“The past is a foreign country: they do things differently there.” A inesquecível primeira frase do romance de L. P. Hartley, The Go-Between, é transportada para May December (May December: Segredos de Um Escândalo, 2023) por via da música composta por Michel Legrand para o filme de Joseph Losey. May December é todo feito de passado e de representações do passado, com testemunhas nem sempre credíveis e memórias dúbias. Será realmente possível voltar ao passado, conhecê-lo intimamente?
Essa é uma das missões de Elizabeth (Natalie Portman), uma actriz que viaja para Savannah para conhecer Gracie Atherton (Julianne Moore), a personagem que ela irá encarnar no seu próximo filme. Ela convive com Gracie, vai-se aproximando da sua família, vai estudando o seu modo de falar, de vestir, de maquilhar-se, vai conduzindo entrevistas em modo Citizen Kane. Mas o seu objecto de estudo é frustrante, fugidio, nem sempre atingível. Gracie é esquiva, ora convidando Elizabeth para o seu mundo, revelando o seu passado e o seu modo de ser, ora construindo uma imagem que corresponde, não à realidade, mas à forma como quer ser retratada no cinema. Mas será que a própria Gracie sabe quem é?
Daquele plano na loja em que Gracie se desdobra em espelho, qual delas é a verdadeira? Ela tão depressa surge como uma adolescente caprichosa, uma criança vulnerável (soçobrando em choro porque uma cliente cancelou uma encomenda de um bolo), como de outras vezes se comporta como uma Godzilla da emoção (“Insecure people are very dangerous, aren’t they? I’m secure. Make sure you put that in there.”), como mulher forte que pega numa arma para ir à caça (literal e metaforicamente). Mas talvez estas incongruências sirvam bem a Elizabeth, que procura sempre explorar a zona moral cinzenta das suas personagens, sendo esse para ela o verdadeiro desafio como actriz.
Estas dissonâncias existem no filme, desde logo, através da música, em particular no cómico de uma cena inicial em que o som dramático termina num zoom de Gracie que abre a porta do frigorífico e duvida que haja cachorros-quentes em número suficiente para o churrasco. Segurem-se, porque vamos entrar em território soap! E ponha-se a milhas quem não tenha sentido de humor! Pensem nisto: Michel Legrand misturado com telefilme americano das tardes da TVI, dos tempos em que o logo da estação era ainda uma composição estilizada da cruz de Cristo (género telefílmico que, aliás, é directamente citado como material de pesquisa de Elizabeth e esteticamente omnipresente no soft focus de algumas imagens e em paisagens pirosas que podiam pertencer a um videoclip da década de 90).
Como poderia um actor fazer uma aproximação à pessoa de Elizabeth? O verdadeiro desafio é a “pessoa má”, interpretar a “pessoa má” – ser a “pessoa má”? Elizabeth é um enigma, como é um enigma o passado de Gracie e Joe, sobre o qual toda a gente tem uma opinião, mas cuja verdade está vedada.
O tal passado de Gracie, a tal história que vai ser objecto do filme do qual Elizabeth vai ser protagonista, não podia, na verdade, ser mais soap – a história de um romance entre uma mulher de 36 anos e um adolescente de 13 anos, Joe Yoo (Charles Melton), que fez as primeiras páginas dos tablóides e que levou Gracie à prisão. Mas, passados vários anos, Gracie e Joe continuam casados, com dois filhos prestes a irem para a faculdade, felizes (ou não?), eternamente apaixonados (ou não?) e bem integrados na sua comunidade (ou não?). Olhando apenas para a superfície, tudo aqui corresponde ao ideal americano – a casa, a família, a mãe que é exímia na cozinha e faz bolos, o pai que domina o barbecue. O olhar mais atento verá, no entanto, o boy meets girl distorcido (sim, a mãe preparou umas codornizes excelentes para o jantar, mas também foi ela própria e caçá-las).
Joe, que nunca teve oportunidade de crescer verdadeiramente, passando directamente da adolescência para as funções de chefe de família, comporta-se a maior parte do tempo como um irmão mais velho, responsável por tomar conta dos seus irmãos na ausência dos pais. Mas os tais irmãos mais novos não são, como seria possível pensar, os seus filhos (com quem, aliás, tem uma relação muito de igual para igual), mas antes Gracie, com quem ele revela um enorme cuidado paternal, acalmando as suas birras e crises emocionais, paciente perante os seus caprichos. Por isso, também os papéis familiares destes dois se confundem, sendo apenas com a chegada de Elizabeth que Joe começa a questionar o seu papel de pai e marido, apercebendo-se de que assumiu a responsabilidade de decisões para as quais não tinha ainda a idade e maturidade suficientes. Esta fatia de juventude que lhe foi subtraída torna-o, por vezes, numa criança grande demasiado adulta, uma figura estranha na sua ingenuidade, exposto à crueldade de Elizabeth quando se deixa seduzir por ela.
Há uma certa irregularidade, uma certa obscenidade nestas relações (sendo ilustrativo o momento em que os filhos e os netos de Gracie se encontram no restaurante no dia da festa de finalistas, todos eles da mesma idade), mas que é a obscenidade própria da Natureza, das borboletas criadas por Joe e que vemos em grande plano no genérico inicial, da transformação de larva em explosão colorida. É a obscenidade das cores, das formas, dos métodos da Natureza – uma orquídea, uma borboleta, um pássaro, os métodos de atrair e fecundar. É a atmosfera kinky de Elizabeth a percorrer o corredor da pet store e o corte imediatamente a seguir para as larvas que se envolvem nas folhas da planta.
Elizabeth é uma personagem difícil de descodificar, que surge logo nas cenas iniciais como alguém que está a tentar esconder a sua identidade, de cabelo a ocultar a face, chapéu e óculos escuros (remetendo para o filme de Billy Wilder, uma Fedora, tentando esconder a falsidade da sua verdadeira identidade), mas que vai deixando perceber que há algo de cruel por debaixo daquele verniz de bondade, sempre de voz suave. E Gracie parece estar tão concentrada em si própria que não presta sequer atenção à transformação que se vai operando progressivamente em Elizabeth, na roupa, no penteado, na voz. Aliás, é Gracie que se predispõe a mostrar a Elizabeth a forma certa de maquilhar-se para se tornar mais parecida com ela, aparentemente alheia ao facto de que Elizabeth já está a interpretar o papel de Gracie (atente-se como, durante a espera na loja, Elizabeth vai mimetizando os gestos de Gracie enquanto se olha ao espelho).
Gracie e Elizabeth podem ser personagens que existem em 2015, mas elas vêm do thriller camp da década de 90, de filmes como Single, White, Female (Jovem Procura Companheira, 1992) ou The Hand That Rocks the Cradle (A Mão Que Embala o Berço, 1992). O espectador é constantemente chamado a tomar parte desta intimidade entre Gracie e Elizabeth, em mais um dos tantos espelhos que vão surgindo ao longo do filme, um espelho que não existe e que fita directamente a câmara.
A única pessoa que parece estar perto de conseguir um estudo satisfatório sobre Elizabeth é Gracie, porque existe uma aproximação natural entre as duas, um insinuar de que elas não são mais do que duas faces da mesma pessoa, não apenas nos espelhos que se reproduzem e que as colocam lado a lado e fundem, mas na constatação de Gracie logo no primeiro encontro, surpreendida por serem da mesma altura.
– I thought you were taller. You look taller on television, but we’re basically the same size.
– We’re basically the same.
Como poderia um actor fazer uma aproximação à pessoa de Elizabeth, estudá-la, caso pretendesse vir a interpretá-la num filme? É a própria Elizabeth que diz que prefere as personagens de difícil acesso, as personagens que vivem nas zonas morais cinzentas. O verdadeiro desafio é a “pessoa má”, interpretar a “pessoa má” – ser a “pessoa má”? Elizabeth é um enigma, como é um enigma o passado de Gracie e Joe, sobre o qual toda a gente tem uma opinião, mas cuja verdade está vedada a Elizabeth e ao espectador. O romance dos dois não foi certamente convencional, mas Joe não era também um adolescente convencional, nem é um adulto convencional. Joe passou da infância para a idade adulta e Gracie terá ficado numa adolescência eterna.
A dada altura Elizabeth refere que a mãe, uma académica, publicou um livro sobre “Relativismo Endémico”, uma referência que não é inocente. Et pourtant… o amor tem em geral uma simplicidade desconcertante, que tende a desmerecer todas as outras condicionantes. É essa simplicidade que está na declaração de amor de Joe – “Peace is sitting on a lake in the summertime. Peace is a Coca-Cola on a hot summer day. Peace is being with you.”
Rapidamente se percebe que o method acting de Elizabeth deixa as suas vítimas. As fronteiras da representação podem cair, se isso permitir alcançar uma representação de nível superior. Numa cena essencial na descoberta do “mistério Elizabeth”, na masterclass que tem lugar na escola [cena que faz um curioso paralelo com um outro filme de 2023, o Tár (2022) de Todd Field], a actriz não foge à questão algo infantil de um dos alunos, que pergunta como é filmar cenas de sexo, relatando a sua experiência de modo tão envolvente que cala os risinhos, mas deixa a dúvida quanto aos seus métodos. “You give into the rhythm, you know, every time. Tension never breaks.”
O que se passa nesta cena vai moldar aquela que será a percepção da cena final, em que Elizabeth faz questão de repetir numerosas vezes uma cena de sedução com um adolescente, levando também a repensar as suas boas intenções ou profissionalismo quando dava a opinião sobre o casting do actor para o papel de Joe, afirmando que seria necessário encontrar um adolescente mais sexy (que correspondesse a fantasias criadas na pet store?). É o reiterar de um desconforto que é constante na sua personagem e que veda qualquer tipo de identificação com ela.
É o desconforto bom de um bom filme.
★★★★☆