Porquê filmar? Eis a questão. Talvez não seja a maior, nem sequer a mais difícil, mas é certamente a primeira (e a última). Por que escolhemos filmar (se é que, sem o sabermos, não o escolheram por nós) como modo de vida? A pergunta vale para qualquer outra coisa: porquê escrever, pintar, correr, estudar…. Enfim, porquê escolher essa forma de nos articularmos no movimento das coisas e não outra qualquer?
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O prazer de filmar sozinho – a descoberta de um muito particular sentimento de solidão – fez-me esquecer rapidamente a razão pela qual, em tempos, filmar com outros (não falo de fazer filmes) era uma necessidade. Filmar era uma maneira de produzir comunidade, de instalar na realidade o nosso (e um novo) ritmo colectivo. Hoje é evidente que o que nos movia não eram tanto os filmes, mas mais uma maneira de estar, uma coreografia fluida de práticas, ideias e desejos, por mais idiotas que fossem. A realidade deixava de ser constituída de bloqueios e passava a ser vivida diariamente como um “recreio” ao nosso dispor. Tudo (o tempo útil e o inútil) fluía a nosso favor. Estarmos em filmagens ou não estarmos era uma mesma coisa. Tudo era belo, até os mais feios momentos do dia, sobretudo quando o imprevisto surgia como forma cinematográfica – “A beleza é a harmonia entre o acaso e o bem” (Simone Weil).
Os filmes, pelo contrário, “lixaram” tudo. Foi por causa dos filmes que se perdeu uma possibilidade de cinema que não passasse necessariamente pelos filmes, mas sim pelo motivo que já nos punha em movimento sem o sabermos.
Mas não há remorso ou ressentimento. O grupo acabou, porque tinha de acabar, gerando novas comunidades. E, se durou até onde durou, foi porque aquela vontade de filmar prolongou o élan vital que nos definia enquanto comunidade de filmeurs. A vontade de filmar uma coisa, depois outra, independentemente de não sabermos que lugar dar às imagens, ou da falta de experiência para saber onde as encaixar no “supermercado do visível”, no qual os filmes ocupam o centro enquanto valor dominante, era mais do que um paliativo para suportarmos a nossa existência individual. Filmar era criar uma situação laboratorial de provas de contacto nessa ciência chamada vida comum. E, filmando, comprovava-se que estávamos na posse de um singular segredo: podíamos viver (filmar) assim para sempre; tínhamos descoberto o ritmo certo para sobrevivermos juntos na “prisão”. Que bela ilusão, talvez a mais bela de todas: quando parece que o nosso método é auto-suficiente; quando, por breves momentos, as nossas convicções são a chave para a liberdade no interior dessa instituição total chamada vida.
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Desviei-me. Dizia: depois desses tempos, comecei a filmar sozinho. Aprendi que tudo desliza, que nenhuma convicção permanece. Aprendi que conhecer a razão pela qual filmamos é mais importante do que qualquer filme que se vá fazendo. Que um mau filme filmado por boas razões e que um filme não filmado por boas razões são mais importantes do que qualquer filme, bom ou mau, filmado por más razões. Mais tempo passou. Novamente, quase sem me aperceber disso, voltei a encontrar um grupo de cúmplices. A maturidade é outra, os motivos também. Juntos inventámos uma nova câmara (forma) de filmar. A experiência é quase oposta à do grupo anterior: aqui queríamos ser invisíveis e silenciosos, confundirmo-nos com o “pianismo dos ruídos” (Bresson) dos lugares por onde andamos a filmar. Somos como os colegas do Michel naquela sequência de Pickpocket (O Carteirista, 1959): as coisas de que andamos em busca só têm valor por causa da maneira de as apanharmos sem sermos vistos a fazê-lo. Ou melhor: só têm valor se formos vistos de uma certa maneira (nada menos do que uma maneira à altura do olhar que comanda essa cena e esse filme).
Filmar, apercebi-me, tornou-se numa estratégia para ter as pessoas que hoje me interessam à minha volta. Filmar é uma justificação para sobrevivermos (ou fugirmos?) juntos. Filmar deixou de ser uma pedagogia, uma utopia, e passou a ser um campo de treino concreto – o cinema como forma de cairmos no real.
Há dias, após o visionamento de um segmento da nossa cartografia cinematográfica em curso, disse ao Tomás que um dos maiores conseguimentos do seu método de montagem tem sido o de conferir uma grandeza (valorizar) às imagens “tremidas” ou “feias” que fomos filmando naqueles dias. Imagens que, noutro lugar, seriam inaceitáveis ou inutilizáveis; na melhor das hipóteses, seriam esboços de algo por refazer. Sabemos que, sendo da ordem do estudo aquilo que nos move (e não da ordem do esboço – mas isso é assunto para outro texto), “qualquer coisa” filmada pode servir, isto é, tudo o que filmámos tem valor em potência, pois tudo é um vestígio ou rasto do motivo maior (a linha orientadora) que definiu o nosso “campo de treino” naqueles dias de filmagens intensivas na Trafaria.
Porquê filmar? Eis a questão, uma grande questão. / Para alguns poucos, ou pelo menos para alguns poucos que isso perceberam, filmar é a única possibilidade que lhes resta para (sonhar) fugir dessa bela e terrível prisão que é a vida.
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Mais do que filmes, os grandes cineastas deixaram-nos (através dos filmes, mas não só) exemplos dos melhores motivos para filmar.
Penso em Vertov (quem mais?) e vejo cada vez melhor que filmar tudo de um certo modo era o seu projecto, ou antes, que essa era a grandeza subsidiadora do seu “campo de treino”: filmar tudo com o mesmo grau de interesse, mas não filmar tudo de qualquer maneira, justamente porque nem tudo interessa; filmar tudo o que lhe interessava de acordo com uma mesma motivação intrínseca, de modo que os “fragmentos quaisquer” de mundo que a si e à sua equipa de kinoks interessasse reunir se pudessem vir a tornar num mapa alternativo da realidade. O cinema como conjunto de práticas em incessante continuidade. As filmagens (das quais, no caso da primeira escola soviética, já faz parte a montagem) como forma de melhorar exponencialmente as condições da vida na prisão que é esta grande comunidade chamada humanidade.
Penso em Kiarostami – e, mais concretamente, em dois dos seus filmes. Em Zendegi va digar hich (E a Vida Continua, 1992), um homem e o seu filho fazem uma viagem a uma zona devastada por um terramoto em busca de dois miúdos. Esse é o motivo (mais do que um mero pretexto) para vermos o mundo a partir de uma câmara móvel: o carro. E o motivo muda tudo, porque é o que permite que tudo no mundo (naquele mundo em destroços) se torne legitimamente filmável a partir do momento em que a viagem começa. Daí que o filme termine necessariamente em movimento, sem fim, porque é preciso continuar a filmar (viver). É um motivo absolutamente oposto às razões impensadas pelas quais, hoje, proliferam imagens de destroços em todo o lado.
Nesse filme, é muito claro como o melhor cinema actua como uma subtracção do real. O cinema é a única possibilidade que nos resta face ao exponencial desdobramento da realidade na era das imagens em movimento. Só se justifica duplicar a realidade se uma nova realidade for melhor, se nos fizer ver (viver) melhor em conjunto. É a mesma razão pela qual vale a pena fazer um bom mapa: permite-nos movimentar (viver) melhor. Deixar no filme-mapa o essencial e apenas o essencial é o gesto primordial da boa criação cinematográfica. “Nada em excesso, nada que falte” (Bresson). Depois de sabermos o que é essencial, aquilo que nos motiva, então, é possível filmarmos tudo. Saberemos perfeitamente o que interessa e o que não interessa filmar.
Por que motivo escolhemos filmar? É justamente a pergunta que me parece ser essencial de colocar a qualquer pessoa que diga que quer “fazer cinema”, que é o mesmo que dizer que quer “viver do cinema”. Menos do que no começo de qualquer curso ou carreira, é uma pergunta que se deve ir fazendo, pois de alguma forma é uma pergunta do mesmo calibre de outra que diz respeito a toda a gente: porquê viver?
Kiarostami, novamente, e a grandeza da motivação desse filme de que falei: é preciso continuar a filmar até que os miúdos (sabemos que simbolizam o cinema) apareçam, que é o mesmo que dizer “é preciso continuar a viver”. Encontramos o seu reverso noutro filme de Kiarostami: em Ta’m e guilass (O Sabor da Cereja, 1997), seguimos um homem na sua jornada de carro em busca de alguém que aceite enterrá-lo depois de cometer suicídio. É um filme-mapa para fugitivos. Eis, também, no outro lado do espectro, a melhor das razões possíveis para querer filmar tudo o que resta: indo ao encontro do momento inevitável da nossa morte, adquirimos a consciência de que a vida é uma possibilidade impermanente. Torna-se então imperativo filmar todos os indícios desse abismo. Encarar a morte de perfil ou obliquamente – nunca de frente – é aproximarmo-nos em diferido das razões que dizem respeito a essa grande comunidade de olhares diferidos chamada humanidade (a mesma que em Vertov, mas idealizada por outros motivos e método bem diferentes). Tacteando cegamente a escuridão abissal, passo a passo, como quem escava um buraco para fugir da prisão – eis a única forma possível de dar vida à vida que a natureza nos dá e retira. Provocar (aceitando) desvios no percurso da estrada, em tudo o que continuamente nasce e morre.
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Porquê filmar? Eis a questão, uma grande questão.
Para alguns poucos, ou pelo menos para alguns poucos que isso perceberam, filmar é a única possibilidade que lhes resta para (sonhar) fugir dessa bela e terrível prisão que é a vida. Continuando a filmar com essa motivação, encontram seja em que imagens for uma possibilidade de fuga, que é o mesmo que dizer: em qualquer muro reside uma fuga em potência para o outro lado. Chaplin e Akerman não fizeram outra coisa senão filmar muros com a motivação de neles inventar buracos (fissuras). Vejam os planos finais de Modern Times (Tempos Modernos,1936) e News from Home (1976): corpos que furam literalmente a imagem no seu derradeiro movimento, escapando ao regime de visibilidade que os condiciona.
Vejam a obra de Chaplin: um conjunto de gags em que um homem vai e volta ou entra e sai constantemente de buracos improváveis, mostrando-nos com isso que a realidade (o muro) é mais plástica e menos magnética do que à primeira vista parece. E, mesmo que, no fim tudo, nós, os espectadores, permaneçamos do lado de cá dessa outra realidade – é o caso de Modern Times, que nos deixa bem presos ao chão –, vê-los em movimento é a legitimação da possibilidade da nossa própria fuga.
Vejam a obra de Akerman: um conjunto de gags em que uma mulher esbarra constantemente nos muros da realidade, sejam os gestos que a condicionam [Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975)], os muros invisíveis que se erguem depois da queda do grande Muro [D’est (1993)], ou o novo grande muro diurno do capital que toda a possibilidade de noite elimina [Tombée de nuit sur Shanghai (2007)]. Enfim, todo um percurso fugitivo no interior dessa grande prisão chamada vida – o grande guarda prisional que nessa vida nos lançou chama-se Mãe – e da qual, a espaços, por breves momentos, sentimos que é possível escapar (um longo travelling sonhado depois de choques sucessivos com a realidade em bruto, uma longa panorâmica depois de estarmos presos nos movimentos verticais de um edifício fechado, um longo travelling ao frio no meio dos destroços, um longo plano de inacção e prazer depois de três horas de repetição, etc.). E daí o terror total daquele plano final de No Home Movie (2015), um plano do fim de tudo, sem escapatória (aparente), o único plano da vida de Akerman em que a sua motivação principal para filmar já havia desaparecido. Sem o seu mais importante guardião presente, a Mãe, a prisão que sempre conhecemos passa a ser outra, e não necessariamente mais fácil de suportar.
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Porquê filmar? Diria que há duas boas razões – as únicas que verdadeiramente interessam – e que são uma só (Heraclito dixit): ou para dar a ver as condições da prisão; ou para dar a ver as possibilidades de fuga da prisão. Filmar (bem) a vida na prisão é filmar o nosso lugar nela. E isso implica saber, como Kafka escreveu, se queremos melhorar as condições da vida na prisão (Vertov, Kiarostami) ou se queremos saber como dela fugir (Akerman, Chaplin). Filmar os muros que nos rodeiam, ora propondo como os derrubar para melhor os reconstruir, ora mostrando a sua sólida dureza para, com furos subtis, provar que é possível sair.
Minto: há uma terceira via de grandeza, essa sim verdadeiramente heraclitiana. É aquela que nos diz que qualquer muro simboliza a possibilidade de fuga e o seu avesso (Wiseman, Bresson). Nesses casos, por vezes, no limiar do cinismo, por vezes, no cume da sageza, filma-se para se poder fazer a seguinte pergunta: Está aqui o muro, ei-lo – e vocês, diante dele, são fugitivos ou prisioneiros? [Un couple (2022), L’argent (O Dinheiro, 1983)]. Os cínicos e os sábios são os únicos que sabem estar na prisão como se lá não estivessem.
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Conhecendo o nosso lugar na prisão, saberemos porque filmamos. Isto é, porque precisamos de filmar. Mas eis que surge, então, outra questão: filmar o quê?
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(aos clones e aos trafarocos)