Filmes de fantasmas nem sempre padeceram de histeria, volúpia incendiária da arte agonística, do susto e do surto sistemáticos, do pleito horrífico do abismo; com Jacques Tourneur (diretor) e Val Lewton (produtor) na RKO dos anos 40, eles foram cerzidos por espreitas de sombras nas paredes de pé direito suntuoso, por um trabalho silente e eminente do fora de quadro e do fora de campo, por gritos evanescentes e passos felpudos no cenário aterrador: uma certa repugnância anti-idólatra à plenipotência das imagens plúmbeas de terror reivindica para o cadre e a montagem do cinema clássicos a via crucis judaica, comum à origem de tantos produtores de Hollywood, de solicitar paradoxalmente para o cinema, arte da presença intransitiva do mundo e dos entes que o habitam, um contato agora laico com o invisível, com o inaudível, com o desaparecimento da imagem, com tudo aquilo que, empreinte de fantôme, escapa às garras convulsas da captura pela câmera e prefere ceder espaço às seduções espectrais de tudo o que resiste a aparecer, ou pelo menos a aparecer por intervenção, em geral funesta, da mão humana. “Todos os corpos deixam suas marcas” – esta fantasmagoria residual energética que se incrusta na percepção compassiva de um paramédico em Bringing Out the Dead (Por Um Fio, 1999), talvez um dos filmes mais originais de Martin Scorsese, é o index de que o filme, um tanto como os de Lewtron e Tourneur – mas agora numa pegada de adrenalina no découpage/montagem e travellings epifrênicos motores, muito própria de Scorsese – acredita em fantasmas sob a condição de que estes sejam vistos como os rastros fenomênicos de uma energia negra, ligada e sintomatológica, que envolve e intumesce os subúrbios da Cidade degradada (cortesia do roteiro de Schrader, que nos 70 nos deu Taxi Driver (1976) e continua um impenitente pessimista, social e clínico).
Ninguém que viu The Ambulance (A ambulância, 1990) de Larry Cohen sai imune do cinema, e me parece que a Cidade bad trip de Bringing Out the Dead deve muito ao autor de God Told Me To (Foi Deus Quem Mandou, 1976), mas a sinergia de curto-circuito somático (sim, a Cidade é este grande corpo doente, que a câmera-bisturi não cessa de lancetar, e o prodígio consiste em, apesar da noite, de todo o sangue, vísceras e equimoses tudo ainda nos é dado a ver com uma clareza de címbalo ao sol) entre os elementos fílmicos é obra total de Scorsese, que parece ter se associado a Cohen para cavar uma plataforma mais funda e mais suja no palimpsesto da Cidade hebefrênica e atingir o underground do ground intumescido de linfa. A montagem continua o forte de seu cinema, mas esta sabe tornar-se lenta, gradual e venal para contemplar, num travelling extático, os fantasmas que insistem em passar pelo caminho de Frank Pierce, que aliás só bebe uísque e toma café, intensificando, num grau de vertigem psicotrópica, as sínteses químicas entre um estimulante e um imuno-depressivo.
Bringing Out the Dead é o produto, candente e incandescente, desta fórmula por excelência entrópica mas que também pode servir à ativação de uma percepção vidente, extra-corpórea, totalmente outra; classicismo sempre foi uma questão de crença (no mundo que nos aparecia, como em seus consuetudinários valores e entes que os encarnavam: o Pai, a Casa, a pradaria do western), e como em um filme de Tourneur ou Daves cheirado e semi-banhado em amônia, Frank, Schrader e Scorsese certamente acreditam naquilo que a percepção alterada e alterizada de Frank nos entrega, o que dá, por sua vez, à percepção do espectador uma estabilidade masoquista no martírio que é típica igualmente das via crucis de outsiders do cinema de Scorsese ou de Ferrara, católicos da parte maldita do cristanismo, arte da carne e seus revezes para suscitar o Espírito. O que quero dizer é que, embora recicle certas estripulias retóricas de montagem de dispositivos pós-modernos (às vezes o filme se assemelha a um clip, mas sem jamais abdicar da causalidade teleológica e raccords diretivos de um filme dos anos 60), Bringing Out the Dead nunca se deixa levar pelo cinismo, pelo ceticismo ou pelo niilismo astênicos e picaretas de um espécime pós-moderna; é um filme cem por cento encarnado, ferozmente crente no que vê (embora o veja com hipermetropia – ou seja: alterado pelo café, uísque e eventuais comprimidos de barato, uma vez que se coloca como o stream of consciousness do percurso acidentado de Frank pela cidade Gólgota, como a sequência do barato do protagonista nos revela: câmera subjetiva, como découpage e montagem). Embora esta carne, transparente e inchada nas extremidades, sofra como em toda carne que é a via de passagem de uma experiência extrema (e a crucificação do Salvador dos pecados do mundo é a Cena originária arquetípica dos filmes de Scorsese, sem porém a garantia da redenção; antes pelo contrário: exclusão, com consequências terrificantes, do terceiro dia), esta permanece o índex clínico de todas as atrocidades por que deve passar uma experiência que se queira viva, pática, mortal.
Bringing Out the Dead é a mais consequente descida ao Purgatório do bas-fonds interior e da Cidade decadente no cinema de Scorsese, limiar talvez de um despertar de que o túmulo de Cristo foi a profundeza mais alvissareira.
Em francês há um verbo que assinala a via crucis do sujeito-objetificado, com o crudere da carne imolada dos primórdios sacrificais, o on subit – on subit designa a passividade in extremis daquele que, permanecendo sujeito de sua experiência, simultaneamente se torna o objeto passivo de suas agruras; ou antes, e mais precisamente, pelo contrário: é por ser um objeto total e pleno do sofrimento que o mundo e o Outro lhe inflige que o sujeito se apodera da própria experiência, e pode na coincidência final de sua própria desaparição enfim dizer Ego sum: “Salvar a vida de alguém é como se apaixonar; a melhor droga é o amor (…) Por que negar por um único momento que Deus era você?”. É crística esta experiência de auto-imolação, auto-revelação por fim em nome dos Outros, pelo menos como o Ocidente a concebeu: a identificação, expressa na fala atordoada de Frank, de Patricia Arquette (Mary Burke) como a Nossa Senhora dos desesperançados e aquele plano ultra-horizontal com a extremidade da sala de recepção do hospital ocupada por uma estátua da Virgem Maria não nos deixam esquecer, sem contar a ressurreição do “overdosado” por heroína, em chave tragicômica de chanchada evangélica é certo mas ressuscitado mesmo assim.
Este é um véu de Verônica, escritura primordial, onde se inscreve, com sangue e linfa e impossíveis cicatrizes, a vivência de Frank, que só pode ser o autor de seu próprio stream depois de ter absorvido todos os pecados trânsfugas deste mundo paralelo (à vida orgânica também, como à percepção e demais códigos do reconhecimento de si mesmo no mundo aí) da Cidade apodrecida: “O primeiro voto é pelo amor, o segundo pela misericórdia”; Scorsese não é moralista perverso (ainda com Schrader) como o motorista de Taxi Driver, porque chegou o segundo momento, mais maturado e compassivo, da misericórdia: em Bringing Out the Dead, os afetos reativos, reacionários que inspiravam a revanche suicida de Travis estão amortecidos e finalmente ultrapassados por uma generosidade quase dreyeriana, que nos abre as portas da vida apesar dos destroços (apesar e com) pelo caminho. O policial junky psicótico deu lugar ao enfermeiro neurótico, alcoólatra, mas cheio de boa vontade para com o próximo, com quem frequentemente se identifica: um medium complacente; uma secreta ataraxia habita o homem interior de Frank, como esta contemplação noturna em dó menor dos prédios crepusculares de Nova Iorque nos recita: o suspense habitava Taxi Driver porque tudo era filtrado pela misantropia doente de Travis, mas aqui tudo, apesar da movimentação excêntrica dos corpos alvejados pela Cidade desolada, é envolvido em momentos de auto-confissão por uma estranha serenidade que apazigua os percalços da consciência exangue, espaço aplainado e vazio como um versículo budista percorrido pela voz off recalcitrante: “Minha tarefa é menos salvar vidas que lhes prestar testemunho”.
Como as Marias do Calvário após o abandono dos discípulos espavoridos, cabe a Frank a narrativa destes desaparecidos por obra da droga, do desmazelo social, da tristeza de viver abandonado; além do ponto de vista de um paramédico, vasto e afetivamente ressoante, sobre a dor inumana de que somos objetos, se ainda estamos com um motorista é antes de tudo na medida em que os fantasmas e suas circunstâncias melopatéticas de experiência são a imagem e semelhança mais contundentes possíveis (vistos pela janela do carro em movimento) de uma projeção de cinema, ou em termos ainda românticos, de uma vivência do Sublime, daquilo que ultrapassa, arregimentando seus momentos pregnantes, toda experiência e se perde no infinito da vidência: “that’s beautiful”, grita, arquejante, o traficante dependurado por um palito de ferro, contemplando a Noite imemorial contra a qual espoucam as faíscas; na arte em geral mas em particular esta tardia e medusina do cinema, somos o objeto pático extremo de toda a experiência representada na tela onívora das ruas íngremes, que como na aura benjaminiana volta finalmente os olhos para nós (contracampo como prova indexal desta dolorosa identificação, perigosa para qualquer narcisismo); o cinema, arte da identificação catársica à enésima dose, nos permitiu a plenipotência totalitária não apenas da Guerra, do sofrimento, das atrocidades da História, mas também do amor.
Scorsese não precisa, como Cassavetes, escrever uma bem-aventurada carta de amor aos seus contemporâneos como o Cassavetes de Love Streams (Amantes, 1984) (it’s continuous…), pois Frank abrevia por atalhos sensoriais o percurso da Gólgota afetiva: ele toma o comprimido que o traficante, também ele um brinquedinho compassivo de solidariedade, lhe oferece, comprimido que sua Mary Burke também ingeriu. Solidário no câncer e no sono induzido, ele revê as ruas de topografia eclipsada pelo barato como uma paisagem longamente rodada em pesadelos pós-abstinência; é o morceau de bravoure mais pregnante do filme, aquele que se serve das elipses em alta voltagem do clip para simular um estado psicótico temporário.
Após ou depois de horas, Bringing Out the Dead é a mais consequente descida ao Purgatório do bas-fonds interior e da Cidade decadente no cinema de Scorsese, limiar talvez de um despertar de que o túmulo de Cristo foi a profundeza mais alvissareira. A profundeza desta cena também permite a Frank a libertação da imanência de seus fantasmas, porque oferece ao filme uma anamnesis para reencontrar Rose, a garota que ele deixou morrer porque o respirador atingia o estômago e não o pulmão. Não é sempre lembrando, no divã do analista ou na confissão ao padre, que nos redimimos dos pecados de insones? Scorsese, que assombrou tantos católicos com sua Paixão anamorfoseada de heresia alegorista em 1988, em Bringing Out the Dead parece ter utilizado de maneira mais funcional a lição crística, como a psicanalítica, e sacado que um filme é uma máquina teratológica de Desejo a 24 quadros por segundo; na amarelinha do pulo seguinte, pode estar a nossa salvação.