Pode não ser a melhor obra de William Friedkin, mas The Exorcist (O Exorcista, 1973) instalou-se como poucos filmes da história do cinema no coração da cultura popular. As filas para as salas de cinema que o exibiam explicam bem a apetência do público para as transgressões violentas que o cinema propunha. E a América estava a ser preparada para o embate que The Exorcist lançava. No mesmo ano em que o filme se estreava, o Supremo Tribunal aprovava favoravelmente a controversa Roe vs. Wade, decisão legislativa que garantia a existência de um direito constitucional à interrupção voluntária da gravidez. A decisão acedia aos pedidos que os grupos de ativistas pró-aborto requeriam ao poder legislativo contra uma influente parcela conservadora, maioritariamente fundada em deveres seculares de ordem religiosa. Pode dizer-se que a contestação social do movimento contracultura dos anos de 1960 teve um papel determinante para a normalização de uma série de questões, incluindo as relativas ao aborto, que impunham uma mudança substancial na consciência norte-americana. Por esses anos, enquanto relevante meio de comunicação de massa, o cinema figurava bem a vontade de mudança.

Se nos abstrairmos do valor de choque, visto hoje The Exorcist parece silencioso, demasiado silencioso, tendo em conta o estrondo que provocou na época. Mesmo quando olhamos para as célebres cenas de medo e choque que a segunda parte concentra, percebemos que são quase sempre de curta duração. Uma dessas cenas icónicas, com a adolescente a descer as escadas em forma de aranha, é incrivelmente curta, durando apenas poucos segundos e que termina num brusco close-up da atriz a verter fluídos pela boca. Em vez de cenas dramáticas que outro cineasta não deixaria de explorar, como no caso da morte do padre Merrin (Max von Sydow) durante o exorcismo, Friedkin oferece-nos elipses. Porém, não conseguimos olhar para estas cenas com o horror da primeira vez depois das suas inúmeras citações, evocações, reconversões e transformações, incluindo nas comédias de terror que glosam a história do género. E sem isto, o que fica? Diríamos que algo menos ruidoso, mas mais poderoso e desafiante. William Friedkin procede a uma meticulosa divagação atmosférica em torno da questão da identidade na encruzilhada complexa que a sociedade norte-americana enfrentava, entre a agitação social, a libertação sexual, Guerra do Vietname, a desagregação familiar, os fluxos migratórios e a crise da fé religiosa.
Em 2023, no mesmo ano em que falece William Friedkin e o Supremo Tribunal decide amplificar as feridas da América, com a reversão de Roe v. Wade, David Gordon Green, com a produção de Jason Blum da Blumhouse, lança The Exorcist: Believer (O Exorcista: Crente). Esperam-se mais dois títulos, igualmente produzidos pela Blumhouse e distribuídos pela Universal. De um modo geral, as nossas expectativas em torno das revisitações de clássicos do cinema de terror são sempre bastante baixas pois limitam-se a repescar formulas desgastadas propostas pelos originais e citadas até à exaustão noutros filmes do género. Porém, o caso de Green tem algumas singularidades porque ultrapassa o nível de simples tarefeiro e proporciona algumas surpresas gratificantes, o que não quer dizer que se aproxima do dispositivo estético dos originais. Após uma incursão no cinema independente, Green avançou pelo género do terror com Halloween (2018), sequela do clássico de 1978 dirigido por John Carpenter. O filme não causou grande entusiasmo, mas há que notar a convocação de uma Jamie Lee Curtis envelhecida como garantia de sobrevivência de uma América fortificada perante o invasor, leia-se estrangeiro, opção pouco comum no slasher, mais interessado nas acrobacias de defesa de uma “final girl” jovem e atraente. A opção ganha agora outras ressonâncias, num momento em que a ideia de ageism, a discriminação e a perpetuação de estereótipos associados à camada sénior da população, regressa ao centro de discussão da política norte-americana.
Ainda que sem a complexidade e o apelo realista de Friedkin, Green sugere um enquadramento claro que possa inspirar um programa. Na verdade, foge dos efeitos visuais mais óbvios e é engenhoso a estabelecer uma atmosfera que facilita a perceção da disseminação do mal.
Mais que um home invasion, o filme de William Friedkin é um body invasion, um filme de cerco em torno do corpo de uma adolescente, em fase de descoberta da sexualidade, a ser atacada, sucessivamente, pela possessão do demónio Pazuzu e pelos rituais cristãos de despossessão. Acorrentada à cama e cercada por dois padres, a adolescente possuída reage aos rituais, masturbando-se violentamente com um crucifixo. Gordon Green, mantém o dispositivo do cerco, mas adaptando-o à diversidade que a América contemporânea reclama. O filme nasce de uma amizade entre duas adolescentes que desaparecem durante uma incursão pela floresta e, depois do regresso, mostram sinais de que algo trágico lhes aconteceu. O realizador não procura explicar claramente o que lhes aconteceu, havendo apenas alguns planos soltos ao longo do filme que representam o seu primeiro encontro com o demónio.
A narrativa assenta numa dialética de contrastes que, em face a um perigo comum, resulta numa tentativa de união apesar dos ressentimentos aparentes. Por exemplo, a possessão acontece em duas adolescentes, sendo uma branca e a outra negra; quanto às respetivas famílias, uma segue o modelo patriarcal e a outra é monoparental, por falecimento de um dos membros do casal; o fundamentalismo é colocado em oposição a outras doutrinas, como o politeísmo ou o ateísmo; por falta de soluções da ciência, as famílias são direcionadas para os mecanismos ancestrais das religiões e crenças; e por aí adiante. Mesmo no momento central do filme, enquanto são exorcizadas, as duas adolescentes são amarradas de costas, uma contra a outra, como duas faces da mesma moeda. Trata-se de um dispositivo que amplia a ideia de cerco e da impossibilidade de escapar, quando a propagação do mal atua por dentro, chegando a todos os recantos não só do corpo como da filigrana social. Dentro da elevação da diversidade em relação a modelos mais conservadores, algo que o filme segue à risca, com um certo cinismo poderíamos afirmar que é fácil adivinhar quem sobreviverá melhor ao massacre do demónio.
Ainda que sem a complexidade e o apelo realista de Friedkin, Green sugere um enquadramento claro que possa inspirar um programa. Na verdade, foge dos efeitos visuais mais óbvios e é engenhoso a estabelecer uma atmosfera que facilita a perceção da disseminação do mal. Apoiado por escolhas cuidadas na montagem e no desenho sonoro, define subtilmente um crescendo envolvente, cujo apogeu acontece no final da primeira parte do exorcismo, onde diferentes religiões, crenças, personagens ou vozes são congregados para o mesmo espaço. Se antes da saída da sala de cinema, mesmo com a presença de Ellen Burstyn e Linda Blair, ainda não tivéssemos percebido o território que estamos a navegar, num gesto algo redundante, entra “Tubular Bells” de Mike Oldfield, também repescado do filme de William Friedkin, um dos temas musicais mais conhecidos da história do cinema. Mas é com o último plano do filme, um movimento curto sobre a sobrevivente a sorrir, com que preferimos ficar. Como se pressentíssemos um futuro luminoso sem o piscar de olho a quaisquer novos desenvolvimentos.
★★★☆☆