Uma das raras ocasiões em que o cinema não se vergou à suposta superioridade da literatura conhece dois nomes – Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís. A razão para terem formado uma unidade intransponível entre cinema e literatura reside na transformação de um na matéria-prima do outro, e vice-versa. Sem se confundirem, a palavra de Agustina materializou-se nos filmes de Oliveira, e estes dizem a palavra de Agustina. Nenhum domínio prevaleceu entre a imagem e a palavra. Esperar que um encontro de natureza semelhante se repita é lançar uma sombra sobre a marca indelével que os dois deixaram no cinema português.

Começamos a partir de Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís justamente para deles nos despedirmos, sem os esquecermos. A Sibila (2023), realizado por Eduardo Brito, não é uma adaptação do romance de Agustina com o mesmo título, mas um filme, como o próprio enuncia, “a partir” dele. Um filme que nele tem a sua matriz, mas que dele não tem a sombra. Ser desassombrado não implica, no entanto, a ausência de respeito e proximidade ao romance. Apenas a ausência de traição e um receio do mal que se poderia abater sobre A Sibila (o filme) se ela fosse concretizada. E no cinema o único pecado é não pecar de todo.
A Sibila gravita em torno de Joaquina Augusta, interpretada por Maria João Pinho. Desde criança, é tratada por Quina e, ainda em criança, fez-se Sibila, mulher cuja definição se divide entre a profecia e a malvadez. Não bruxa, nem tão pouco feiticeira – Sibila. A voz da sua história é de Germana (Joana Ribeiro), a sobrinha, a quem, por afinidade, trata por Germa. Nenhum outro espaço poderia inaugurar a história de Quina se não a Casa da Vessada, da qual se fez senhora, a única, após a morte do pai. Tendo-a herdado, Germa herdou também o papel de narradora. Sentada na cadeira de baloiço, que outrora fora de Quina, reclama o direito de lhe contar a história a seu bel-prazer, não aspirasse ela às artes e às letras.
Agora que vimos o filme e Eduardo nos deu a ver o rosto de Quina e Germa, continuamos a afirmar que A Sibila perdura um mistério intraduzível.
O filme segue a estrutura do romance, a sua cronologia (não necessariamente o seu tempo) e a narrativa. Porém é sobretudo no corpo que se distingue. Entre a palavra e a imagem firma-se o corpo de Maria João Pinho, a Sibila de Eduardo Brito. Não de Agustina e ainda menos de um universo fílmico por cumprir de Oliveira. Tão densa é a personagem que o peso da sua presença escapa a uma psicologização totalizante na qual o filme poderia facilmente cair. Eduardo não teme essa densidade e dá-lhe fisicalidade no olhar e no caminhar. A interioridade de Quina é um mistério e permanece velada às potencialidades do cinema, “sublinhando a sua natureza nunca totalmente perceptível (…)”, escreveu Eduardo Brito. Sofreu algo em criança, que lhe cravou na pele um sinal para a vida, e desde então cresceu para dentro de si como um prenúncio de morte e uma avareza desmedida. Pouca ou nenhuma atenção deu aos homens, de resto figuras de aparição débil e fulgurante no filme, tendo-se apossado quanto pôde em propriedades da Casa da Vessada até à vila mais próxima. À excepção de Custódio, que adoptou como se fosse seu filho, porque nunca sentiu reciprocidade de afectos das crianças da sua família, incluindo Germa. Decerto amava a sobrinha pela semelhança que nela via consigo, mas o infame Custódio foi o único que não a abandonou. Nele projectou uma ideia perversa de cuidado, mas a generosidade que ofereceu ao rapaz contrastava com a dureza do seu carácter.
Em tudo há uma discórdia entre a interioridade de Quina e a exterioridade das suas posses – ambiciosa e rica, os seus modos pautam-se por um certo decoro e abnegação. A casa reduz-se ao necessário, nada mais. O único elemento ornamental é a fotografia da família pendurada na parede amarela da sala, símbolo de uma exterioridade que não é espacial, mas sim temporal. A fotografia representa a dimensão visível da circularidade temporal que une Quina e Germa, a outra sibila, na precisão de um mesmo gesto, medida da relação extemporânea entre elas.

Diante daquelas paredes amarelas evidenciam-se as suas figuras como duas faces de um só poder. Quina e Germa são duas mulheres que contrariam o destino e transcendem a sua condição, movimento cuja forma cinematográfica é o silêncio e o plano fixo. Na verdade, ao longo do filme, todos os diálogos são breves e escassos, sob pena da palavra tomar o lugar do corpo e do olhar, que são a matéria expressiva do filme. E são-no também a luz e a sombra inscritas na dialéctica interior-exterior, físicos e espirituais, que ordenam a escala dos planos nos seus limites. Interpõe-se entre estas duas dimensões um plano intersticial invisível, que não chega a constituir uma suspensão enquanto princípio da continuidade entre a imagem e a palavra, mas uma cisão vazia de sentido que não sobrevive à narração em voz-off.
O prenúncio de morte concretiza-se, finalmente, em Quina, que desde cedo dela se viu acompanhada. Pressentido o fim da sua vida, ela compensa na materialidade a iminência da sua imaterialidade, adornando-se com as suas jóias no leito de morte. Diz-se que o cinema nunca poderia conhecer A Sibila de Agustina. Agora que vimos o filme e Eduardo nos deu a ver o rosto de Quina e Germa, continuamos a afirmar que A Sibila perdura um mistério intraduzível.
★★★☆☆