O filme mais pessoal e autobiográfico Moretti em muito tempo, em que a personagem principal volta a confundir-se com o próprio Moretti, o regresso a uma zona de conforto e um estilo que trabalhou durante várias obras, é também o seu melhor filme em muitos anos, não só por ir buscar os elementos que lhe valeram a fama como um dos autores italianos mais relevantes das últimas décadas, não só por ser uma espécie de súmula (despedida?) do seu cinema ao longo do tempo, mas principalmente por colocar-se ele próprio (na figura do realizador) em causa, e também o futuro do cinema (interligados, claro), arriscando percorrer novos caminhos. Depois de uma alteração de rumo a partir de 2001, longe do humoroso e confessional predominante até aí, para um tom mais sério e dramático, como em filmes como La stanza del figlio (O Quarto do Filho, 2001), Il caimano (O Caimão, 2006) e Mia madre (Minha Mãe, 2015), aqui Moretti junta os dois elementos da sua filmografia, o político-biográfico e o drama-sentimentalista, da única forma que um realizador como Moretti, cercado pelo cinema, imagina: com um filme dentro de um filme.

Il sol dell’avvenire (O Sol do Futuro, 2023) começa em 1956, acompanhando Ennio, o director de L’Unitá, jornal do Partido Comunista Italiano (PCI), no momento em que o seu bairro recebe uma delegação dos camaradas de um circo da Hungria, precisamente na altura em que eclode em Budapeste uma revolta dos trabalhadores e estudantes contra o regime estalinista húngaro, colocando em causa a fidelidade do PCI em relação ao regime soviético e um dilema moral para estes dirigentes: colocar-se do lado dos revolucionários ou do lado da linha oficial Partido. Ou melhor, o filme acompanha a rodagem nos dias de hoje desse filme de época, projecto de longa data de Giovanni, alter ego de Nanni Moretti, que interpreta um realizador numa encruzilhada artística-pessoal: as pessoas à sua volta questionam as suas opções, os actores querem levar o filme numa direcção diferente, o financiamento do filme ameaça desaparecer, a sua filha não tem tempo para ver filmes com ele, e a sua produtora, a sua mulher, divide o tempo com a produção de outro filme (e um terapeuta, mas isso Giovanni não suspeita).
Esta aproximação a uma linguagem “meta” sobre o cinema, e admissão da dimensão de construção artificial do que estamos a ver (por oposição a uma tentativa de ultra-realismo), parece quase obrigatória em muitos filmes recentes, como se num mundo de hiper-imagens em todo o lado e narrativas ultra-segmentadas em pequenos blocos de imagens (vídeos no telemovel, séries de streaming, zapping de canais, filmes divididos em capítulos), é importante começar por quebrar a quarta parede em relação ao espectador e reconhecer a sua existência (e até importância para o filme, numa espécie de paradoxo da observação alterar o que é visto), para realmente chegar a algum diálogo (ou a algo íntimo) com o espectador. São vários os exemplos recentes, desde Spielberg em The Fabelmans (Os Fabelmans, 2022), a Wes Anderson em Asteroid City (2023), Nope (2022) de Jordan Peele, Babylon (2022) de Damien Chazelle ou até, de certa forma, Aftersun (2022), de Charlotte Wells. O que é curioso, no entanto, é que nada disto é novo, em particular para Nanni Moretti, que já nos seus filmes da década de 1980 e 1990 colocava as personagens a interpelar directamente a câmara, a colocar em causa o filme ou a referenciar outros filmes. Aliás, precisamente em Aprile (Abril, 1998), Moretti mostra uma sequência em que se filma a não conseguir filmar uma sequência de um musical dentro desse filme, primeiro revelando a sua vontade em explorar esse género e, depois, admitindo a sua incapacidade para o fazer (curiosamente, o protagonista desse falso musical é o actor Silvio Orlando, que é também o actor principal do filme dentro do filme de Il sol dell’avvenire) – interessa então tentar perceber porquê este regresso de Moretti a este “metamodernismo” e o que nesta história o justifica.
Em primeiro lugar, esta abordagem auto-referencial parece estar ligada a um lugar de dúvidas criativas, numa espécie de indecisão do rumo a tomar, de relutância em aceitar a realidade do mundo à sua volta e de questionar o papel do próprio cinema nesse mundo (e de um cinema político), que é evidenciada pelas referências a outros filmes e a outras obras do próprio Moretti. A certo ponto, Moretti e o produtor do filme (o actor e realizador Mathieu Amalric), passeiam de trotinete por Roma, evocando directamente Caro diario (Querido Diário, 1993), mas como se estivesse a comentar sobre o poder efémero das imagens, com uma nostalgia amarga (como se a repetição da imagem de Moretti a andar de vespa por Roma já tivesse perdido o valor icónico). Noutras sequências, Moretti refere-se a outros filmes que gostaria de fazer, como a história de um nadador [evocando Palombella rossa (1989)], ou um musical repleto de canções pop italianas, que acaba por se intrometer neste filme em algumas sequências musicais, como se Moretti quisesse aproveitar Il sol dell’avvenire para explorar as ideias que tinham ficado de fora do seu cinema, através de uma urgência resignada e torrente de criatividade.
Aqui o cinema afirma o poder da ficção para re-escrever a história e imaginar uma fantasia-alternativa, mais optimista em relação à realidade.
O próprio filme dentro do filme atravessa estas conturbações interiores, em particular com a aproximação da filmagem das cenas finais, que confinam o filme histórico a um rumo desolador. Porém, onde Giovanni/Moretti é mais incisivo, e por isso mais mordaz e humoroso, é quando visita a rodagem do filme que a mulher está a produzir, de um jovem realizador italiano, uma variação a partir dos filmes americanos violentos de crime e vingança. Moretti desconfia desde logo desse filme, e numa sequência memorável (um dos momentos altos da filmografia de Moretti, diria), sequestra a produção desse filme, impedindo a filmagem de uma sequência em que uma das personagens é executada, recorrendo a críticos de arte, historiadores e a um arquitecto para falar sobre a geometria da violência, tentando apelar ao bom senso (estético) do jovem realizador. É Moretti a anunciar-se contra o facilitismo e a falta de imaginação, a agir como um activista da estética e ética para resgatar o cinema – algo que não é novo em Moretti mas cuja insistência aqui é notável. É uma ideia que é ainda mais reforçada quando este se reúne com produtores da Netflix, num momento que tem tanto de cómico como de exasperação perante esta nova realidade.
É perto do final, com o aproximar da decisão em relação ao seu filme dentro do filme, mas particularmente com um abalo na vida pessoal do protagonista, que o filme parece crescer, quer a nível emocional, quer a nível de complexidade, justificando as dúvidas e as auto-referências anteriores. O realizador recorda dois momentos do seu início de relação com a mulher: o primeiro, claro, um encontro no cinema (em que em vez de beijar o seu par, fala sobre a alienação burguesa dos filmes de Fellini); um segundo, em que numa discussão na rua a rapariga repete as deixas ditadas por Moretti. São estes vislumbres-recordações que parecem despertar o sentido do filme: tal como temos visto recentemente com Tarantino [Once Upon a Time in… Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019)] e Ryûsuke Hamaguchi [Gûzen to sôzô (Roda da Fortuna e da Fantasia, 2021], aqui o cinema afirma o poder da ficção para re-escrever a história e imaginar uma fantasia-alternativa, mais optimista em relação à realidade. Se nos filmes anteriores de Moretti, o cinema funcionava principalmente como mecanismo para dar lugar às suas tiradas neuróticas ou humorosas, aqui parece descobrir uma nova função: de através da recordação, e da imaginação de uma outra possibilidade, permitir a Moretti encontrar uma forma de optimismo amargo (porque vem de uma ideia de necessidade de ilusão), possível e necessário, num gesto que tem tanto de vulnerável como de comovente.
★★★★☆