E se a paleta de cores de Vittorio Storaro fosse convertida numa paleta de odores? São Fanny (Lou de Laâge) e Camille (Valérie Lemercier) quem, a dado momento do filme, nos conduz aos Salons do Palais Royal, descendo calmamente a escada de caracol no décor violeta, testando em pequenas touches as criações olfactivas de Serge Lutens. Foi em 2000 que Serge Lutens, com o apoio financeiro da Shiseido, abriu este espaço, assumindo o compromisso de lançar todos os anos novas criações, cabendo ao nez Christopher Sheldrake a tarefa de transpor as ideias de Lutens para perfume. A promessa foi cumprida e hoje a lista vai já bastante longa, entre sucessos maiores e sucessos mitigados. O que é que isto tem a ver com cinema? Talvez a cena filmada na loja do “tio Serge” (como os perfumófilos deste mundo gostam de apelidar Monsieur Lutens) não passe de um patrocínio que combina bem com as peças Hermès, Roger Vivier ou Chanel que Fanny exibe, mas talvez seja também possível ler o último filme de Woody Allen com o nariz, pensando em algumas das criações que Fanny terá sentido naqueles frascos ou que poderão habitar o seu toucador.

Rahät Loukoum
Comecemos por Rahät Loukoum, o perfume feito de doçura, que evoca o turkish delight. Um doce que leva a pensar em infantilidade, em brincadeiras de criança como o comboio que Jean (Melvil Poupaud) conserva numa das salas do seu impressionante apartamento parisiense. Os comboios são de brincar, mas a complexa estrutura de carris, passagens e casas faz pensar noutras maquinações mais adultas. Os comboios de brincar já foram elemento cinéfilo em filmes de outros tempos, por exemplo nas mãos de Cary Grant em People Will Talk (Falam as Más-Línguas, 1951) de Joseph L. Mankiewicz, mas parecem estar especialmente em voga em filmes mais recentes, tais como The Fabelmans (Os Fabelmans, 2022) ou A Good Person (Uma Boa Pessoa, 2023), em que constituem um elemento determinante da narrativa, uma forma de controlo (ou poder) para o “chefe da estação”, seja ele o controlo da cena filmada, seja ele o controlo dos erros do passado.
Esta veia infantil de Jean faz-se notar de forma muito óbvia na maneira como trata Fanny, ela que é claramente apontada por todos os amigos do casal como mulher-troféu. Mas ela não corresponde à imagem típica de mulher-troféu, sendo mais correcto apelidá-la de mulher-brinquedo ou mulher-criança, a quem Jean estraga com mimos caros. Une femme gâtée. Fanny faz os seus amuos de cada vez que é arrastada para mais um fim-de-semana campestre acompanhado dos amigos mais velhos e aborrecidos de Jean, mas os amuos não logram qualquer resultado, como frequentemente sucede com os amuos das crianças.

Fleurs d’oranger
O perfume da flor da laranjeira, o mais radioso, entre inocência e encantamento. Serge Lutens apelida-o de cheiro da felicidade, associando-o a memórias de Marrocos em 1968 e à visão das mulheres que batiam nas laranjeiras-amargas para apanhar as flores que caíam em lençóis brancos. É o perfume de um novo amor, desse momento de deslumbramento e inocência. Fanny reencontra Alain, um antigo colega de escola dos tempos em que viviam em Nova Iorque, alguém de quem ela guarda apenas uma vaga memória. Mas Alain nunca esqueceu Fanny, tudo indicando que ela terá sido o seu primeiro grande amor. Alain é o grande romântico de Coup de Chance (Golpe de Sorte, 2023), no seu ar um pouco desajeitado, nas escapadelas de almoço para um sandwich rápido num banco do Jardin des Plantes, nas águas-furtadas que habita, cenário feito à medida de um escritor em Paris à procura de inspiração. Passear por Paris no Outono, enquanto se come castanhas assadas (aparentemente mais baratas do que em Lisboa) e se cita Prévert – haverá passeio mais romântico?
Woody Allen, no seu estilo muito próprio, trata estas questões de dinheiro, de classe e de poder como trivialidades, mas engana-se quem se fie nessa aparência.
Alain tem também o seu lado pueril, ele deixa-se inundar totalmente pelo amor a Fanny e contagia-a nesse entusiasmo. É um amor que vai acontecendo numa Paris mais sublimada do que idealizada, feita de tons envolventes, numa paleta de dourados. É também o amor de Woody Allen a esta cidade, talvez um amor que possa ser mais bem compreensível no realizador do que nas suas próprias personagens, porque nos interrogamos se um parisiense será capaz de uma visão tão idílica da sua própria cidade. Ou talvez seja apenas a disposição infantil de Alain a confundir-se com a sua disposição romanesca. Sendo certo que a Paris de Woody não se confunde com outras Paris de Woody, sentindo-se uma nova vida na banda sonora de Coup de chance, nos temas jazz da década de 60 (em particular, Cantaloupe Island de Herbie Hancock), afastando-se das décadas musicais mais representadas na filmografia de Allen, numa homenagem confessa à Paris filmada nos anos 50 e 60, em particular a de Ascenseur pour l’échafaud (Fim-de-Semana no Ascensor, 1958), com a famosa banda sonora de Miles Davis.

Iris Silver Mist
Um aroma gélido e poudré, em tons de malva (os odores que se reconvertem em cores), inesperadamente envolvente. Esta é a descrição de Iris Silver Mist, mas podia ser a descrição do apartamento do casal Fanny e Jean. É verdade que Fanny parece desadequada àquele apartamento e mais desadequada ainda parecerá a sua mãe, no seu estilo country chic um pouco desleixado. É um desajustamento que se joga no inverso de Blue Jasmine (2013), em que as roupas e adereços (e, já agora, o porte) de Cate Blanchett entravam em colisão com a decoração do apartamento da irmã, tornando a sua existência sufocante, a pedir desesperadamente mais um Stoli Martini. Na sua vida privilegiada e despreocupada, Fanny está mais próxima da Alice de Mia Farrow, no filme de 1990, ambas lidando com a insatisfação da mulher que tem tudo, procurando apimentar uma existência demasiado segura pela recuperação de amores boémios passados.
Woody Allen, no seu estilo muito próprio, trata estas questões de dinheiro, de classe e de poder como trivialidades, mas engana-se quem se fie nessa aparência. Fanny revela, de forma quase imperceptível, uma mudança (ou revelação) de carácter, quando rapidamente desiste da aventura amorosa com Alain, para cair novamente nos braços de Jean, abraçando mesmo a ideia de terem um filho. Tudo isso se passa no espaço de duas ou três cenas, com Fanny a comportar-se como se Alain não tivesse sido mais do que um pequeno sobressalto no seu casamento. É a mãe, Camille, quem acaba por ser a consciência que ela não tem, inquietando-se quanto ao destino de Alain. Ele apaga-se repentinamente, como uma personagem de um livro a quem faltam páginas. Todas as especulações são permitidas quanto ao seu verdadeiro fim, considerando que as mortes que imaginamos mais violentas na filmografia de Woody Allen sempre aconteceram fora de cena.

Muscs Koublaï Khan
A síntese da atracção e da repulsa, do animal e do humano. Faz sentido que o desfecho de Coup de chance tenha lugar num terreno de caça, também pela definitividade que esse terreno de jogo oferece, a definitividade própria de um duelo. Porque as coisas simples nunca são assim tão simples, mesmo quando a aparência é outra. Senão vejamos: Jean está preso à resolução que encontrou para um problema que, provavelmente, teria sido resolvido sem a sua intervenção, tendo em conta que o comportamento de Fanny leva a crer que o romance com Alain mais não era, para ela, do que uma aventura passageira. É ela quem empreende todos os esforços para convencer a mãe do carácter íntegro de Jean (ainda que admitindo não saber ao certo o que faz ele na vida, apenas “tornar os ricos mais ricos”). Houve aqui uma inversão de papéis, pois era Camille quem inicialmente tentava “vender” Jean a Fanny. Aliás, esta é outra das perversidades bem camufladas do filme, este amor cortês entre Camille e Jean, com Jean a satisfazer todos os caprichos de Camille, a louvar o seu bom gosto, a partilhar as mesmas paixões, e Camille deliciada com todas as amabilidades do genro. Por isso, faz sentido que seja ela a desferir o golpe final, mesmo não pressionando o gatilho, porque é ela a pessoa verdadeiramente traída. Ambos de arma em punho, prontos para um duelo que não podiam adivinhar, num jogo de cara ou coroa, no terreno em que se joga a sorte, entre a justiça terrena e a justiça divina.
E já agora, Woody Allen é inocente.
★★★☆☆