Adaptar a história de Napoleão Bonaparte ao ecrã grande é uma das ambições mais antigas e duradouras da sétima arte, um projecto complexo que tem encontrado dificuldades variadas em recriar algo que se aproxime da magnitude do seu protagonista – pelo menos, talvez desde a versão de Abel Gance, Napoléon (1927), a pouco de celebrar os cem anos da sua estreia. É igualmente conhecido que este foi um dos projectos inacabados de Kubrick, que apesar de durante vários anos a estudar a possibilidade de filmar esta história (tendo inclusive um argumento pronto), nunca conseguiu reunir as condições para fazer justiça ao que queria filmar. A história de Napoleão apresenta desde logo uma questão: por um lado, a amplitude épica das batalhas em que esteve envolvido, e as alterações políticas que viveu, como protagonista; por outro, um lado pessoal e íntimo igualmente desafiante, desde a sua ascensão (e queda) meteórica, à sua relação com as pessoas mais próximas de si, obviamente com destaque para a sua relação com Josephine. Como conjugar estes dois aspectos de escala oposta, e será que Ridley Scott o conseguiria fazer? Ou estaria sequer interessado em encontrar o equilíbrio entre estes dois elementos?

Não é surpreendente que Ridley Scott consiga recriar de forma eficaz, e por vezes até empolgante, as cenas militares. Afinal uma das marcas do seu cinema é a habilidade em orquestrar as diferentes partes de sequências de acção de larga escala de forma a atribuir-lhes uma sensação de importância amplificada; por outro lado, não é surpreendente que nas cenas de menor escala, sobre o desenvolvimento das personagens e particularmente quando tem de reduzir a acção à intimidade e às inquietações, e especialmente quando traduzido através de diálogos, o resultado seja uma enorme distração em relação às intenções do filme de retrato fidedigno e de empatia para com o seu protagonista, e por vezes até confrangedor, que lembra a comédia não intencional de House of Gucci (Casa Gucci, 2021). Aqui, perante a importância de revelar as motivações, dúvidas e angústias de Napoleão, parece mesmo ser uma evidência trágica a incapacidade do filme em não caricaturar as situações de tumultos interiores, sem qualquer laivo de retrato profundo. Ainda por cima porque, pelo menos durante alguns momentos (mesmo que breves, considerando a longa duração do filme), parece haver algum interesse em mostrar essas fragilidades e dúvidas de Napoleão como que ligados a uma certa fuga para a frente, a uma vingança contra um destino que não aceita, e não apenas em mostrar a “espectacularidade” dos combates como reflexo da turbulência do seu protagonista – e por isso seja talvez ainda mais decepcionante quando abandona essa intenção.
Ao transformar Napoleão numa espécie de militar bruto sem grande pensamento, Ridley Scott é obviamente livre de apresentar a versão que quiser, independente da fidelidade à história factual, mas acaba por infantilizar a personagem, e isso também é infantilizar o espectador.
Considere-se a esse propósito, por exemplo, duas cenas iniciais: a batalha pelo porto de Toulon, em que a ambição a qualquer custo de Napoleão é evidenciada, mas também o seu engenho e inteligência – a sequência começa em ponto pequeno, com Napoleão disfarçado em missão de reconhecimento, usa o silêncio e escuridão da noite para evidenciar o factor determinante da surpresa, vai progressivamente alargando o foco sobre a batalha com as lutas corpo a corpo e acaba com as imagens dos navios sob fogo, chegando à escala maior, num movimento inteligível e esclarecido. Em paralelo a este momento bélico, também os primeiro encontros de Napoleão com Josephine são interessantes, pela forma como sinalizam de forma subtil (dentro da escala do filme) a posição social caída em desgraça (pelo cabelo curto e pela forma como se movimenta na sala) dela, e ao mesmo tempo o nervosismo tímido de Napoleão, um momento de pausa e fragilidade no filme, características que serão abandonadas a partir daí.
Com a aceleração narrativa (compreensível dada a extensão da história, mas executada de forma atabalhoada) qualquer complexidade emocional é preterida a favor de simplificar o avançar do argumento, e desde cedo é impossível perceber as motivações, as inseguranças e convicções nos avanços de Napoleão: pouco ficamos a saber sobre o homem e as suas relações, ficando apenas a silhueta perpetuada pelos mitos da história. Compare-se as duas cenas iniciais referidas com a assinatura do divórcio entre Napoleão e Josephine, com ele a “chorar” e ela a rir-se, que parece uma cena constrangedora de bloopers em que estamos à espera que os actores se comecem a rir e alguém diga corta. Apesar da execução focada em realçar o espectacular das sequências de acção, como na da batalha de Austerlitz, além de poucos detalhes estas começam a parecer iguais a outras tantas sequências de acção da filmografia do próprio Scott, desde Gladiator (Gladiador, 2000) ou Kingdom of Heaven (Reino dos Céus, 2005), de corpos mutilados por uma causa pouco justificada ou explicada. Considere-se ainda a sequência sobre a invasão à Rússia: uma catástrofe, de perdas e sofrimento monumental em condições miseráveis, o maior erro de Bonaparte mas cuja tragédia o filme apenas consegue transmitir através de uma legenda (já que não o consegue visualmente) a dar conta dos números de mortos, como se fosse apenas resultado de uma mudança do tempo.
Ridley Scott parece pouco interessado em aproximar-se de um retrato profundo de um homem complexo, mais entusiasmado em filmar a brutalidade das cenas de acção: o filme não tem tempo para pausar, é preciso dar palco às batalhas e avançar a história. Ao transformar Napoleão numa espécie de militar bruto sem grande pensamento, Ridley Scott é obviamente livre de apresentar a versão que quiser, independente da fidelidade à história factual, mas acaba por infantilizar a personagem, e isso também é infantilizar o espectador, porque julga que este não precisa de saber/ver mais do que é aqui exibido. Resta-nos suspirar por uma outra versão desta história que não este épico de mero entretenimento para ser consumido, que apesar das suas explosões e rugidos, desliza para o superficial e leviano.
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