Numa das primeiras linhas de diálogo deste filme tardio de Hiroshi Shimizu (seria um dos seus últimos), o genro do professor Onuma dá-lhe os parabéns pela publicação da sua investigação de doutoramento sobre botânica, acrescentando que os escritos sobre plantas alpinas têm o seu lirismo. Esta abertura sugere um imbricamento entre o discurso científico e o discurso poético, sublinhando os seus pontos de encontro. Talvez se trate de uma referência subliminar ao pensamento filosófico que Goethe desenvolveu a partir do estudo da morfologia das plantas, mas o certo é que Kiri no oto (O Som do Nevoeiro, 1956) rapidamente se liberta do universo da botânica, para se instalar nos domínios da astronomia. Será a partir das particularidades do equinócio de Outono que todo o filme se construirá, assumindo – ao limite – a metáfora celeste como lei narrativa. Em torno de uma cabana nas montanhas, feita astro solar, uma série de personagens rodopiam a intervalos fixos de três anos: 1947 – 1950 – 1953 – 1956.

O equinócio de setembro acontece, por norma, no dia 23 e marca o fim do Verão e o início do Outono, correspondendo por isso ao segundo dia do ano em que o período de luz e de sombra são idênticos (metáfora psicológica). O sol alinha-se com o equador celeste e o alvorecer e entardecer correspondem, precisamente, aos pontos cardeais, descrevendo-se assim um arco no céu que percorre toda a amplitude do horizonte (metáfora formal sobre o travelling panorâmico). Na relação com o satélite terrestre, é também neste momento que a sombra da Lua se apresenta vertical face à Terra, isto porque é neste dia que coincide o ângulo de rotação da Terra com a inclinação da elipse obtusa em que o sol circula (metáfora sobre a contemplação dos rostos). É, portanto, um ponto de equilíbrio, um momento em que tudo está, por instantes, alinhado segundo regra e esquadro, em perfeita proporção. Mas, pela sua própria natureza, é um momento de efémera harmonia. É o prenúncio do desequilíbrio, depois da ressaca do Verão vem o frio do Inverno (no hemisfério norte), com as suas noites demasiado longas e os seus dias demasiado curtos.
Hiroshi Shimizu encena O Som do Nevoeiro em quatro episódios que acontecem sempre no mesmo dia, o fatídico 23 de setembro, ponto de inversão das estações, o início da decadência das coisas (da desfolhagem, da hibernação, da morte). Toda a ação acontece no espaço da referida cabana de montanha e no tempo desse mesmo dia do ano. Fixado o sítio e a ocasião, tudo se comporá enquanto jogo de variações (como nas estações do ano) e de perdas (aquilo que fica irremediavelmente para trás, aquilo que na Primavera já não voltará a despontar). Ao longo dos quatro episódios regressa-se às mesmas situações: o banho de imersão ao ar livre (primeiro ele, depois ela, depois o jovem casal, pudico, que só lava os pés), o mesmo travelling lateral que parte do interior da cabana e termina diante do caminho das acácias (o primeiro que anuncia o fim da relação, o segundo que marca a impossibilidade do seu reatamento), o mesmo fogareiro onde se assa o peixe do rio e se aquece o saké e, claro, a recorrência das “cavalitas” (o genro carrega a filha do professor às costas quando atravessam o rio, o pai carrega a filha quando esta está febril, o taxista carrega a geisha velha e alcoolizada e, por fim, a neta carrega a avó que não é capaz de subir as escadas por causa da artrite no joelho).
O que de mais belo se encontra em O Som do Nevoeiro é um pequeno (e sublime) filme sem diálogos composto por todos os momentos de silêncio onde, invariavelmente, se encontram copas de árvores ensombradas pelos picos montanhosos e rostos que trocam olhares mudos por entre tragos de saké.
A cada repetição, a câmara de Shimizu recorda a monumentalidade da paisagem, com a opulência da floresta e a violência daqueles cumes rochosos, como quem coloca o humano na sua escala, com a pequenez dos seus dramas românticos. Porém, há uma sumptuosidade na sua maneira de filmar que parece olhar para a paisagem outonal com o mesmo maravilhamento com que filma um rosto triste. Talvez aí esteja aquilo que de mais belo se encontra em O Som do Nevoeiro, um pequeno (e sublime) filme sem diálogos composto por todos os momentos de silêncio onde, invariavelmente, se encontram copas de árvores ensombradas pelos picos montanhosos e rostos que trocam olhares mudos por entre tragos de saké. A intensidade desses grandes planos dos rostos de Ken Uehara (o professor Onuma) e Michiyo Kogure (a Tsuruko), onde já não há nada a dizer, onde resta apenas a contemplação resignada do outro, dizia eu, essa intensidade é o que de mais moderno se encontra na mise en scène clássica de Shimizu. Esses instantes de pausa são, eles mesmos, equinócios dentro do filme, sequências fotogramáticas de alinhamento geométrico onde contentamento e angústia se equilibram em perfeita proporção. E o que dizer da magistralidade de Shimizu no segundo equinócio (leia-se, no episódio de 1950) em que os corpos celestes do professor Onuma e da geisha Tsuruko se eclipsam constantemente num jogo de gato e rato cheio de azares e desoladoras coincidências? Dentro da repetição o acaso celeste, o eclipse como ilusão do destino.
Mas se o filme se faz de repetições cíclicas, faz-se também de fugas, ora para a morte, ora para a vida. No início do filme, Tsuruko refere que aquela floresta é um bom sítio para morrer. Nem de propósito, é isso que acontece ao casal-espelho de Onuma/Tsuruko (estranhíssimas personagens essas que aparecem como assombrações de um universo paralelo – mais ainda quando a atriz parece ser a mesma que interpreta a filha de Onuma em adulta; será?). Morrem misteriosamente nessa floresta (por essa floresta?), num off totalmente desdramatizado. Esse casal surge, afinal, como possibilidade, como tentativa de fugir ao destino (romper com a família, abandonar os filhos e a esposa por amor) e o seu desfecho está, por isso mesmo, já escrito a tragédia (acidente, homicídio, suicídio?). A morte deles é a alternativa ao desamparo de uma paixão desencontrada – morrer juntos ou viver separados.
E tudo culmina no plano final do adulto guiado pela criança, no meio do nevoeiro, em direção à campa de Tsuruko, do outro lado da lagoa. O final rima com o início: no primeiro plano Onuma cruza o rio, no último retoma o caminho e cruza, de novo, as águas (desta feita, talvez, do rio Estige) – dois planos sequência em travelling lateral: da esquerda para a direita, o primeiro, da direita para a esquerda, o último. Apesar da ciclicidade estrutural e narrativa de O Som do Nevoeiro, Shimizu parece acreditar – com o plano de abertura e de fecho que encerram o filme numa total circularidade – na máxima heraclitiana da univocidade do tempo: nenhum homem se pode banhar duas vezes no mesmo rio. O filme encerra-se num círculo de meras aparências, porque já não se pode voltar atrás: tudo conspira contra Onuma, tudo surge como possibilidade de retorno, mas as alternativas são uma farsa, uma sugestão em potência, um equinócio passageiro.