Numa cena de Secrets & Lies (Segredos e Mentiras, 1996), de Mike Leigh, a família reunida debate-se com a revelação dos segredos, mentiras e histórias que, ao longo das suas vidas, vinham carregando e ocultando. Maurice, enquanto pilar que procura sustentar a comunicação e o relacionamento familiar, desabafa: “Estamos todos a sofrer”. E questiona: “Porque não havemos de partilhar a dor?”. Ora, falar de Mike Leigh é falar de realismo britânico. Realismo britânico é sinónimo de Ken Loach, o aclamado cineasta que, aos 87 anos, esteve em Cannes a estrear o seu mais recente filme, The Old Oak (O Pub The Old Oak, 2023).
Seguindo-se a I, Daniel Blake (Eu, Daniel Blake, 2016) e Sorry We Missed You (Passámos por Cá, 2019), The Old Oak completa a trilogia cujos cenários se centram no nordeste de Inglaterra. Depois da frustração de Daniel Blake a lidar com as burocracias institucionais inerentes à candidatura a benefícios sociais e ao subsídio de invalidez, e da revolta de Ricky Turner (e da sua família) em enfrentar a precariedade laboral na “nova economia”, Ken Loach prossegue o seu percurso mantendo a tónica política e a crítica social que, sob o olhar atento e cuidado que urge enquanto ato de resistência, expõe e reflete sobre o capitalismo, o universo da classe operária e as desigualdades e injustiças intrínsecas.
Loach mostra-nos a forma como a população contribui para olear a máquina e disseminar os mesmíssimos ouvidos discursos, e por outro, expõe a origem e as causas por detrás da construção de juízos de valor deste género.
Estamos em 2016. TJ é proprietário de Old Oak, o resistente pub localizado em County Durham, apresentado como o único espaço público no qual a comunidade local continua a poder reunir-se. Comunidade, essa, composta por ex-mineiros que em meados da década de 1980, sob o governo de Margaret Thatcher, assistiu ao encerramento das minas, à consequente perda dos seus postos de trabalho e às posteriores evidentes dificuldades financeiras. Revoltada, destinada à miséria e ausente de perspetivas futuras, a povoação vê chegar a County Durham uma comunidade de refugiados sírios, fugidos da guerra, que procuram um abrigo, uma casa onde possam chamar de “lar”. A tensão, a desconfiança, a intolerância e a ameaça sentidas pela comunidade de ex-mineiros em relação à comunidade síria – sustentadas pela xenofobia e pelo populismo – ganham de imediato forma, impedindo que seja estabelecida uma ligação entre ambas. Pelo contrário, erguem-se muros, metaforicamente falando, assentes na rejeição e na exclusão decorrentes da representação e enquadramento que os ex-mineiros construíram em relação aos refugiados, atribuindo-lhes características e traços negativos, e validando a sua visão do mundo com base na sua perspetiva da realidade.
No autocarro que transporta a comunidade síria está Yara, com quem TJ constrói uma relação de amizade. A partir dos diálogos entre o proprietário e a jovem assistimos ao crescimento das duas personagens – individualmente e coletivamente -, à construção de um espaço de partilha íntima, à confissão de histórias que ambos, em contextos diferentes, vivenciaram, e às lutas diárias que diariamente travam. “Quando comem em conjunto, permanecem juntos”, lê-se nas paredes do pub, entre registos fotográficos emoldurados e afixados que recordam, nostalgicamente, o lema dos mineiros. Este senso de comunidade, que floresceu e se estabeleceu no pub, mas que acabou por se esbater, procura ser recuperado: por um lado, por aqueles que ambicionam vê-lo como um espaço de envolvimento e associação social e cultural, por outro, pelos seus clientes de sempre, que procuram estreitar a ligação entre britânicos e fechar as portas à inclusão e aceitação de outsiders.
É interessante pensar no modo como apesar das comunidades se diferenciarem na sua existência, se assemelham – não mensurando – na sua vulnerabilidade e nos seus receios: os refugiados sírios foram fustigados pela guerra e os ex-mineiros britânicos foram abandonados pelo Estado. Sermos capazes de pensar criticamente e não esquecermos que o medo conduz à submissão, à obediência e à opressão é um princípio. Não deveria o desespero, a contestação, a frustração e a angústia da povoação de County Durham, projetadas sobre a frágil comunidade síria, serem direcionados para o Estado, que deveria atuar no sentido de responder às necessidades dos cidadãos? Neste sentido, por um lado, Loach mostra-nos a forma como a população contribui para olear a máquina e disseminar os mesmíssimos ouvidos discursos, e por outro, expõe a origem e as causas por detrás da construção de juízos de valor deste género.
A linguagem fílmica – despojada e crua – a que o cineasta britânico nos habitou empurra-nos, comummente, para uma impressão palpável de uma qualquer inquietação. Em The Old Oak, além do desassossego, a intenção seria despertar esperança, compaixão e solidariedade, sobretudo presentes no desfecho do filme. Talvez tenha sido esta visão conscientemente mais positiva que me fez sentir falta de um tanto ou quanto de autenticidade. Autenticidade, essa, que conjuntamente com a profundidade, me pareceram, igualmente, ausente em alguns momentos, dada a complexidade da conjuntura histórica, da narrativa e das personagens. No mais, a forma delicada e incisiva como Loach conjuga as causas sociais, políticas e económicas com o humanismo e as relações humanas é de uma mestria que se encontra ao alcance de poucos.
Para terminar, regresso à entrevista do The Guardian, em 2016, a Ken Loach e ao guionista Paul Laverty, a propósito do lançamento de I, Daniel Blake, em que estes recordaram um conjunto de histórias sobre as pessoas que conheceram quando realizaram a sua pesquisa de campo para a realização do filme: “O jovem sem nada no frigorífico e que não se alimentava corretamente há três dias; a mulher com vergonha de frequentar bancos alimentares; o homem que, após lhe ter sido dito para fazer uma fila e entrar num turno às 5h30, é mandado para casa uma hora depois porque não seria necessário” (…) “Essa humilhação constante para sobreviver. Se não estás zangado com isso, que tipo de pessoa és tu?” Retomando à pergunta com a qual se iniciou a crítica, “porque não havemos de partilhar a dor?” e concluindo com uma resposta simples: partilhemos. Na vida, no cinema, na vida dentro do cinema e no cinema dentro da vida. O cinema é, por diversas vezes, usado para alienar, mas uma das suas principais virtudes é ser capaz de possibilitar precisamente o contrário: educar e pensar. Assim intervimos, assim resistimos.
★★★☆☆