Nas primeiras páginas de Cinema Speculation, Quentin Tarantino confessa que uma das primeiras memórias que tem de ir ao cinema com os pais, tinha então sete anos, foi uma sessão dupla, da qual fazia parte Joe (1970) de John G. Avildsen [o outro filme era Where’s Poppa? (1970) de Carl Reiner]. Entre várias coisas que o espantaram, little Q. escreve sobre a longa cena inicial entre um jovem casal de hippies e o facto da sordidez do apartamento em que viviam o ter impressionado. Há aí um momento particularmente impressivo: quando depois de se injectarem, Melissa (o primeiro papel de Susan Sarandon) pergunta ao namorado se quer fazer amor e depois ajeita uma espécie de colchão imundo junto a uma imunda parede e ambos se deitam, descalços, com as solas dos pés pretas da sujidade.
Os pais de Tarantino ficaram aliviados ao terem-se apercebido que o filho havia adormecido a meio da sessão e, portanto, tinha perdido o chocante final. O pai da personagem de Sarandon, Bill Compton (Dennis Patrick) — que havia começado o filme matando acidentalmente o namorado da filha (após esta ter dado entrada no hospital com overdose) — matava nos instantes finais a própria filha, também sem querer, num par de freeze frames muito à la mode nos anos 70. O final é abrupto, diz-se, condicionando todo o argumento nomeado a Óscar do talentoso Norman Wexler [Serpico (1973); Mandingo (1975), Saturday Night Fever (1977)]. Ao que parece, Avildsen teria mesmo filmado uns instantes finais de “olhar arrependido” da personagem que dá nome ao filme, Joe (Peter Boyle) e que acompanha Bill nessa sequência de morte e violência. Terá decido tirar esse regard moralista e ainda bem.
Entretanto, Tarantino quis saber junto dos pais, mal acordou, o que tinha acontecido. E certificar-se que o pai tinha ficado triste ao matar a filha: “-Was he sad? / – Yes, Quentin, he was very sad”. Essa certeza, especulo, vinha de outro facto marcante para o jovem Tarantino. Apesar de Joe ser um filme violento e dramático, ele não deixa de procurar a sátira na oposição entre o mundo dos ricos, trabalhadores de colarinho branco (o casal endinheirado que tem como “maldição” uma filha hippie drogada) e o mundo dos pobres, do qual o reacionário Joe, trabalhador numa fundição, faz parte. Se a separá-los está a condição social, a uni-los está uma certa ideia de decadentismo cultural expresso numa violenta rejeição da geração mais jovem (“They even fucked up the goddam music!”, diz Joe numa das mais famosas cenas no bar em que os dois homens se encontram).
Ainda segundo Tarantino, Avildsen ao combinar a performance cómica de Peter Boyle com o seu discurso de ódio racista e violento, havia produzido um “cocktail misturado com mijo que era perturbadoramente saboroso”.
Ainda segundo Tarantino, Avildsen ao combinar a performance cómica de Peter Boyle com o seu discurso de ódio racista e violento, havia produzido um “cocktail misturado com mijo que era perturbadoramente saboroso”. Nessa cena do bar, Joe não pára de insultar e discriminar vários grupos de pessoas (como por exemplo a forma como os negros vêm roubar os benefícios sociais dos brancos) mas, ainda assim, a sua postura caricatural iria arrancar gargalhadas do público. Haverá outros detalhes satíricos: Joe a apresentar a sua colecção de armas ao mais recente amigo, ou o jantar de comida chinesa que encomendam para o receber a ele e à mulher. Ou quando o duo conservador entra no “covil do inimigo” e experimenta drogas e o sexo livre (com records de rapidez e entorpecimento). Nisso, o texto de Wexler é exímio pois comprime pelo menos três grandes nós narrativos: a já referida oposição entre classes sociais, mas também o drama de um homem que matou outro e pode a qualquer momento ser denunciado além de não ter instrumentos emocionais para lidar com a situação da filha; e, finalmente, esse choque old/new America que já tínhamos por exemplo em Easy Rider (1969) (não só entre hippies e rednecks, mas entre aqueles e o jovem advogado, personagem de Jack Nicholson).
Resta saber o que fazer com aquelas gargalhadas, de alguma forma fora do sítio ou paredes-meias com assuntos sérios, que haviam perturbado o jovem Tarantino? A dada altura os produtores de Joe afastaram Avildsen pois este apresentara uma versão de duas horas e meia que começava com a vida de Melissa com os pais. Trouxeram então William Sachs que veio encurtar o filme e, segundo o próprio, centrar o mesmo na personagem de Joe. Talvez esse encurtamento e foco num personagem-centro tenha vindo com esse custo de “desinsuflar” o drama e expandir o prosaico.
Creio que não estamos no mesmo patamar de Bonnie & Clyde (Bonnie e Clyde, 1967) de Arthur Penn e a célebre expressão de Pauline Kael (numa famosa crítica que terá certamente influenciado Tarantino) pela qual a “violência é o seu sentido”. O charme da “nova” violência do Novo Cinema Americano perpassa por Joe, mas é a dimensão afável de Peter Boyle que amenizou e levou com ele (até certo ponto) o público da época na direcção de um certo vigilantismo triunfalista. Oum por outras palavras, a dimensão estilística do seu final (como uma bomba que vai acumulando pressão até rebentar) conseguiu menos a tragédia e mais um clímax característico de um bom filme de acção.
Visto com os olhos de hoje creio que esse dilema ético pereceu. Talvez virtude de uma certa distância, conseguimos separar a caricatura (que hoje parece bastante repulsiva) desse dilema dramático das personagens. E, curiosamente, esse saltitar entre os filmes de acção conservadores e republicanos dos anos 70/80 e o drama sexual e intimista desse mesmo período faz bem a Joe. Se a isso juntarmos uma certa dimensão experimental [as cores da cena da orgia, a explosão da fúria do “bom pai de família” (still acima)] podemos defender, é o meu caso, esta obra de Avildsen com um dos bons filmes do cinema norte-americanos deste período.