Penso nunca ter havido uma escola artística da Nova Vaga. Mas todos nós, de facto, tínhamos uma coisa em comum: a geração mais velha de realizadores estava confiante daquilo que estava a mostrar. A nova geração não era assim tão optimista, desconfiávamos até de nós mesmos… A geração de Kurosawa elencava soluções para os problemas da contemporaneidade; a Nova Vaga não possuía essa certeza.
– Masahiro Shinoda (apud David Desser in Eros Plus Massacre: An Introduction to the Japanese New Wave Cinema)
Um certo programador chamado Miguel Patrício – juro-vos, pelo sexto dedo do meu pé, que não há relação entre esse sujeito e este humilde escriba que, só por acaso, partilha com ele o mesmo nome e essa monomania chamada cinema japonês – resolveu integrar na terceira parte do ciclo “Mestres Japoneses Desconhecidos“ (brevemente num cinema perto de si), um nome obscuro até para aqueles cinéfilos habituados a rapar o tacho da historiografia: Eitarô Morikawa. Se não sabem quem foi este grande cineasta, não se apoquentem. Ele pertence a um clube reduzido de realizadores que só filmou uma única obra, fazendo coincidir, nessa empresa, os dois sentidos de obra-prima e ópera prima (primeira e melhor obra – à falta de outras).

Com efeito, para além de, num só visionamento percorrermos aqui a obra inteira de um cineasta, satisfazendo os desejos obsessivos daqueles espectadores que não conseguem ver um filme sem o reconduzir à integralidade de uma filmografia, um filme como Bushidô muzan (A Tragédia do Bushidô, 1960) prova, de várias maneiras, que a concentração é uma virtude. Não só no que diz respeito à duração (menos de 75 minutos – ah, o poder da síntese, tão ausente desta era digital e rebarbativa), mas também o entendimento da mise-en-scène como espaço de sucessiva inventividade, experimentação e arrojo estético, sem com isso nunca esquecer que a forma obedece sempre ao conteúdo – esse imperativo segundo o qual apenas as imagens podem traduzir e inclusive amplificar o que antes permanecia no reino da abstracção. Sem grande esforço aparente, considero haver mais ideias de cinema nos setenta e poucos minutos de A Tragédia do Bushidô do que se somássemos todos os filmes contemporâneos em cartaz durante o ano de 2023 e depois os colocássemos, em bloco, ao juízo comparativo.
Contar a história deste filme e deste realizador obriga-nos a remontar a um ano particular, 1960. Foi uma data marcante para o cinema, mesmo fora do Japão, um ano inaugurador de uma nova modernidade cinematográfica e o advento de várias novas ondas que violentamente chocavam contra o edifício do cinema clássico, julgado imperdoavelmente por elas como académico, estéril e redundante. Ao contrário dos países europeus em que o total não-alinhamento com a tradição era um pré-requisito de produção, os jovens japoneses que se opunham teoricamente ao cinema dos grandes estúdios (vale a pena lembrar a famosa frase de Nagisa Ôshima proferida nesta altura: “O que eu odeio no cinema japonês? Tudo.”), na prática acabaram por usar as suas infra-estruturas para catapultarem as suas carreiras. É também importante sublinhar que a produção independente no Japão era ainda, em 1960, um terreno raras vezes trilhado e uma opção para comunistas e esquerdistas proscritos – por exemplo, nos anos 50, Tadashi Imai e Satsuo Yamamoto fundaram a Dokuritsu Pro por se envolverem em disputas laborais com o estúdio onde trabalhavam, a Tôhô; e Kaneto Shindô e Kôzaburô Yoshimura estabeleceram a Kindai Eiga Kyôkai por razões não muito dissemelhantes. Salvo essas excepções, pouco mais fugia à rede tentacular dos estúdios que concentrava, numa só entidade, produção, distribuição e exibição.
Portanto, não é de estranhar a visão mais cínica segundo a qual aquilo que se chamou Nûberu bâgu foi apenas uma jogada empresarial da produtora Shôchiku para emparelhar um conjunto de argumentistas, assistentes de realização, críticos de cinema e ferozes repreensores do statu quo e conceder-lhes uma oportunidade enquanto cineastas. O facto é que esta assimilação provisória do sistema não representou uma domesticação – a radicalidade da Nûberu bâgu chegou a ser, a princípio, recomendada pelos superiores da Shôchiku – presumindo que isso incutiria as paixões assolapadas das camadas mais jovens que, ao contrário das mais velhas, não tinham ainda abandonado as salas de cinema em virtude da televisão. Era a juventude, pela primeira vez, encarada como a salvadora de uma indústria que precisava de se arejar e procurar novas linguagens e novos públicos.
Costuma dizer-se que o Cinema Novo português se inaugurou com três obras, produzidas por três cineastas diferentes num período de três anos: Verdes Anos (1963) de Paulo Rocha, Belarmino (1964) de Fernando Lopes e Domingo à Tarde (1966) de António de Macedo. Pois bem, nem que seja para termos a ideia da produtividade da indústria japonesa, apenas no ano de 1960, seis cineastas diferentes filmaram, só nesse ano, 11 filmes que instauraram a linha Nûberu bâgu da Shôchiku: Osamu Takahashi jogando com as convenções do género policial com Kanojo dake ga shitte iru (Only She Knows, 1960) e Shisha to no kekkon (Marriage with the Dead, 1960); Nagisa Ôshima com os explosivos Seishun zankoku monogatari (Contos Cruéis da Juventude, 1960), Taiyô no hakaba (The Sun’s Burial, 1960) e Nihon no yoru to kiri (Noite e Nevoeiro no Japão, 1960); Kijû Yoshida com os escalpelizantes exercícios de desencanto social Rokudenashi (Good-for-Nothing, 1960) e Chi wa kawaiteru (Blood is Dry, 1960); Masahiro Shinoda com os heterogéneos Koi no katamichi kippu (One Way Ticket to Love, 1960) e Kawaita mizûmi (Dry Lake, 1960); Tsutomu Tamura com o seu niilista e claustrofóbico Akunin shigan (Volunteering for Villainy, 1960) e, finalmente, Eitarô Morikawa com A Tragédia do Bushidô, estreado no penúltimo mês do ano e o último filme da linha.
Debruçando-nos nas carreiras futuras de cada um dos membros deste grupo, e a despeito da produtividade estrondosa atrás referida, podemos já revelar que todos eles tiveram os dias contados na Shôchiku. Osamu Takahashi, o primeiro cineasta a filmar em 1960, rodaria apenas mais uma comédia ligeira em 1962, Tsutomu Tamura e Eitarô Morikawa não filmariam mais, e Nagisa Ôshima abandonaria unilateralmente a Shôchiku logo após o estúdio ter retirado de circulação, em Outubro de 1960, o seu Noite e Nevoeiro no Japão, devido ao cariz político deste e ao assassinato, na mesma semana de estreia, de Inejirô Asanuma, o líder do partido socialista por um estudante radical de extrema-direita. Só Kijû Yoshida e Masahiro Shinoda continuaram a filmar ininterruptamente até 1964 e 1966 respectivamente, rechaçando também eles mais tarde, e por razões diferentes (um por dissidências criativas, o outro por esgotamento) os seus contratos na Shôchiku. O ano de 1960 representa, portanto, o nascimento de um movimento que, sendo apadrinhado por um sistema nos antípodas das suas aspirações e visão estética, acabou por rebentá-lo por dentro – algo que não tem paralelo com nenhum outro Cinema Novo.

Mas que imagens tão dolorosas e inadmissíveis são estas? 1) Uma iniciação erótica nas águas sujas de uma barragem, onde as amonas sádicas dadas a uma rapariga espelham o desejo masculino aniquilador do mundo: os corpos nus deitados nos tarolos de madeira, após a elipse do coito, são decepados pelos sons ensurdecedores de caças americanos. 2) Um corpo que tropeça no seu próprio descaramento, agarrado à ferida de bala que deixa um rasto de sangue, como as suas pernas cambaleantes: de costas, fitado pelos olhares de choque alheios, este mártir absurdo, à boca da morte, dirá que a sua própria vida nada mais foi do que um jogo. 3) Um jovem com pretensões terroristas olha para um treino de râguebi da janela do seu quarto, coberto com recortes de figuras políticas, de Adolph Hitler a Che Guevara, e fantasia ser o dono da sua própria milícia armada: quando confrontado com a gravidez da sua namorada, ele responde que um revolucionário não tem tempo para assuntos de mulheres. Ao fechar a porta com o choro dela enchendo a divisão vazia, o retrato sorumbático de Hitler, outra vez, patrocina a fúria demolidora travestida agora de activismo político. 4) Um forasteiro é esfaqueado repetidamente por um rufia enquanto uma comunidade mineira assiste sem nada fazer. Nem o forasteiro, nem o rufia são protótipos de heróis ou vilões: mesmo o extermínio ridículo do primeiro deixa-nos numa frieza inquietante e numa incapacidade de sofrer com ele. Eis um mundo sem moral, nem compaixão; um mundo no qual, parafraseando Tadao Sato, a rebelião só pode tomar a forma de delinquência sem significado, o que justamente torna todas estas narrativas cruéis.
Tudo o que existe, existe para fenecer tragicamente, e quanto mais perto da vida, mais perto da morte. É esta, resumidamente, a estética da zankoku, ou crueldade.
Apresentei, no parágrafo anterior e por esta mesma ordem, momentos-chave de Contos Cruéis da Juventude, Good-for-Nothing, Dry Lake e Volunteering for Villainy. Todos eles retratam uma contemporaneidade agressiva, negra, sem saída, e protagonistas jovens que teimosamente contrariam a salubridade associada à esperançosa geração dos baby boomers. Frequentemente, julga-se a juventude como rebelde mas aqui a rebeldia não constitui sequer um projecto de sociedade ou mesmo um desenvolvimento psicológico – talvez marcando o primeiro momento na História em que isso sucede. Palavras como “absurdo”, “acaso”, “jogo” são repetidamente proferidas por estes protagonistas que jamais se deixam capturar pelos olhos sedentos de identificação dos seus espectadores.
O cinema da Nûberu bâgu Shôchiku, atravês desta austeridade, pretendia detonar a transparência do cinema comercial, especialmente o da geração dos humanistas do pós-guerra (Akira Kurosawa à cabeça, mas não só ele) que, várias vezes, encarava a arte cinematográfica como uma panaceia da sociedade e um meio activo para a sua reconstrução e melhoramento moral. O movimento aqui é inverso: a crítica é feita através de mecanismos de exasperação, e o que sobra dessa recreação macabra é o vazio angustiante e silencioso que sucede a um grotesco acto de violência – tome-se atenção ao final de todos estes filmes e ficará claro o que queremos transmitir. Também a sexualidade não escapa a esta leitura. Aqui, ela está quase sempre ligada a uma atrocidade ou a um grande fatalismo que acometerá, sem contemplações, os seus intervenientes. A descoberta do corpo é já uma descoberta adiada da morte e o jogo do prazer, alheando-se sempre das ordens sociais ou da contestação partidária (lembre-se o desprezo pelos movimentos estudantis em Contos Cruéis da Juventude em prol do sexo despreocupado e despudorado) é um círculo fechado sobre si mesmo, um excesso de energia que só pode acabar na obliteração, o último grito desesperado do indivíduo.
Tudo o que existe, existe para fenecer tragicamente, e quanto mais perto da vida, mais perto da morte. É esta, resumidamente, a estética da zankoku, ou crueldade, termo que daqui para a frente figuraria em muitos títulos japoneses ao longo dos anos 60, de Teruo Ishii a Takumi Furukawa, passando por Shôgorô Nishimura. Mesmo Tadashi Imai, pertencente à já mencionada geração dos humanistas do pós-guerra, não lhe foi indiferente quando intitulou Bushidô zankoku monogatari (Cruel Tale of Bushido, 1963) à sua deconstrução inter-geracional do espírito abnegador dos japoneses, tido por ele como nefasto e causador das maiores injustiças. Também um cineasta como Tai Katô, apenas um ano depois, apelidava Bakumatsu zankoku monogatari (Cruel Story of the Shogunate’s Downfall, 1964) à sua representação do Shinsengumi, a tropa especial do Xogunato no final do século XIX, como combatentes sedentos de sangue que usavam o código de honra como justificação das suas purgas e actos bárbaros.
Estes dois filmes são claros sucessores de A Tragédia do Bushidô – e também não o poderia ser Harakiri (1962) de Masaki Kobayashi? -, o primeiro a aplicar os preceitos da estética da crueldade ao jidai-geki (filme de época) e, por conseguinte, o único filme da Nûberu bâgu Shôchiku a ambientar-se num cenário não contemporâneo. Quase tudo aqui, no entanto, se mantém inalterado em relação às obras precedentes (filma-se a história com um olhar decididamente moderno) e muito embora não conste no título a palavra zankoku, figura uma que hoje em dia partilha o mesmo kanji: muzan, que se traduziu por tragédia, mas cujos caracteres chineses individuais (無 – mu e 残 – zan) significam respectivamente: nada, vazio, por um lado; e trágico, cruel, miserável, insensível, por outro. No entanto, etimologicamente, muzan é um termo antigo, com conotações budistas, que tem o sentido de “ausência de vergonha depois do mal praticado”.

A Tragédia do Bushidô abre com um massacre e termina com um outro – tudo o que consta nos interstícios poder-se-ia caracterizar como um trajecto em direcção a uma estaca inicial sempre reencontrada, circular e inevitável, onde qualquer avanço é mera ilusão. Em ambos os casos, são jovens inocentes que servem de sacrifício a um sistema no qual a morte pela honra exerce uma força reguladora nas instituições e no poder político. Desenganem-se aqueles que atribuem uma visão romântica ao código do samurai e vêem nele um caminho individual em busca da excelência. Em Bushidô, toda a influência se exerce de cima para baixo (do colectivo ao individual, do poder administrativo às famílias, das gerações mais velhas às novas, dos maridos às esposas, etc.), incluindo o próprio suicídio ritualístico, não havendo qualquer tipo de vontade subjectiva que não seja tida como transgressiva e pronta para ser silenciada.
Morikawa usa o espaço vazio dos enquadramentos para sublinhar essa colossal asfixia hierárquica. Atentem-se aos planos iniciais da perseguição nas dunas onde a vastidão da areia branca parece engolir o rapaz desesperado que logo se encolhe, tornado formiga na escala do plano, tentando fugir aos seus carrascos em superioridade numérica. Veja-se ainda a primeira cena em que o Conselheiro-mor, essa figura mefistofélica representante máximo de uma ortodoxia oportunista, convoca Nobuyuki para ordenar a morte do seu irmão Iori e o corpo do primeiro permanece na extremidade do plano, exercendo um peso e uma autoridade sem paralelo em relação ao segundo, que se curva ao centro – decididamente minguado em tamanho e em direitos.
O que diferencia este filme de toda a linha Nûberu bâgu Shôchiku é a relação de forças entre a sociedade e a sua faixa etária mais nova: se os protagonistas modernos de Contos Cruéis da Juventude, Good-for-Nothing, Dry Lake, etc., eram promotores absurdos da desgraça numa sociedade simultaneamente complacente e à deriva, o jovem Iori de A Tragédia do Bushidô caracteriza-se, acima de tudo, por ser um agente passivo de uma ordem social cujas normas de conduta e códigos de honra tanto o transcendem como o impedem de existir. Enquanto os primeiros se definiam pela rebeldia infundada, o segundo definia-se por uma submissão não menos gratuita, nos limites do kafkiano. Esta obediência categórica à ordem, oriunda de uma consensualidade manufacturada, e só distraidamente confinada ao Japão do século XVII, tem óbvias ligações com o presente. A geração de Morikawa tinha vivido a pré-adolescência durante a 2ª Guerra Mundial e as raízes do feudalismo estendiam-se ao conflito e à hecatombe bélica – se Iori fosse um jovem militar obrigado a morrer pela nação, a absurdidade não seria muito diferente deste seppuku sem sentido. O diagnóstico da enfermidade cultural japonesa era, por isso, transversal a diferentes épocas e diferentes séculos. Podiam mudar os intervenientes, porém mantinha-se o ditame, aliás expresso pelo próprio Conselheiro-mor, de que “a tradição é soberana” e não admite dissidências.
O jovem Iori de A Tragédia do Bushidô caracteriza-se, acima de tudo, por ser um agente passivo de uma ordem social cujas normas de conduta e códigos de honra tanto o transcendem como o impedem de existir numa submissão gratuita, nos limites do kafkiano.
Mais importante ainda: a contestação da ordem na procura por uma nova subjectividade decidia-se também nas trincheiras do décor, em pleno ano de 1960. Durante as filmagens, consta que Eitarô Morikawa foi sucessivas vezes aconselhado pela equipa técnica a alterar o guião e o tom pessimista do filme, isto porque um mês antes de ele ser lançado eclodia o escândalo em torno de Noite e Nevoeiro no Japão do seu comparsa Nagisa Ôshima. Reza a lenda que Ôshima, próximo de Morikawa muito antes de ambos serem realizadores, soube dessa notícia enquanto visitava a rodagem de A Tragédia do Bushidô. Segundo o testemunho do seu assistente de realização Azuma Morisaki (mais tarde também ele cineasta digno desse nome), quando confrontado com estes pedidos, Morikawa respondeu como um dos seus personagens: “Se eu fizer essas alterações, este não será mais o meu filme.” A partir desse momento, todos os presentes sabiam que ele estava preparado para sair da Shôchiku e comprometer para sempre a sua carreira. Foi exactamente isso que aconteceu.

Esta mesma atmosfera fatalista também habita no assombro de certas sequências: a caminho do confinamento, de modo a se preparar para o ritual do suicídio, Iori, acompanhado pelo irmão, atravessa uma ponte e um bloco de madeira cobre a sua cabeça, como se a decapitasse. Noutro momento vaticinador da desgraça, quando Kô implora ao marido Nobuyuki que deixe Iori conhecer o êxtase sensual com ela antes deste morrer, a espada que o samurai vai polindo à medida que se aproxima o plano-sequência (que dura quase cinco minutos, sem cortes) sobrepõe-se ao pescoço da mulher e mais tarde move-se para a extremidade do enquadramento. A linha do sabre augura o movimento futuro que aniquilará os familiares tornados amantes.
Aquando dessa união erótica, consentida pela figura paternal do irmão, não podemos deixar de sentir uma aura sinistra: é a estética da crueldade a ranger os dentes face ao prazer humano, marcando os seus próximos alvos. Aí, a água na qual o rapaz se banha serve de símbolo de passagem para o outro mundo – também os japoneses têm o seu Rio Estige, o Rio Sanzu, percurso obrigatório para as almas que saem desta dimensão terrena – e mesmo a cor branca, de luto no Japão como se sabe, do kimono de Kô e do fundoshi de Iori não deve ser por nós ignorada. A pulsão de vida que ambos sentem quando, por breves momentos, se podem libertar de todos os constrangimentos esconde uma catástrofe inesquivável, as suas próprias quedas. Deitados eles dormem juntos, deitados juntos darão o último suspiro.
Aliás, o que podemos nós escrever sobre a figura trágica de Kô, a cunhada de Iori que decide, por via da compaixão, iniciá-lo, pela primeira e última vez nas artes carnais, infringindo o tabu dos tabus e destruindo, por via do exacerbamento – mas tal é a metodologia da crueldade – o seu papel de mãe substituta? Ela é uma sinédoque, toda ela é o seu olhar. Olhos que choram, que anseiam, que se entregam. Olhos apreensivos, maternais, que se fecham no momento da morte, repudiando o triste fado a que foram sujeitos. São também eles que ofuscam e devém o sol que cega o jovem Iori momentos antes do seu seppuku falhado mas que mantém toda a gravitas até a comédia de enganos se instalar – e não foi um filósofo francês que a esse respeito escreveu, “Le soleil ni la mort ne peuvent se regarder fixement?” A propósito dessa sequência hipnótica e estonteante apenas o temor e o tremor a podem descrever. Não é digno de um crítico abster-se de palavras, mas recorro aqui ao silêncio para convocar a vossa experiência de um momento que seguramente não vão esquecer se tiverem a coragem de ir ao cinema. Assim sendo: em frente, marche!
Como é apanágio da concepção aristotélica da tragédia, ela deve suscitar o terror e a piedade. Mencionei já o terror (e, acreditem, podia mencioná-lo mais vezes), mas encontro agora também a clemência ao considerar o destino, não menos horrível, de Nobuyuki. Ele que é a figura de autoridade malograda, o irmão que não conseguiu ser pai nem marido, apesar de ser o derradeiro carniceiro, o servo mais leal do seu clã. Talvez sobreviver seja o maior castigo, afinal. Naqueles planos em que o encontramos sozinho, diante dos destroços da sua própria família, um conjunto de contra-picados e ângulos holandeses do castelo do seu soberano assaltam o fluxo das imagens, estancando-o só num portão fechado, sem acesso para o interior. Não nos parece que Morikawa nos esteja somente a relembrar, de forma mais ou menos ornamental e por via de uma referência arquitectónica, da época em que esta narrativa cruel se situa. Antes, proponho encarar esta sequencialidade transviada e misteriosa enquanto metáfora do demónio interior que crepita em todo o homem ordeiro que age em conformidade absoluta com os valores do seu tempo. Para isto, a estética da crueldade tinha também o seu antídoto: a negação de qualquer contemporaneidade era a maior e mais sublime forma de individualismo. Resistir não é prescrever, é questionar sob a forma de uma auto-negação.