“O que tens feito?”, “A tua tese é sobre o quê?”, “O que fazes no teu trabalho?” – são perguntas que ouvimos constantemente de quem nos rodeia e se interessa por nós. O denominador comum destas questões é qual o assunto/tarefa que justifica a ocupação do nosso tempo, o que é “isso” à volta do qual gravita a nossa atenção. Os outros querem conhecer o que nos move, o que nos pôs em movimento, numa certa direcção. Querem perceber também qual é a amplitude do horizonte diante de nós, se o empreendimento é passageiro ou de longo fôlego, qual é o grau de compromisso. Ou temos a resposta na ponta da língua, bem treinada, ou hesitamos. Ora (nos) desvalorizamos, em jeito defensivo, ora enchemos o peito de ar para simular um certo tipo de convicção, como quem enfrenta um desafio que exige esforço de ultrapassagem: convencer os outros para nos convencermos a nós mesmos (costuma sair-se melhor na resposta rápida aquele que segue a ordem inversa).
Não usei a palavra “ocupação” sem propósito. O tempo que ocupamos, ou melhor, o que nos leva a ocupar o tempo, é entendido pelos outros como aquilo que justifica o nosso movimento no mundo. Por definição, somos todos passageiros e, simultaneamente, potenciais arquitectos do tempo, do nosso tempo. Aquilo com que nos decidimos ocupar é a caução do nosso movimento ou do nosso lugar na sociedade. É o que justifica, ao olhar dos outros, se nos estamos a movimentar ou a erguer edifícios – a fugir da prisão ou a melhorar as condições da vida na mesma. Reconhecemos bem os olhares de suspeita sobre a nossa linha de fuga ou os conselhos condescendentes sobre o nosso método de construção. Dizem-nos os velhos residentes da prisão (que tão poucos fugitivos viram escapar): “Se queres fugir, há quem tenha fugido melhor”. Dizem-nos os mestres que já testemunharam a construção e queda de muitos edifícios da mesma dimensão: “Se queres ocupar o teu tempo com isso, então devias usar esta pedra e não aquela”.
Este entendimento da “ocupação” lembra um pensamento de Sola-Morales: tendemos a apropriar-nos e colonizar o nosso tempo como um arquitecto que chega a um terreno “vazio” (um terrain vague) e o olha como se lhe faltasse alguma coisa. Como se aquilo que escolhemos fazer (e filmar) devesse obedecer ao mesmo critério que ditou os grandes empreendimentos coloniais na era dos “gloriosos descobrimentos”, ou então não seremos mais que navegantes à deriva no mar alto que é a nossa vida.
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“O que andas a filmar?”, eis uma das perguntas mais sensíveis que pode haver, ainda que quem a faça (ou quem a receba, nos casos mais des-sensibilizados) possa não o saber. A pergunta, apesar da sua superficial circunstancialidade, é como um convite ao desabafo mais íntimo. Não se deve perguntar de qualquer maneira “sobre o que é” o filme que alguém está a fazer. Porque filmar, independentemente do filme que possa daí emergir (estas crónicas não são sobre filmes: são sobre o acto de filmar), é sempre a construção (ou destruição) de um espaço de intimidade, um encontro de mil formas possíveis entre quem filma e “o que” é filmado. Daí que o documentário, enquanto práxis cinematográfica, seja a forma de evidenciação da distância que separa-liga os corpos.
[Por falar em documentário, antes de seguirmos para o próximo ponto, talvez seja boa altura para lembrar esse tratado sobre a distância que é Belarmino (1964)].
Este tipo de perguntas encosta-nos às cordas (tal como Belarmino diante da câmara de filmar): uma palavra em falso revela como temos a bússola avariada; um leve gaguejo revela como a meta escolhida podia ser uma qualquer. Quando respondemos, deixamos entrever a distância a que estamos do “naufrágio” (lá irei), revelamos a natureza da nossa relação com o “isso” que nos ocupa. E, no fundo, é essa distância que as pessoas querem saber; não é a validade do objecto ou do método para o abordar, é a natureza da nossa relatividade no mundo.
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Estou a tentar falar de documentário, estou a tentar identificar a sua especificidade. Estou a pensar o documentário não como forma de práxis assimilada (ou melhor: anulada) pela programação generalizada de tudo na era do “realismo capitalista”, mas como forma de movimento (forma de vida). “Olhai vós mesmos se vedes melhor com este vidro aqui, com aquele ali, ou com aqueloutro” (Proust) – se o cinema é uma lente através da qual vemos “melhor” o mundo, o documentário é o corpo em que essa lente repousa.
Sei hoje que o primeiro filme de “documentário” que fiz, depois de deixar de filmar em grupo, foi uma pesquisa sobre a minha particular forma de movimento, isto é, sobre a forma como me posso movimentar com a câmara de filmar. Ao longo das filmagens estava a léguas de saber o que andava eu a tentar filmar. Dia a dia, a cada “tomada de vista”, fui tacteando uma forma de aproximação àquele lugar, ao meu amigo Afonso e ao seu quadro (negro, espécie de “bruma luminosíssima” em construção). Ver hoje esse filme é como olhar para a memória que temos de uma primeira aula: o corpo em busca de uma métrica espacial em que se possa entrosar, os gestos nervosos de quem ora esconde, ora revela a natureza do seu desajuste face à coreografia do habitus. Todas as coisas e todos os seres nos olham de volta, pelo canto do seu terceiro olho, e nós sabemo-lo (sentimo-lo como choque eléctricos). Ver hoje esse meu primeiro documentário é, sobretudo, olhar para os vestígios de um corpo-olho que a todo o momento se tentava situar nesse terrain vague que não me pediu para ser ocupado, mas que se abriu, íntima e delicadamente, à furtividade da minha câmara de filmar.
Onde algumas pessoas viram ou vão vendo um filme simples e “bem conseguido”, eu vejo hesitação e apalpadelas. Enquanto o Afonso progredia por pinceladas de firmeza, eu oscilava indeciso entre todos os pontos de observação possíveis do atelier. Quando falo sobre o filme, faço parecer outra coisa e digo que os vários temas são apresentados por ordem decrescente de importância: o lugar, o amigo, o acto de criação, a (relação do cinema com a) pintura. No entanto, esta é uma formulação que, mais do que emergir da prática, foi aparecendo ao longo de anos de posicionamento teórico. O verdadeiro tema do filme (não visível, mas sensível) é a incerteza de como me posicionar diante do que se me apresentava então: a necessidade de me reajustar a um mundo desconhecido para o poder conhecer.
Pouco interessa se o filme funciona (estas crónicas, reitere-se, não são sobre filmes). O que interessa é perceber que o que filmamos revela o nosso ponto de observação, haja nele segurança ou não, premeditação ou puro improviso. E, de filme para filme, vão-se revelando aos olhos dos outros (e do Outro que também somos) os pequenos deslocamentos do nosso corpo, o documentarista que em potência todos somos.
O mais belo filme-poema sobre esta “primeira vez” do nosso corpo que (re)entra na realidade é Il Posto (O Emprego, 1961), de Ermano Olmi, justamente precedido por Il tempo si è fermato (1959), que, por sua vez, trata da relação entre dois corpos (a amizade, portanto). Não por acaso, falo de duas primeiras “ficções” que foram precedidas por mais de 25 curtas-metragens de documentário – mais que um género menor de início de carreira, o documentário foi uma escola do movimento para Olmi, Resnais, Godard, Lopes e tantos outros “novos” cineastas do pós-guerra. E por isso talvez não seja abusivo dizer que Il Posto é o mais belo filme da história do cinema sobre a distância. Os corpos de Domenico e Antonietta são como câmaras de filmar acabadas de estrear e, depois de uma sequência em que contemplam montras do exterior, sonhando com um ordenado que nunca terão para poder comprar aquelas roupas e electrodomésticos, é o cheiro do café que os atrai para uma coreografia de gestos rotineiros à qual se procuram ajustar. Ao longo dessa cena, entretecidos num cruzamento de olhares, deixando-nos escutar ao de leve o batimento dos seus corações, o mundo revela-se-lhes (revela-se-nos) como um poema quotidiano de poucos versos. É o não-dito (a distância, o espaçamento silencioso) entre as linhas desse poema que faz um novo mundo, belo e triste, aparecer.
Face à famosa equação proposta por Godard (“Se a mise en scène é um olhar, a montagem é o batimento do coração”), em que o aparelho cinematográfico se confunde com os aparelhos de percepção humanos, o documentário revela-se como a mais cinematográfica forma do movimento: uma câmara-corpo no limiar da (i)mobilidade. Daí que a equação de Rivette (“Todos os filmes são documentários sobre o actor”) tenha uma amplitude para além do óbvio: o actor é também, ou sobretudo, o corpo-câmara que se move e tal como se move face àquilo que conhece.
Se, há dez anos, muito pouco sabia sobre cinema, pouco ou nada poderia saber sobre o valor ético do documentário. O documentário é a forma cinematográfica na qual, para pedir de empréstimo a formulação de Lévinas, a ética precede qualquer estética ou metafísica: “A ética é esta possibilidade de impugnar minha espontaneidade pela presença de Outrem. A ética é a possibilidade de abordar a estranheza de Outrem, a impossibilidade de ser reduzido ao Mesmo, ao pensamento e à posse do Mesmo”. É essa ética que intuímos existir em qualquer filme (os melhores filmes comunicam-nos subtilmente, desde a primeira cena, a distância face ao seu assunto) e, mais evidentemente, no documentário, porque neste a relação com o Outro é sempre o que justifica o “porquê” de se filmar. O documentário é a forma de vida através da qual é possível entrever mais claramente a (construção de uma) ética entre o que filma e o que é filmado. E o que José Manuel Costa nos ensinou nessas aulas em que realizei esse “primeiro” filme é que o documentário, enquanto primeira “escola realista” da História do Cinema, mais do que um género ou modo de representação, veio reconfigurar a forma de nos movimentarmos no mundo. O documentário lega-nos capacidades para ver, escutar e tactear um mundo que subitamente se nos apresenta na sua radical alteridade.
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Forma de movimento do próprio para o impróprio, enquanto passagem ao acto, documentário é verbo transitivo por excelência. “Mudar(-se) de lugar: menear, mexer, movimentar”. Nos nossos filmes e nos dos outros podemos ler nas entrelinhas a distância a que, ora de forma subtil, ora de forma gritante, o corpo-câmara escolheu estar (ou não) “daquilo” que filma.
No meu “primeiro” filme descobri, sei-o hoje, que o que me interessa no documentário (convém não confundir com “cinema documental”) enquanto prática é, antes de tudo, a descoberta pessoal e íntima de uma distância que, passo a passo, toque a toque, se encontra no acto de filmar (que é o mesmo que dizer: na montagem). Mas é nos filmes dos outros que descubro continuamente como a distância é sempre o primeiro tema do documentário, o “isso” que não está no título, no filme ou nas imagens, mas algures entre todas as coisas de forma secreta: “A [ideia] mais importante será a mais escondida” (Bresson). As características desse segredo guardam os vestígios do seu modo de passagem ou ocupação nesta vida.
Invoque-se, a propósito, um mestre da “ocupação”: em nenhum filme de Wiseman vemos “realmente” um filme sobre uma instituição ou comunidade. A forma-documentário nos filmes de Wiseman é a que nos deixa entrever como o realizador se posiciona face a tais instituições ou comunidades, isto é, como, mais do que “observá-las”, as atravessa “respeitosamente” (leia-se: com resguardo, qual ajudante durante um parto), integrando-se no seu fluxo de movimentos. A tipologia desse movimento confunde-se com a observação, que sabemos poder ser a forma mais violenta de intrusão. Mas é a justeza do recuo sereno do realizador no face-a-face com as situações que lhe possibilita matéria para, mais tarde, inventar uma zona em que a realidade e a ficção se confundem: “Documentaries, like theatre pieces, novels or poems are forms of fiction”. Se a escrita (poética do real) de Wiseman é inconfundível, é porque a distância (não falo de método, mas da distância que o precede) entre o seu corpo-olhar e os corpos filmados é única e singular, como uma impressão digital.
Oiça-se uma mestre da “fuga”, Chantal Akerman: “While there’s still time, I would like to make a grand journey across Eastern Europe. To Russia, Poland, Hungary, Czechoslovakia, the former East Germany, and back to Belgium. I’d like to shoot everything. Everything that moves me…”. Lendo esta passagem, algo fica claro: em D’Est (1993), a alteração da paisagem histórica da Europa do Leste após a queda do muro é apenas a camada superficial que vela uma muito singular qualidade de movimento (da comoção) que perpassa todo o cinema da cineasta. Uma qualidade incomensurável, fundadora de uma escola de cinema para “estrangeiros” em fuga, em funcionamento até aos dias de hoje (sabemos que as melhores escolas não acontecem no espaço, mas sim no tempo). Citando o Francisco, “essa ‘tensão particular entre a proximidade e a distância’ alberga o método fulcral do cinema de Akerman: trata-se de uma relação necessariamente exterior com o mundo, a que se contrapõe, numa dialética imutável, um desejo de interioridade, por vezes até exorbitante”.
Em qualquer filme podemos encontrar o vestígio de uma distância qualquer. Por isso é que filmar ou ver um filme é a mesma coisa: em ambos os casos, é da nossa distância em relação às coisas e à vida que o cinema trata. Tal distância implica uma cumplicidade, um contrato (uma contracção) de movimento entre duas margens. Não é demais repetir: o que verdadeiramente caracteriza o documentário, mais do que qualquer outro género ou forma cinematográfica, é uma ética reveladora da distância a que se está daquilo que é filmado.
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A que estamos ligados? O que nos liga ao mundo? No caso do cinema, o que quer que filmemos, resulte em filme ou não, será sempre uma evidência dessa ligação. Cada imagem revela uma passagem para outro lado, uma forma de acesso ou deslocação a partir do nosso lugar. Um bom filme abre caminho generoso para os outros percorrerem. Quem o filmou, abriu um caminho que precisava percorrer. Filmar é estar ligado às coisas e aos seres: “O laço insensível, imagens mais distantes e mais diferentes, é a tua visão” (Bresson, novamente). Filmar é “ser-com”, é ser o elemento de ligação entre um rosto e uma paisagem, é gestualizar a ligação entre essas imagens.
No livro Naufrágio com Espectador, Hans Blumenberg fala de como, ao longo da história, grandes pensadores se foram socorrendo da metáfora do espectador diante do naufrágio. Foi com Nietzsche que se obliterou por completo a terra firme e mergulhámos em alto mar, perdendo-se irremediavelmente o ponto estável de observação à distância. Foi já com outros filósofos, linguistas e historiadores do séc. XX que, no entendimento de Blumenberg, se foi mais longe: o espectador tardomoderno não se confunde sequer com o pequeno barco instável; já não há barco, há apenas destroços, que ora se afundam, ora flutuam em direcções várias. Ao espectador sobra a hipótese de se agarrar (como? – eis a questão que fica para outra crónica) aos vestígios desse barco. O tacto (e já não a visão) é o sentido que resta e talvez por isso o cineasta tenha sido tantas vezes pensado ao longo do século XX como um historiador-filósofo por excelência.
“O que tens feito?”, “O que fazes no teu trabalho?”, “A tua tese é sobre o quê”, “O teu filme é sobre o quê?”. Fala-me desse naufrágio e dir-me-ás a que distância do mesmo estás, isto é, qual é a tipologia do teu movimento na coreografia de gestos que te interessam conhecer e a qualidade da tua relação com as coisas que queres tocar. Faz um documentário e saberei quem és.
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(ao José Manuel Costa, ao Afonso e ao Francisco)