Wes Anderson não quis apenas estrear um filme este ano, com o “empratamento autorreflexivo” de Asteroid City (2023), trazendo para a Netflix quatro curtas-metragens que foram estreadas em dias consecutivos: The Wonderful Story of Henry Sugar, The Swan, The Rat Catcher e Poison. Estas são adaptações mais do que sui generis do trabalho do autor britânico Roald Dahl (quase tão conhecido pelo seu anti-semitismo como pelo seu trabalho literário, que exerce claramente um fascínio sobre Wes Anderson, que já o tinha adaptado em Fantastic Mr Fox [O Fantástico Senhor Raposo, 2009]), conhecido por livros como Charlie e a Fábrica de Chocolate, Matilda ou As Bruxas. As histórias de Dahl são fantasiosas, com um sentimento caloroso subjacente mas frequentemente justaposto com ou o grotesco, ou humor negro ou, mesmo, uma cruel violência. Há uma malícia que permeia os escritos de Dahl, bem como um sentido de humor retorcido — exposto se não na primeira, nas seguintes histórias que Anderson escolheu adaptar. As quatro curtas podem ser vistas em qualquer combinação, vale a pena vê-las por ordem de lançamento (sendo também a sugestão do algoritmo, se se começar, pelo menos, com Henry Sugar).
O tom dado por Anderson a estas adaptações é muito próprio, e as histórias que passa para o ecrã (ele sublinha que realiza e escreve “for the screen”) são a argamassa moldada pelo seu estilo cinematográfico e a sua idiossincrática linguagem visual — é engraçado pensar na quantidade de imitações (que povoam redes sociais como o TikTok) ao seu estilo e que, tentando, nunca conseguem ter o vigor de Wes Anderson. Não é apenas estética inerte, como já tentei argumentar com o meu despacho sobre The French Dispatch (Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun, 2021), ela é bem sucedida porque tem uma razão de ser e um argumento a apresentar.
Estas curtas trabalham ainda algumas coisas que seduzem particularmente o realizador americano: a loquacidade e a teatralidade; com os seus trabalhos a pisarem, cada vez mais, os limites indefinidos do cinema-como-um-palco-de-teatro, com toda a artificialidade inerente a contar uma história. A câmara dança, mas em torno da rigidez de um cenário que se equivale a um palco com-e-sem os seus limites normais, com os fundos e design de luz a mudar, os ajudantes de palco a ajudar com adereços (silenciosos, não fornecem apenas os efeitos práticos das curtas, eles são os efeitos práticos), ou o discurso directo para o olhar da câmara a quebrar ilusões. Wes Anderson a brincar com os seus mais deliciosos apetrechos. Não nos vai deixar perder na história de uma forma clássica, ao invés, mergulhamos marchando conscientemente sob a sua batuta rigorosa, mais Hitchcock do que Billy Wilder. O efeito tem, necessariamente, dois resultados: ou é transformador para quem vê, ou entorpecedor para quem se cansa com os artifícios caprichosos. Onde está o coração ou a alma deste cineasta? Mas é precisamente aí onde ela se esconde, a alma brota dos cantos desta brincadeira estética para oferecer surpreendentes facadas de emoção. O artifício ou a artificialidade são apenas o contraste que sublima algo de mais profundo.
É isso que é interessante observar nestas quatro curtas, o quanto a oeuvre de Anderson tem uma corrente subjacente que é sombria e violenta.
As três primeiras histórias da série têm em comum uma abordagem visual semelhante: um rácio de 4:3, um quadrado pintado sob uma paleta desbotada e amarelada. Já a quarta história, Poison, afasta-se deste estilo. As quatro têm o olho fixo na escrita de Dahl, havendo sempre um texto final que contextualiza as circunstâncias da criação de cada história, já que também temos Ralph Fiennes como o próprio Dahl a imiscuir-se enquanto personagem que está imbuída na adaptação. Assim, temos um diálogo constante com Dahl em duas facetas: através da forma como Anderson interpreta (e se rebela, por vezes) cada história (aqui tudo é uma questão de apresentação, de enquadramento, iluminação), e a perspectiva quase de “mundo real” que a personagem de Dahl polvilha, sobretudo na primeira história, sobre Henry Sugar.
Anderson adapta Dahl tratando a sua prosa como guião, os actores narram quase todo o texto. Esta é a curta que melhor abre o menu e acomoda o espectador a esta abordagem. Personagem e narrador esbatem-se, assim como o uso repetido de actores numa mesma história (cinema-teatro, ao mais alto nível). O diálogo é rápido, a acção inquieta e os longos takes de Anderson engenhosos. Talvez a melhor das quatro curtas-metragens, e certamente a mais calorosa e a que se desdobra em mais matrioskas narrativas, aqui conta-se a história de Henry Sugar, num homem (Benedict Cumberbatch) que descobre a história de um guru (Ben Kingsley) que consegue ver sem usar os olhos. Sugar predispõe a aprender esta técnica para ganhar batoteiramente jogos de cartas em casinos. Mas ao trabalhar arduamente para dominar esta forma de concentração e visão do mundo, tem uma epifania que o leva a criar um legado de altruísmo que Fiennes-como-Dahl parece acreditar que haja pouco no mundo, especialmente partindo de homens ricos.
Nesta segunda curta, Rupert Friend é o narrador (mas talvez também personagem principal), chegamos a uma história sombria de bullying, com a crueldade, mas também beleza humana, demonstrada numa longa e penosa subida de tensão. É a mais minimalista das curtas e vagueamos num longas sequências por um cenário composto por trigo, arbustos e árvores que se deslocam à medida que dois rufias perseguem um rapaz inteligente e delicado. A linguagem estética de Anderson poupa-nos às partes mais violentas, mas não às suas consequências emocionais.
Esta história explora ainda mais os recantos negros no coração do Homem, desta vez focada não no território infantil de The Swan, mas no mundo adulto de dois homens locais que chamam um “apanhador de ratos” para tratar um problema de roedores. Rupert Friend é Claud, Richard Ayoade é o repórter, surgindo Ralph Fiennes como “Rat Man”. As características e conversa deste “Rat Man” começam por elicitar empatia, mas a narrativa desce por caminhos sombrios e nefastos, mostrando a crueldade no coração dos homens (já crescidos e já não crianças, que Dahl associa sempre mais à inocência). O detalhe mais interessante é o uso de stop-motion na representação de um rato antropomorfizado (sublinhado pelo facto de Friend se tornar, a certa altura, ele próprio na personificação do rato, num dos gestos mais teatrais da curta) que está preso num ciclo de violência. Fiennes revela uma certa obscenidade à coca, num desempenho tingido pelo sinistro.
A última vinheta desta composição é Poison, que regressa às mãos de Cumberbatch, Kingsley e Dev Patel, que tem um papel também em Henry Sugar, e se mostra como um actor injustamente subvalorizado. A história é simples: estamos na Índia ainda sob jugo britânico. Um oficial inglês afirma ter uma serpente venenosa a dormir no seu estômago, pedindo ajuda ao colega, Patel, que vai em busca de um médico local para o ajudar. Desta vez, o formato é widescreen 2.35:1, as cores não estão desbotadas, mas saturadas e Anderson joga ainda mais com a iluminação (mais severa e directa) e os ângulos de câmara, com Patel como narrador sem fôlego, da tensão que se eleva nesta dança de vida ou morte.
Mas o contraste não é apenas estético. A Índia volta a ser um lugar de fascínio para Anderson (The Darjeeling Limited [2007[) que a tem como geografia em Henry Sugar e Poison. Mas a abordagem muda. Se no primeiro é um lugar mágico e de sabedoria, aqui é um local sufocante, de perigos múltiplos, sendo o mais oneroso o racismo revelado no final. Em Henry Sugar, Cumberbatch aprende com Kingsley, na segunda, denigre Kingsley. A fetichização dá lugar à opressão.
É isso que é interessante observar nestas quatro curtas, o quanto a oeuvre de Anderson tem uma corrente subjacente que é sombria e violenta. Ela não é gráfica (tal como a escrita de Dahl), mas é um espectro que paira e assombra os seus enquadramentos obsessivos: o fascismo em The Grand Budapest Hotel (Grand Budapest Hotel, 2014), a depressão suicida de The Royal Tenenbaums (Os Tenenbaums – Uma Comédia Genial, 2001). Em Henry Sugar somos embalados pela promessa de um altruísmo que vemos despedaçado (mas não apagado) nas curtas subsequentes. Uma exploração, mesmo que esteticamente exuberante, da multiplicidade de facetas humanas, da sua bondade admirável à sua vileza obstinada.
The Wonderful Story of Henry Sugar
★★★★☆
The Swan
★★★☆☆
The Rat Catcher
★★★☆☆
Poison
★★★★☆