And the scent of mock orange
drifts through the window.
Louise Glück
Catherine Breillat é uma feminista. Assim me foi apresentado Romance (1999), o primeiro filme que vi da cineasta francesa, parente de um pós-modernismo que confronta radicalmente o Eu e aborda o male gaze sem o condenar num brinde à arte da verdade sexual na sua mais exacta esterilidade. Um filme recordado em parte pelo registo atonal e por não ter espaço para sexo simulado, Romance reconstrói o retrato convencional da feminilidade e recorre a, pelo menos, uma vedeta do cinema pornográfico para agitar e incitar os espectadores à libertação das suas reacções socialmente programadas. Viria mais tarde a ler ensaios que salientavam a importância da realidade destas imagens, as mesmas que, de tão auto-conscientes, tinham provocado os calafrios e a náusea de que me lembrava. No cinema de Breillat, as mulheres também eram distantes e capazes de protagonizar actos bárbaros; condutoras de abjecção e poder.

Para quem terá em L’été dernier (No Verão Passado, 2023) a primeira experiência com a realizadora francesa – tendo em conta o seu lado tão comercialmente condizente, no sentido mais clássico destas palavras, espera-se que a mais espectadores chegará – há que contextualizar, antes de mais, a sua singularidade. Catherine Breillat é uma provocateur. Antes de começar a fazer filmes e a perscrutar o caminho do que roça o insuportável, Breillat publicou um romance erótico com apenas 17 anos que foi banido pelo governo francês para todos aqueles abaixo da idade adulta, teve um papel secundário no abusivo Last Tango in Paris (O Último Tango em Paris, 1972) de Bernardo Bertolucci, e a sua primeira longa-metragem, onde a intimidade recai sobre o sexualmente explícito, foi censurada devido à nudez gráfica. Durante anos, o seu cinema ou era sussurrado ou usado como provocação, especialmente por professores de cinema numa altura em que nós procurávamos as imagens que invadem e alastram. Cópias dos seus filmes tinham que ser passadas de mãos em mãos em discos riscados, porque claro, se havia subversão havia controvérsia, e o cinema permanecia marginalizado, perseguido pela censura e sem direito à distribuição, independentemente do eco internacional.
Não diria à partida que o filme era assinado por Breillat. Embora a cineasta nunca não surpreenda, existe um padrão de familiaridade. E aqui a representação sexual parece ser exactamente isso. Representação. Nunca tinha havido limites antes.
Agora, uma década desde o seu último filme, Catherine Breillat regressa com a proposta de um suposto remake de Dronningen (Rainha de Copas, 2019) de May el-Toukhy, um lustroso odisseico filme Dinamarquês que por cá passou durante a pandemia e que muitos de nós vimos em ecrãs de televisões. E desta vez, a controvérsia é outra. Como em quase tudo, mas especialmente quando se fala da resistência francesa em relação às políticas de género anglo-americanas, temos que nos voltar para o desaguar da história. Tragédia assombra Dronningen. Claro que Breillat não está interessada em castigar a sua personagem feminina. Longe disso. Refaz o filme – certos planos e diálogos são indistinguíveis -, retém apenas o mais essencial no que diz respeito ao desenrolar dos eventos, e depois trava o seu destino num esforço claro de deixar ciente que a escolha teria que passar pela irresolução, pelo fermentar intelectual que é deixar tudo por dizer, exactamente como quem apela que a natureza das coisas ilícitas e, neste caso ilegais, só as são porque alguém as definiu assim uma vez. Noutras palavras, Breillat não quer saber da sociedade, e os seus personagens, embrenhados numa burguesia convicta, podem-se dar ao luxo de fazer o mesmo. Podem viver a sua verdade, ou neste caso, a mentira, numa vida suburbana isolada e perfeita. Mas já me adiantei. Comecemos pelo início.


Depois de ter integrado a selecção oficial da Competição do Festival de Cannes esta Primavera, L’été dernier é, como o título bem nos avisa, uma memória do passado e uma que aprendemos que pode continuar no presente, enquanto que Dronningen acaba. Ambos retratos de incesto e infidelidade, têm no seu centro uma advogada bem-sucedida, liberal e versada nas políticas e práticas sexuais no que aos cidadãos menores diz respeito, casada com um médico, e mãe de duas filhas – no filme de Breillat, fruto de adopção – que inicia uma relação sexual com o rebelde enteado de 15 anos (Théo num filme, Gustav noutro) que começa a viver com eles. Não é nada que já não tenhamos visto uma e outra vez. Logo à primeira vista, L’été dernier é tocado por um sol sempre tão quente que incentiva ainda mais a frouxa premissa e rejeita qualquer envolvência. A performance do jovem Samuel Kircher (curiosamente filho de Irène Jacob e irmão de Paul Kircher, o encantador protagonista de Christophe Honoré em Le Lycéen (2022)) não ajuda, com o seu sorriso salivoso e pateta, que só faz sentido dentro do não-tempo e espaço estivais. Ainda assim, pouco há de misterioso ou sexual nele. Não há nada da brutalidade que esconde o seu lado mais vulnerável como tinha acontecido em Dronningen. E muito pouco parece reverberar para lá da sua idade jovem e da típica propensão para uma delinquência banal. A atracção com a madrasta também não tilinta, e é mesmo improvável que aqueles dois personagens fossem alguma vez agir sobre faíscas tão anémicas. Mas bem, talvez seja esse o propósito.
L’été dernier é um microcosmos que não contextualiza e se despe de toda a rigidez de Dronningen, dentro e fora da página (…) O filme transforma-se, aos nossos olhos, em arte barroca que recai sobre a luz ofegante do cinema, a mesma que esconde e embeleza. Mais importante que electricidade sexual – consigo ouvir Breillat dizer.
Quando pensados juntos, os verdadeiros trunfos de L’été dernier residem nos momentos em que se diferencia de Dronningen. E não precisamos de analisar ambos filmes para sabermos onde nos encontramos. Basta ver a primeira cena de cada um. L’été dernier rejeita uma introdução e zarpa logo o filme com um plano aproximado da sua actriz principal (Léa Drucker) e dos seus penetrantes olhos azuis enquanto esta fala com uma vítima de violação sexual e lhe pergunta pelo número de parceiros sexuais. Em Dronningen, a câmara desloca-se em movimentos circulares enquanto espera que protagonista e o cão que passeia no bosque entrem no enquadramento para então subir até casa com eles, apresentar as personagens, e cair no presente tenebroso pós-aquele verão, quando o marido de Anne (aqui Trine Dyrholm) lhe fala da chamada que recebeu da polícia de Estocolmo num amplo plano de conjunto. Para lá do óbvio, como o uso de um vocabulário de apenas planos aproximados em L’été dernier e de um inteiro leque de sugestões em Dronningen, está o facto de que Breillat se foca na dupla face de Anne enquanto protectora contra o abuso sexual que protagonizará mais tarde. Aquele primeiro olhar sugere transgressão. Do outro lado da equação, May el-Toukhy estava preocupada com a bigger picture: a mudança de status-quo da família dourada.
Dali em diante, Dronningen veste-se com o espectáculo do plateau e o movimento dos personagens dentro e fora dele. É um filme construído de forma rigorosa porque simétrico e enigmático, entregue não só aos seus actores, mas a todos os elementos que os rodeiam. Incluindo um argumento com três actos distintos e muito bem cimentados. Por sua vez, L’été dernier é um microcosmos que não contextualiza e se despe de toda a rigidez de Dronningen, dentro e fora da página, típico de um filme feito para actores, para a representação dos seus corpos. Como acontece com o resto da sua obra, Breillat não leva as suas personagens a justificarem-se (e ainda bem). Anne entrega-se à negação e prossegue com o caso mesmo depois de instalar a mentira de que não, nunca dormiu com o enteado. O filme transforma-se, aos nossos olhos, em arte barroca que recai sobre a luz ofegante do cinema, a mesma que esconde e embeleza. Mais importante que electricidade sexual – consigo ouvir Breillat dizer.
(…) tem ao dispôr uma sucessão de imagens tão intrusiva e claustrofóbica que não nos deixa subir ao topo delas para respirar.
Por isto mesmo, não diria à partida que o filme era assinado por Breillat. Embora a cineasta surpreenda sempre, existe um padrão de familiaridade. E aqui a representação sexual parece ser exactamente isso. Representação. Nunca tinha havido limites antes. É importante voltar a referir que o desejo entre Anne e Théo não é aparente em L’été dernier. O campo magnético e depois a prisão do desejo clandestino são tecido do glacial Dronningen. O contraste entre todo aquele betão e a relva tocada pela luz do verão escandinavo, já para não falar da ganga e seda azul, servem como prenúncio da perversão, do toque na flora da humanidade. A que é que se dará a sobriedade do outro lado do espelho? Se repararmos bem, a cineasta francesa filma os actores primeiro juntos e depois separados e depois juntos mais uma vez nas cenas mais íntimas. Chego à conclusão de que, se existem, os calafrios que este filme provoca deslocam-se para o campo cerebral onde a transferência da carga erótica acontece através do rosto.

Acaba por ser assim que L’été dernier derruba fronteiras. Pode não ser sempre convincente, mas algures entre o caso extraconjugal e a denúncia de abuso sexual (que se faz linha de história), há uma vontade em entender os impulsos mais sombrios, em vez de apenas agir sobre eles. Muito pouco nos é dito ao longo do caminho para que tentemos compreender ou empatizar com estas personagens, mas também nunca foi isso que se pediu. Ao fazer dos enquadramentos telas, a nudez do rosto de cada actor move-se mais facilmente em direcção a uma história que pode viajar até à verdade por si mesma. Deixa de ser necessário o elemento crocante dos pontos de viragem de Dronningen quando se tem ao dispor uma sucessão de imagens tão intrusiva e claustrofóbica que não nos deixa subir ao topo delas para respirar. Oblitera tudo, até a falta de possessão que temos sobre o filme. No final, quando deixamos Anne na companhia do (des)controlo da mentira e da dilatação do segredo que passa a levar com ela para o território do sono, resta a poderosa imagem dos rostos espraiados no ecrã ao longo do filme.
Catherine Breillat é uma cineasta.
★★☆☆☆