Ich glaub nicht an den Himmel,
Wovon das Pfäfflein spricht;
Ich glaub nur an dein Auge,
Das ist mein Himmelslicht.
Heinrich Heine, 1821
[Eu não acredito no Céu,
Cuja paz o pregador proclama;
Só confio nos teus olhos,
Eles são as minhas luzes celestiais.]
(tradução livre)
Cliché número 1: o filme de Verão, desde o incontornável Rohmer a todos os primeiros filmes feitos a partir de memórias de um Verão adolescente. Os banhos de mar, os amores e desamores, os jantares no jardim, as conversas inebriadas de vinho e de poesia.
Cliché número 2: a comédia romântica, com um protagonista masculino maladroit (embora este papel seja normalmente reservado às mulheres, pelo menos desde o fim da screwball comedy) e irritadiço, incapaz de participar numa simples conversa de pessoas aparentemente mais versadas em capacidades sociais.
Cliché número 3: o escritor em pleno writer’s block, teimando nos méritos de uma obra que ele próprio sabe falhada, até que chegue à conclusão de que é a vida, afinal, a fonte de inspiração que lhe falta. Inevitavelmente, haverá uma cena em que as páginas da obra falhada voam, levando a que o escritor tente desesperadamente recuperá-las.
E agora deixemos a recorrência própria dos clichés, para passar a uma recorrência de outra natureza, uma recorrência autoral, algo daquela “primeira vez em cada regresso a casa”. Porque Christian Petzold, ainda que ancorado no palpável, nos elementos (aqui, o fogo), sabe falar das coisas sem as mencionar, num jogo que cumulativamente escapa das nossas mãos e nos prende. O que lá está não é, à partida, visível, mas, sob a camada fina de simplicidade, há muito que simultaneamente se esconde e se revela.
Na breve apresentação que antecedeu a exibição do filme por altura do LEFFEST, Christian Petzold referia a sua vontade de fazer um filme de Verão alemão. Os franceses têm os seus filmes de Verão, nesses Verões infindáveis que esvaziam Paris e entopem as estradas que ligam a capital ao sul do país, e os americanos têm também os seus filmes de verão, muitas vezes filmes de terror que, tal como Roter Himmel (Céu em Chamas, 2023) começam com um carro e uma estrada pelo meio da floresta. Mas o filme de Verão alemão parece ter nascido e morrido com Menschen am Sonntag (Gente ao Domingo, 1930), facto que aponta para uma certa incapacidade germânica para o desprendimento, para o abandonar das obrigações.
A tragédia atmosférica vai sendo silenciosamente construída de forma não muito diferente daquilo que sucedia em The Ice Storm (A Tempestade de Gelo, 1997), de Ang Lee, onde a tempestade ia sendo anunciada, sem que alguém pudesse acreditar no seu poder de causar a morte, apesar de todos os sinais.
Não espanta, pois, que o filme de Verão germânico de concepção petzoldiana assente na ideia de trabalho (alemães a serem alemães). Até mesmo Devid (Enno Trebs), que tem uma actividade associada ao Verão, constantemente faz questão de frisar que é “Rettungsschwimmer” e não “Bademeister”. As férias de Leon (Thomas Schubert) são feitas de tentativas sempre frustradas de retomar a reescrita do seu romance (ele vai repetindo que “o trabalho não permite” outras actividades, mas o trabalho pouco avança). Em contrapartida, a forma como Felix (Langston Uibel) lida com necessidade de encontrar um tema para o seu portefólio, aparentemente com uma atitude displicente, à espera de que a inspiração apareça, mas essa acaba por ser uma estratégia que dá frutos, com a ideia para o projecto a surgir de forma muito natural, no tempo em que Leon dormia (uma ideia a que ele reage de forma muito pouco entusiástica, o que parece resultar de ciúme por essa “naturalidade”). Felix afirma que tudo acaba por ser trabalho – reparar o telhado, procurar um reboque para o carro, fazer as compras. Nadja (Paula Beer) aparenta ser a habitante da casa que de forma mais clara está comprometida com o trabalho, ainda que sazonal, vendendo gelados aos veraneantes, mas é justamente a revelação da sua “verdadeira” actividade profissional que vai provocar um abalo na forma como ela é percepcionada por Leon (o preconceito está todo do lado dele, porque esta revelação não provoca qualquer efeito visível nas restantes personagens, que a encaram como ela é e não em função do seu trabalho).
Nadja, verdadeiro catalisador da narrativa do filme, revela, no entanto, uma irrealidade que partilha com a personagem de Nina Hoss em Yella (2007), num regresso do gag (ou pista) da roupa vermelha que se eterniza durante o filme (o vestido é vermelho tal como o céu no título original), reforçando o seu lado fantasmático – gag aliás reforçado pelo facto de o primeiro sinal da presença de Nadja ser justamente uma máquina de lavar a roupa em funcionamento numa casa vazia. Essa primeira existência de Nadja é feita de sinais – a máquina de lavar a roupa, a roupa da cama revolvida, a roupa interior dispersa em cima da cama, os copos de vinho semi-vazios (o vinho já a apontar para uma erudição que Leon só descobrirá mais tarde), os restos de lasanha – um convite a criar essa personagem de carne e osso a partir de peças disjuntas. É uma curiosidade que é espicaçada em Leon, mas que ele rapidamente deixa esmorecer, deixando cair o mistério. “Por que motivo nunca disseste o que fazias? – Tu nunca perguntaste.” Quanto à separação do real e do imaginado, todas as suposições são permitidas. Essa é a pista deixada por Petzold na longa história contada por Devid durante o jantar, uma história que ele vai desenvolvendo lentamente, mas que se revela absolutamente falsa. Assim sucede também com o fogo várias vezes nomeado e que é central ao filme, mas que nunca vemos – In my mind, tal como o tema musical presente na banda sonora.
Como pode o fogo lavrar num lugar aparentemente tão pouco quente? O tom trocista está nestas férias em que o trabalho é omnipresente (até em pequenas referências, tais como o facto de Nadja ser sobrinha de uma colega de trabalho da mãe de Felix), mas também nas roupas de agasalho em pleno Verão (aquilo que num filme francês seria um Verão na Normandia, com camisolas grossas), agravando as humilhações sofridas por Leon, que de forma óbvia, mas nunca explicitamente pronunciada, sente desconforto com o seu próprio corpo, fugindo constantemente às actividades e trajes próprios da época estival, arrastando consigo uma mochila remendada. A sua humilhação e a sua frustração constantes encontram logo de início um paralelo na ridícula performance do Mercedes que ele e Felix abandonam na estrada (haverá pior humilhação para um potente carro alemão do que sobreaquecer o motor em plena viagem pela natureza?) e que acaba substituído por um simples tractor como meio de locomoção – a viatura que corresponde às lides do trabalho rural. Leon acaba sempre refém da sua personalidade, fechado em si próprio, sufocado na sua teimosia sem propósito (ardendo por dentro). Felix começa por notar que há algo de errado com o carro, uma avaria que acaba por resultar de um sobreaquecimento do motor – é o excesso de calor que leva ao fogo e que começa já a causar danos.
Se, de Undine (2020) a Roter Himmel, Petzold explora os diferentes elementos, coloca-os também em oposição. A atmosfera densifica-se, está carregada de sons, os aviões que passam, os mosquitos, os ruídos que vêm do quarto de Nadja. A tragédia atmosférica vai sendo silenciosamente construída de forma não muito diferente daquilo que sucedia em The Ice Storm (A Tempestade de Gelo, 1997), de Ang Lee, onde a tempestade ia sendo anunciada, sem que alguém pudesse acreditar no seu poder de causar a morte, apesar de todos os sinais. Entre o calor e o gelo, nada se assemelha tanto à neve quanto a cinza que chove depois do incêndio. E é justamente na sequência dos resultados trágicos desse incêndio que surge a singela gota de água que se resume a uma lágrima. De Undine e Roter Himmel o percurso vai da água ao fogo, e do fogo à água.
Por duas vezes Leon falha redondamente ao tentar perceber o que é dito entre Nadja e Helmut (Matthias Brandt), imaginando palavras que não correspondem à verdade. É essa a sua cegueira, quando cria fantasmas na sua mente que o tornam incapaz de perceber o que está a acontecer à sua volta. São muitos os momentos de Roter Himmel em que as personagens são filmadas de costas (não é, afinal, nas costas do livro que se encontra habitualmente o resumo do seu conteúdo?), ponto de vista sublinhado pelo trabalho de Felix, que fotografa a nuca dos seus modelos, depois olhando o mar, e depois o próprio mar. Leon não revela qualquer entusiasmo, apenas irritação perante a ideia de Felix, porque não aceita que seja possível fotografar alguém que olha o mar, já que essa pessoa estará necessariamente a olhar para o próprio fotógrafo. Nadja e Helmut conseguem aquilo de que Leon é incapaz: ver o que está nas fotografias de Felix. O olhar está também no poema de Heinrich Heine que Nadja recita: é pelo olhar que o escravo ama, é pelo amor que ele morre.
A chegada dos polícias que anunciam a morte acontece no exacto momento em que Leon decide falar de amor. Nada prepara para aquela lágrima final, que é também a lágrima de Nadja, vendo as mãos dos dois amantes interligadas. Ao contrário de Nadja, Leon não chora, mas pensa nos amantes de Pompeia, os mesmo que Ingrid Bergman observava em Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954), que a tocavam profundamente e a levavam às lágrimas. É um olhar que pode levar à vida, ao amor. É um amor que pode levar à morte.
★★★★★