“(…) nós somos o arquivo, cada um de nós é o arquivo.”
Nuno Faria
O desespero e a injustiça dos tempos vividos é de tal forma insuportável que cada vez mais surgem filmes de tribunal, os cinemáticos “courtroom dramas”, a inundar a nossa paisagem. De Saint Omer (2022), de Alice Diop, a Anatomie D’Une Chute (Anatomia de uma Queda, 2023) de Justine Triet, passando por filmes onde o julgamento é apenas o culminar de tanta esmagadora crueldade como acontece no caso de Killers of the Flower Moon (Assassinos da Lua das Flores, 2023) de Martin Scorsese, realizadores e espectadores procuram, de igual forma, um romper com o silêncio da opressão no ecrã. O espectador sempre ansiou ver os Atticus Finch deste mundo a defender não só o homem acusado, mas a relatar a resistência da discriminação que o levou ali, à cadeira do réu. Em 2023, o espectador quer mais. Já não bastam as artimanhas de Hollywood.
Agora procura-se dar voz àqueles que não a têm. Noutras palavras, já não se anseia só ver replicada a electricidade de um James Baldwin único e como este a transportava dentro dele para expelir no momento indicado sem tremores na voz ou no corpo. Ou como as suas palavras faziam-se hino pela defesa de um genocídio ignorado e por isso aceite, pessoas aniquiladas apenas por existirem. Quer-se também falar sobre o trabalho da verdade durante os procedimentos judiciais, dos condutores até ela, e da sua fiabilidade. Filmes recentes, como os mencionados acima, confundem expectativas e existem para falar sobre uma verdade resultante de um jogo de ecos e espelhos, da instalação da soberania da linguagem. Desejam perscrutar as várias e possíveis faces da realidade, tendo em atenção os nervos da violência que estiveram na sua origem.
El Juicio (O Julgamento, 2023), de Ulises de la Orden, é um irrefutável portento do cinema documental. Nada encontraremos em comum com estes outros filmes no sentido em que não se aufere qualquer ambiguidade ao “maior genocídio alguma vez cometido na história do nosso pequeno país”, nas palavras de Julio Strassera que, juntamente com Luis Moreno, iniciam os procedimentos enquanto promotores contra os nove líderes das três juntas militares que governaram a Argentina numa ditadura sangrenta de 1976 a 1983. Foi o maior marco histórico da luta pela justiça a seguir aos julgamentos de Nuremberga que, entre Novembro de 1945 e Outubro de 1946, colocaram a nu os vários crimes contra a Humanidade cometidos durante a Segunda Guerra Mundial pelo regime nazi. No entanto, o filme é, na sua essência, um moldar de retalhos cinemáticos de um julgamento televisionado que se estenderia por 8 meses, com Ulises a ter na sua algibeira um oceano de imagens com as quais trabalhar – mais precisamente, 530 horas de gravações a preto-e-branco e a cores, arquivo da Memoria Abierta, a organização que detém os originais -, a verdade de que nos fala é uma que faz uso da recordação e exposição em tribunal civil da violência cometida pelos corpos governantes do fascismo iminente que teima em não morrer dentro das pessoas. É a verdade da evolução do arquivo no produzir de uma história já contada através das imagens deixadas, sem olhar à cronologia, e que se abre ao peso das atrocidades mencionadas.
(…) é cinema-monumento, pois ainda que não pareça, é tão alimentado por fogo como as ficções com várias linhas de história e demais artifícios. Representa primeiro, mas depois engolfa e engolfa como se de slow cinema se tratasse, até não haver mais possibilidade de pensarmos no filme enquanto depósito da História congelada, porque é a partir dele que tudo se alastra e evolui.
Depois de Argentina, 1985 (2023) de Santiago Mitre, que passou pelos festivais de Veneza e San Sebastián, e acabou nomeado a um Óscar da Academia este ano para Melhor Filme Internacional, El Juicio encontra um inesquecível paralelismo com o trabalho marcante de Claude Lauzmann e os seus fantasmas [Shoah (1985)]. Na ausência das imagens dos crimes Dantescos, que foram do homicídio aos confins mais sórdidos da tortura com os labirintos do medo a privarem qualquer um da sua liberdade interior, a imaginação substitui-as. Ouvimos apenas as palavras que as descrevem. Preso naquele auditório, também o espectador passa a fazer parte da exaustiva investigação na qual Ulises embarcou em nome daqueles que sobreviveram. Estima-se que mais de 30 000 pessoas terão desaparecido. O julgamento percorreu 700 casos de violência.
Em apenas três intensas e solenes horas, e através de uma estrutura que entrecorta e destila a imensidão do material de arquivo em 18 capítulos, todos eles com títulos que advêm de citações de testemunhas e estão organizadas segundo uma temática, Ulises de la Orden faz o derradeiro trabalho de materializar o lugar da memória pessoal e colectiva, construída à volta do trauma: documenta de forma acumulativa a descida às profundezas da crueldade. Ou seja, livra-se das palavras em vão e foca-se na junção incisiva e rápida entre si de relatos, gestos e olhares, que, ao contrário do que se tinha visto com o fecho de correr ficcional de Santiago Mitre, expõe em número e re-confirma o silêncio que engoliu todas aquelas pessoas, directa ou indirectamente vítimas de roubo dos seus direitos humanos e civis, transportando-o depois até nós que, afundados em cadeiras, olhos imóveis, corpos petrificados e gargantas secas, somos engolidos por uma onda de choque e repulsa que só se intensifica.
Dos momentos da descrição da tortura como doutrina dos “subversivos”, as “pessoas não-sociais”, que desapareciam no meio da rua e acabavam em campos de concentração – os corpos em suspensão sujeitos a choques eléctricos, o remover de unhas, as queimaduras de cigarros, o abuso sexual, a privação da necessidade fisiológica de urinar -, àqueles em que se mergulha no purgatório das mulheres grávidas, mantidas vivas até ao nascimento dos seus bebés, que nunca mais veriam dali em diante, El Juicio coloca os responsáveis no estômago do lobo e oferece-nos um filme visceral (de tão silencioso) que quer falar sobre os instintos mais depravados do ser humano para incitar e propagar o genocídio. Um testemunho em particular aborda o principal mecanismo da contaminação fascista que fecha a população sob o seu efeito, tanto é o medo de sofrer ainda mais privações. “Um dos problemas era o facto de que assim que alguém desaparecia, todos diziam que ele ou ela eram certamente terroristas. E nunca ninguém fazia nada a não ser as famílias. Algo sera. Era isso. Deveria de haver uma razão.”, afirma um homem de nacionalidade inglesa no ecrã. Eis o controlo da moralidade, a libertação da culpa. Eis o genocídio a encontrar uma justificação.
Ainda assim o mais impressionante em El Juicio é a falta de interacção que temos com o rosto das vítimas durante os seus testemunhos. Com as câmaras fixadas no fundo do auditório, os juízes estão à nossa frente mas das testemunhas só lhes vemos as nucas, e assim são diferenciadas. As vozes torturadas que ouvimos são sempre protegidas. Não há como pensar nas palavras que saem deste ou daquele corpo tendo em conta a linguagem corporal. É raro vermos-lhes a cara, e quando é possível, é uma expressão rápida que surge devido a alguma comoção que retira a vítima do seu discurso. O mesmo pode ser dito de quaisquer movimentos de câmara. Tudo é tão estático que assim que o movimento se apresenta redirecciona a atenção do espectador para o elemento de espectáculo que tem à sua frente e do qual se esqueceu. E pergunta-nos quem somos nós ali, o que estamos realmente a fazer e o que pretendemos.
É um estudo complexo que nem sempre se consegue aliar a palavras porque enquanto se vive, esse algo vai sendo enterrado, como nunca me esqueci de ler num ensaio de Filomena Molder sobre o arquivo. O curioso é ganhar a consciência que esse enterrar é a descoberta de uma localização. E, neste caso, o cinema que se instala dentro de El Juicio consegue apoiar-se finalmente no grito, numa mistura infalível do uso da contemplação do não-tempo do julgamento (porque foi mexido) e no qual nos podemos perder à vontade, e da investigação de Ulises enquanto conquista pela catarse. Ou não fosse esse o trabalho do documentário em primeira instância: a libertação que se esvai com a evidência.
Por tudo isto, El Juicio é cinema-monumento, pois ainda que não pareça, é tão alimentado por fogo como as ficções com várias linhas de história e demais artifícios. Representa primeiro, mas depois engolfa e engolfa como se de slow cinema se tratasse, até não haver mais possibilidade de pensarmos no filme enquanto depósito da História congelada, porque é a partir dele que tudo se alastra e evolui. Seria então de esperar que tivesse um lugar garantido nos ecrãs das salas de cinema. Poucos filmes se dão mais ao esquecimento de tempo e espaço que ocorre dentro dos maiores ecrãs com as suas arestas invisíveis.
Depois da estreia no canto de curadoria irresistível que é o Forum da Berlinale, chegou até nós na 21ª edição do DocLisboa-Festival Internacional de Cinema, só para estrear agora em exclusivo na Filmin, plataforma que entende a urgência de levar até às pessoas a transmissão da memória de uma geração para outra, e para outra. Pena que tantas distribuidoras portuguesas se venham cada vez mais a esquecer que o cinema é das mantas mais sensoriais que temos para nos avisar das fragilidades da democracia e de como não há nada mais importante do que a sua preservação. É nos corpos que se conduz o arquivo, afinal. E é nele que ficam retidas para sempre todos os esforços dos militantes. Como o exposé de 400 páginas sobre os crimes que ocorreram durante a ditadura militar, também o filme de Ulises entoa: Nunca Más!
El Juicio (O Julgamento, 2023) estreia esta semana em exclusivo na Filmin.