Além da proeza técnica, o que ressoa em Rope (A Corda, 1948) de Alfred Hitchcock é a aspiração a um lugar maior por parte dos criminosos Brandon e Phillip por via da prática do chamado crime perfeito, apenas ao alcance de uns quantos übermenschen. A reflexão filosófica em torno das intenções de um assassino pode ter a finalidade de contornar o lugar comum que vê nele um sádico ou um doente irreprimível. Este filme de François Leterrier, Un roi sans divertissement (1963), talvez caiba um pouco nessa categoria de thriller metafísico que, paralelamente ao dispositivo de descoberta do culpado pelo desaparecimento de uma jovem, nos leva precisamente por um caminho que procura perceber qual o “papel” que o sangue pode desempenhar nas frias paisagens enevoadas de uma aldeia francesa do século XIX. Digo-o assim, com um pé na metáfora e outra na literalidade, pois que para a discussão não é despicienda a questão da cor como veremos adiante.

O filme adapta um romance homónimo de 1947, do conhecido escritor francês Jean Giono, também este responsável pelo argumento. François Leterrier, que ficou conhecido por protagonizar Un condamné à mort s’est échappé (Fugiu Um Condenado à Morte, 1956) de Robert Bresson, mas que teve uma carreira bastante discreta na realização, acabou por assumir a direção do projecto. O casting é uma peça importante deste jogo de xadrez: Charles Vanel, caução do cinema francês, faz de procurador que resolve chamar o capitão Langlois, personagem principal, para investigar o referido caso (Claude Giraud começava aqui a sua carreira); de referir ainda a presença de Albert Rémy, como presidente da câmara, e Colette Renard, Clara, dona da estalagem onde se hospeda o capitão. A solidez, por vezes o peso destas presenças, ajuda a veicular a dimensão mais literária da história. No bom sentido, isto é, as personagens têm corpo e gravidade num espaço muito etéreo.
Como se ouvirá antes, pela boca do procurador: ele mata pelo sangue. O sangue é a cor, num filme descarnado. Uma tinta no tédio da neve e da existência pacata.
Não é apenas a neve, mas é também a neve. No início vemos a chegada do capitão a materializar-se, lentamente e muito ao longe, em planos branquíssimos, ouvindo as palavras doces de “Pourquoi faut-il que les hommes s’ennuient”, música que Jacques Brel compôs e interpretou de propósito para o filme. O ambiente nunca vai deixar de ser o western [há aliás, quem tenha visto aqui, e bem, Track of the Cat (O Rasto da Pantera, 1954) de William Wellman, pela importância da besta escondida como símbolo, pela caçada, pela perseguição como sinal de um mal-estar interior]. Os interiores das casas, mal iluminados, os castanhos e cinzentos da fotografia de Jean Badal, que servem, evidentemente, como marca de uma ideia de ennui, mas que acaba por também nos fazer pensar num certo terror vitoriano [os conhecidos filmes da Hammer, mas também The Devils (Os Diabos, 1971); ou puxando o fio à meada, ambientes entretanto filosoficamente carregados de matéria e angústia, como o mundo de Béla Tarr ou mesmo os primeiros filmes de Albert Serra. Já que estou com as mãos na massa, e para continuar a desfiar genealogias imaginárias que, como já se reparou, não são nada francesas, juntemos ainda The Wicker Man (O Sacrifício, 1973) e Fargo (1996) dos irmãos Coen.
O mistério que vem da heterogeneidade destes pontos de reconhecimento, mais do que propriamente influências ou filiações, é algo que permite ajudar a desfazer algo desse leveza estranha que paira num filme tão denso. Na palavra dialogada de uma certa “tendência” do cinema francês, cai a ideia de atmosfera paranoica de um terror folk; nos enquadramentos encharcados de personagens cheias de vento e uivares da neve, há um destaque para os lentos percursos no espaço. O território é inóspito, mentalmente propício à queda. Do western já se falou. Na vinda a cavalo no horizonte, mas também, perto do final, na cena da execução encenada como um falso duelo entre o assassino e o caçador, um cerimonial trágico que mais parece a passagem de um testemunho de um tédio existencial. Momentos antes, numa conversa de sombras, paredes negríssimas, o capitão perguntará ao assassino:
Capitão: esta é a tua casa? / Assassino: sim. / Capitão: a mulher? / Assassino: a minha mulher. / Capitão: a pequena? / Assassino: a minha filha. (e apontando depois um retrato). O meu pai. / Capitão: isso não é suficiente para si? / Assassino: e para si, seria suficiente?
Esta resposta final em forma de pergunta é o centro do argumento de Jean Giono. Poderia a felicidade ser suficiente para se ser feliz? Nos instantes finais, nós e o protagonista somos insuflados com esta inquietação. Aí se dá um dos momentos mais difíceis de Un roi sans divertissement: o capitão pede a uma habitante que tinha intenções de matar se lhe dá um cisne, mas se antes lhe pode cortar a cabeça. Vemos então essa derradeira pintura sanguínea, o assassino pintor a manchar a neve de sangue, uma inscrição artística, última etapa de um bestiário que já tinha tido outros momentos, como os cortes num porco no curral, o enforcar de um lobo selvagem e uma dança de um pássaro morto (ou mesmo o local-ninho onde se irão encontrar as vítimas do assassino). Como se ouvirá antes, pela boca do procurador: ele mata pelo sangue. O sangue é a cor, num filme descarnado. Uma tinta no tédio da neve e da existência pacata. Mas não basta uma casa, uma mulher, um filho?
Un roi sans divertissement é um filme atmosférico, ora procedimental, ora trágico, que vale a pena redescobrir. Até para compreender essa paradoxo nos termos, como dizia o saudoso Manuel Cintra Ferreira, que era o cinema francês de terror.