Chamaram a atenção de Paul Schrader para o facto de que First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017), The Card Counter (The Card Counter: O Jogador, 2021) e agora Master Gardener (O Mestre Jardineiro, 2022) formavam uma trilogia. Talvez seja assim. Segundo se diz, um aproximar-se de uma dimensão abertamente mais espiritual que faz contaminar certas noções de realismo. Os finais pseudo felizes, momentos de transcendência, aqui também com uma sequência de regresso ao paraíso floral pós-orgasmo a lembrar a cena de flutuação cósmica do padre Hawke e da fiel Mary. Mas a ligação é ainda mais evidente pois são três filmes acerca de protagonistas masculinos a contas com o passado, numa luta interior algures entre a tragédia inevitável e a capacidade de redenção.
Schrader, numa entrevista recente que concedeu a Erika Balsom, fala das “metáforas ocupacionais” a partir de Pickpocket (O Carteirista, 1959) e do seu argumento Taxi Driver (1976). A ideia é que nas suas personagens o trabalho seja uma porta de entrada que é aberta de forma a desconstruir um cliché. Dá o exemplo da personagem de De Niro, que estava longe de ser um estereótipo do taxista nova iorquino falador e bem-disposto para se revelar “um rapaz preso num caixão amarelo, a flutuar pelos esgotos abertos da cidade”. Essa é, afinal, a “estratégia” do padre-ativista de Ethan Hawke, do jogador de poker-soldado torturador Oscar Isaac e agora do jardineiro ex-proud boy Joel Edgerton. O presente não é somente o presente: pode ser um véu sobre assuntos não encerrados do passado ou simplesmente demasiado complexo para seguir apenas um trilho sem questionamento. Como Schrader apontava no carteirista Michel de Pickpocket, a prisão pode ser a libertação. Nesse sentido, a imagem típica do seu cinema, “um homem no seu quarto” [imagem aliás que rima com outro filme de crise, Journal d’un curé de champagne (Diário dum Pároco de Aldeia, 1951)] é a encenação dessa prisão em liberdade. O homem preso no seu passado e nas suas dúvidas, cuja voz interior se faz presente na escrita diarística (talvez por isso em Schrader a voz off seja uma forma de empatia e de leitura da alma).
Mais do que querer preparar uma explosão, tudo parece querer dizer-nos algo acerca da sua contenção. (…) A jardinagem, como tema, parece fechada numa certa metáfora da ordem, da rotina, da origem, veiculada através de conversas serenas e em espaços interiores. É um jardim da graça, um jardim interior.
Contudo, esta oposição presente-passado, exterior-interior não é apenas uma forma de destruir clichés. Ou mesmo de uma mera ambição transcendental do seu cinema. O que subjaz ao dilema dos indivíduos parece ser uma declinação das placas tectónicas da sociedade americana. E não terá sido sempre assim na melhor acção e no melhor drama? Neste caso, essa outra camada – mais contemporânea, se assim a quisermos nomear – ajuda a tornar próximo o que pensávamos distante. O que liga um padre às alterações climáticas e que implicações isso poderá ter numa dada concepção da sua fé? O que une um jogador de cartas a uma visão americana da guerra como jogo e tortura? Ou agora, um jardineiro à ascensão dos novos movimentos alt-right?
Esta ligação não é suposta ser imediata. Schrader trabalha antes na latência ou no desvelamento. Lembremos a importância do colete destrutivo debaixo da batina em First Reformed ou dos lençóis imaculados sobre as mobílias dos quartos de motel em The Card Counter. Em Master Gardener, o véu que separa o passado do presente controlado é a camisola de Narvel que oculta as suas tatuagens. Como se diz no primeiro momento em que as vemos: as sementes duram bem mais tempo do que se pensa. É a permanência, ou, pelo menos, a latência de algo que pode surgir a qualquer momento. Mas este véu objecto tem também, creio, um correspondente mais vasto e disseminado.
Narvel trabalha para a aristocrata Norma Haverhill (Sigourney Weaver) cuidando do ex-libris da extensa propriedade, os jardins de Gracewood. Não se passa muita coisa em Gracewood, ouve-se a dado momento. As composições são regulares, formais, geométricas, serenas. A banda sonora até quase metade do filme é irritantemente harmonizada em suaves dedilhares de guitarra (Lynch também trabalha assim no caminho para a estranheza, mas nem este vai tão atrás na tranquilidade musical, nem Schrader tão a fundo na surrealidade). As personagens conversam entre si direitas e pausadas. Apenas pequenos pormenores vão desvelando essa excessiva normalidade. O cão da dona batizado à nascença de porch dog. Na casa senhorial, um papel de parede decorado com alforrecas, apesar de estarmos num cenário campestre. A súbita vinda de uma sobrinha neta da dona (Quintessa Swindell), mestiça, que deverá ser instruída nas artes da jardinagem por Narvel e a sua inexpressiva família de colegas de trabalho. Fosse este o set up de um filme de terror e não o estranharíamos.
Mais do que querer preparar uma explosão, tudo parece querer dizer-nos algo acerca da sua contenção. Norma, oscilando entre o suave autoritarismo, o desejo e o ciúme faz lembrar outra Norma [a Desmond, de Sunset Boulevard (O Crepúsculo dos Deuses, 1959)] nesse espaço fechado e decadente, sem aceitar o declínio do tempo. A jardinagem, como tema, parece fechada numa certa metáfora da ordem, da rotina, da origem, veiculada através de conversas serenas e em espaços interiores. É um jardim da graça, um jardim interior. A saída do jardim, também ela algo súbita, de Narvel e de Maya (a aprendiz, a filha, a amante?) procura abanar essa ordem artificial imposta como armadura contra o passado. Resvalamos para um filme de vingança, de runaway lovers. A destruição do jardim, mais do que a já referida cena de entrada no renovado Éden do amor, surge como algo um tanto evidente. Bem como o restauro da ordem, a dança de fim, romantismo apaziguador. Como se fosse o retorno à ordem do próprio cinema de Schrader, em tudo aquilo que já vimos, como se o regresso ao seu cânone funcionasse contra si.
Se Master Gardener funciona bastante bem no lento desembrulhar da ordem (e menos no “reembrulho” da desordem), importa perceber como a secura das palavras e do olhar de Joel Edgerton para isso contribuem. Um brilhante trabalho de contenção interior, em personagens que já tinham dentro esse silêncio, como o polícia Mark Frame em The Stranger (2022) de Thomas M. Wright ou a bizarra ordem doméstica de It Comes at Night (Ele Vem à Noite, 2017) de Trey Edward Shults. Talvez o encontro com os demónios interiores de Paul Schrader fosse uma inevitabilidade à espera de acontecer.
★★★☆☆