eu” acarreta. Por um lado, o carácter meloso e verborreico que vem às costas do acto de recordar. Por outro, o típico umbiguismo, que arrisca que o filme resvale mais rapidamente para uma observação que afunila, em vez de expandir. Para além disto, e assim que a narração se instala definitivamente enquanto fio condutor, o risco desta não conseguir fixar e manter o charme da evocação é demasiado elevado. Há uma razão pela qual Agnès Varda continua a ser protegida a todo o custo. Poucos são os cineastas que conseguem realmente puxar para os cantos os termos padronizados do que é um filme-ensaio para o refazerem como se tudo se tratasse de um jogo (no qual se segura a lanterna na mão e se constrói a realidade num presente que viu a inevitável mudança tornar-se o futuro).
Kleber Mendonça Filho consegue isso e mais com Retratos Fantasmas (2023). Partindo da sua juventude cinéfila no Recife, a sua terra natal, o cineasta brasileiro começa por esmiuçar esse recontar até chegar ao tom solene da elegia pela experiência comunal em risco de extinção: o desaparecimento das salas de rua, das cidades e dos seus espectadores. O que, eventualmente, o faz cair nos braços do acto de resistência. Sem precisar de recorrer a assaltos tonais de qualquer espécie, vai cobrindo os vários episódios que desenterra e associa a outros (um de cada vez e depois todos ao mesmo tempo) com pinceladas da memória afectiva, serena, carinhosa e espectral, até o filme regressar também ele ao estado original de objecto e nos vermos, outra vez, todos juntos, corações a tilintar, na sala grande do Cinema São Jorge durante a sua antestreia.
Através de três capítulos, dois deles sólidos e edificadores, Kleber evoca o cheiro a “maré, fruta e mijo” do Recife para que o respiremos, e o eco das palavras de Jorge Silva Melo “Dia mundial de quê, se as salas estão encerradas?” faz-se ouvir. Há o apartamento de Setúbal e a família, o centro do Recife e a sua eventual degradação com os cinemas de rua a fecharem uns atrás dos outros “com a chave de lágrimas”, nas palavras do Sr. Alexandre (Moura), último projeccionista do Arte Palácio (construído para ser um dos transportes propagandistas da UFA de Joseph Goebbels). E, depois, um terceiro capítulo que se debruça sobre a espiritualidade dos cinemas enquanto templos que são, e as igrejas evangélicas que os vieram substituir. Rapidamente se conclui que este não é tanto um retrato de Kleber sobre o que fez dele quem é, como é um retrato sobre todos nós e aquilo que nos une uns aos outros.
Com os pedaços a falar pelo todo, da esfera doméstica à pública, do pessoal ao político, o mosaico constrói um documento histórico-social contado ao longo do tempo.
Mas primeiro voltemos ao mote. Voltemos à fantasmagoria. Não propriamente da que existe na génese do fazer e ver cinema, mas a outra, a das estruturas arquitectónicas onde o cinema acontece e onde é recebido, a casa que já não faz parte da família e os palácios-cinema despidos de identidade. Como não pensar na celeuma dos escritórios do Banco Português de Investimento que se apoderou, tal entidade alienígena, do Cinema Monumental, encerrado em 2019? Só mais um edifício para aqueles que por ele passam. Suspeito que voltaremos a Retratos Fantasmas quando pensamos nesta iminente e, assim parece, imparável desafectação cultural.
Segundo o que é possível entender, este projecto do realizador de O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), que demorou anos a ser concluído, teve como ponto de partida uma fotografia de um vulto em movimento, impossível de distinguir ou reconhecer, tirada na sala do apartamento onde o cineasta vivia. Através desta, uma cronologia é construída cruzando arquivo guardado, redescoberto ou inquirido de propósito com recortes da contemporaneidade para desenvolver o tipo de topografia urbana provocada por uma ruptura e à procura de uma outra ruptura para conseguir unificar as pessoas ao que já foi delas. Como é possível esconder a história de um edifício? Como é possível retirá-lo da paisagem sem nunca o demolir? Como é possível realizar esta cinzentificação?
Deitado num texto vibrante e imagético que ora parece que sabe o caminho que vai percorrer para responder a estas questões como deambula num segundo inchado capítulo e deixa o terceiro sem espaço para se explicar – eis o cinema da vida –, as imagens de Kleber vão-se sempre auto-referenciando numa tentativa de continuar a impulsionar o discurso e fazer, claro, sentido das coisas. É um filme que nasce do que é pensado de forma investigativa que (mais uma vez) lembra os moldes de re-criação de Varda, no sentido em que o espectador sente quão rarefeitas são as suas propriedades e, no entanto, quão bem “cozidas” acabam no prato. Com os pedaços a falar pelo todo, da esfera doméstica à pública, do pessoal ao político, o mosaico constrói um documento histórico-social contado ao longo do tempo. Vê-lo uma vez é senti-lo na energia dos outros espectadores. Mas revê-lo é ver nas suas palavras as várias invasões que vão assumindo o controlo dos alicerces por cima dos quais nos criamos.
Se na casa de Setúbal onde cresceu, adorado plateau de muitos dos seus filmes e onde amadureceu enquanto cinéfilo e realizador, as térmitas oriundas da casa do vizinho vinham fazendo estragos, uma maior colonização, imune a arame farpado e portões, acontece a uma sala de cinema que “vira hospedeiro” de um centro comercial. Não podia ser mais parasitária a usurpação dos promotores imobiliários. A sequência dentro do antigo Veneza, vivo mas em estado vegetativo, que vê o que parece ser um morcego à procura de saída daquelas paredes vazias e descaracterizadas, é talvez dos momentos de cinema mais assombrosos do ano.
Aos poucos, a licença poética de que o filme se alimenta e a tristeza na perda do “mapa sentimental” de Kleber (do seu Recife) constituem um outro, um mapa da saudade, e esse sim é o derradeiro retrato fantasma apresentado. Alternando um leve estado de êxtase com uma melancolia iluminada, o próprio cineasta vai explicando o filme enquanto este se vai desenrolando, como quem sente necessidade de se ir elucidando para não perder de vista o desafio em mãos. “É muita história”, como nos diz. A sua, a do Recife, a das salas que estão lá sem estar. No meio deste acumular, Retratos Fantasmas faz cinema com o que o cinema lhe deu. Kleber queria filmar uma rua à noite sem iluminação, mas só gostou do que viu quando juntou o comum ao fantástico. Aí sim é que tudo ficou “com cara de cinema”. Exactamente por isso é que ouvimos que “os filmes de ficção são os melhores documentários” e os “filmes futuristas também são documentários”. Não bastam os edifícios. Não basta a História. Não basta mostrá-los. Há que fazer cinema deles.
Não consigo parar de pensar naquela frase inicial, “Pode parecer que estou falando de metodologia, mas estou falando de amor”. Retratos Fantasmas é sobre o movimento das coisas.
Porque, aliás, a cinefilia vai para lá dos filmes e dos espaços onde estes são mostrados. Está nos letreiros que enquadram, legendam e inspiram “a vida do mundo”, no entusiasmo que as montras expositoras nas paredes das salas provocam, já para não falar também dos momentos passados com os projeccionistas veteranos na cabine de projecção. Se pensarmos bem, há muito pouco da cinefilia que é sobre a sala em si. O que mais comove é o padrão repetido do deslocamento até ela, a antecipação de nela estar e o que acontece depois dela sairmos, depois de sustermos a respiração em uníssono. É isso que move e é isso que nos tentam roubar. Mas o filme nunca é desprovido de esperança. Muito pelo contrário.
Do final da década de 1970, naquele apartamento em Setúbal, até à sequência pitoresca encenada entre o cineasta e um condutor de um Uber, este é palco para uma ode aos que são vistos mas permanecem invisíveis. Resta colocar a questão: temos mesmo que aprender a viver com os fantasmas que nos rodeiam? Muitos dos locais onde Kleber desenvolveu a sua educação cinéfila já desapareceram e, como a música de Tom Zé nos diz (uma e outra vez), “…não tem beijo final e não vai ter happy end”. Ainda assim, há que relembrar que não há retratos arrastados sobre o que continua a acontecer fora da sala do Cinema São Luiz, no Recife, ou do Cinema São Jorge, em Lisboa, depois de uma sessão de cinema. Não consigo parar de pensar naquela frase inicial, “Pode parecer que estou falando de metodologia, mas estou falando de amor”. Retratos Fantasmas é sobre o movimento das coisas.
★★★★☆