“Não é apenas: o que fazemos? É necessário também formular a pergunta: onde estamos (se é que estamos em algum lugar)?” (Winnicott). No seguimento: o que revelam sobre o nosso modo de ver os lugares onde filmámos, filmamos e iremos filmar? O que é que nesses locais/sítios parece dialogar profundamente connosco, como se filmar ali fosse um desígnio (não confundir com destino), não um simples acaso? Dito de outro modo: e se os lugares onde escolhemos filmar forem um vestígio da experiência contínua de fragmentação da nossa vida, mas, simultaneamente, uma zona de (re)conhecimento da densidade dos diversos tempos (passados, futuros) que constituem a nossa “vidência”, bem para além da noção de identidade?
Talvez se possa dizer que ver filmes já é filmar (sem uma câmara). Pegando numa ideia de Barthes, para quem a leitura já era escrita, diria que a prova de que há um cineasta em potência em cada um de nós é que há filmes que nos desejam. Essa prova manifesta-se: é a vontade de filmar. E embora ver filmes seja uma forma de nos apercebermos dos lugares que nos desejam – e por isso certos cineastas nos dizem mais que outros, pois filmam (n)os lugares que também foram, são e serão os nossos –, é no acto de filmar que experimentamos intensamente aquilo que Winnicott designava como uma “terceira área do viver humano, uma área que não se encontra dentro do indivíduo, nem fora, no mundo da realidade compartilhada”. Para Winnicott, a experiência desse “espaço intermédio” em que a criança aprende a separar-se do Eu depende da actividade de brincar; e é a configuração dessa brincadeira como passagem ao acto que distingue o simples ver de um ver que já é fazer. Filmar como forma de brincar, refazendo e reconfigurando o possível – as condições de possibilidade de um novo mundo.
Mas onde? O que nos dizem os lugares onde escolhemos filmar e onde a nossa passagem, mais do que uma breve presença, se integra no movimento geral das coisas?
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As melhores filmagens, terminem ou não em filmes, são aquelas que, através de uma ligação ao lugar que a câmara possibilita, nos transportam para os momentos solitários de (re)conhecimento de um mundo intermédio, algures entre a interioridade pura e a exterioridade absoluta. É por isso que o “onde”, ainda mais que o “porquê” de filmarmos ou o “quê”, nos revela (velando) o lugar onde sempre quisemos estar, na melhor das hipóteses, ou o lugar de onde sempre quisemos sair, na pior. O cinema, portanto, enquanto conjunto de práticas (filmagens, montagem) do espaço, onde, tal como num primeiro dia de aulas, numa festa de anos da infância, num funeral de um ente querido, uma linha do tempo se revela como um movimento circular de momentos mudos. Filmando, inventamos zonas intermédias em que a mudez se faz gesto, mapeamos um trajecto em espiral (para fora, nos casos mais felizes; para dentro, nos mais trágicos) que evidencia as condições da prisão que vamos habitando, seja numa alegre arte de ficar, que só os mais persistentes praticam, seja como forma de iluminar as assombrosas linhas de fugas, que só os mais corajosos percorrem.
Cartografar o mundo com uma câmara de filmar é algo que todos os amigos deviam um dia experimentar fazer.
Eis o cinema, então, como um lugar de cuidados continuados face à inevitável condição paliativa da existência: filmes e filmagens em lugares que nos remetem para os espaços potenciais da infância, em que percebemos que o nosso vínculo ao mundo começou (e recomeça continuamente) como uma inevitável separação da mãe. Aqui talvez se possa vislumbrar o porquê da grandeza – ou a grandeza do “porquê” – da obra “sem casa” de Akerman, ensombrada pela “mãe”, mas também pela cultura de um povo nómada que da Terra se apropriou violentamente. O cinema, como os melhores espaços da infância, é espaço intermédio em que aprendemos a entrar no “aberto” sob o signo da amizade.
Depois de descobrir o “quê” com o Afonso, descobri o “onde” com o João. Há dez anos, antes de ele ir estudar para fora do país (sabíamos que não voltaria durante muitos anos e até hoje não voltou), a estratégia que encontrámos para nos despedirmos de uma etapa fundadora da nossa amizade, vivida em comunhão com a cidade, foi filmar certos lugares – o cinema como “festa de despedida”, se quisermos. Filmámos cinco lugares que, ao João, enquanto arquitecto, lhe interessava registar. Nesses lugares, encontro hoje um desejo de espaço particular, uma “terceira área” de convivência, em que o meu olhar e o dele sobre um mesmo objecto (a amizade e a cidade) se confundem, um espaço-tempo de subtil descontinuidade entre o antes e o depois, ou a doce memória de uma das mais bem-sucedidas experiências de separação.
Que dessa experiência inicialmente documental tenha resultado um “filme-tese” sobre como o tempo impregna os lugares, é menos um efeito colateral que a constatação de uma certeza (só hoje mais clara): a amizade é uma forma de mapeamento do mundo e o cinema uma das técnicas cartográficas ao seu dispor. Indo para além do conceito winnicottiano de espaço transicional, cuja analogia não pode senão servir como ponto de partida, podemos pensar que o cinema, quando filmado sob o signo da amizade, é um espaço potencial que nos ensina a aceitar a inevitabilidade da multiplicidade, isto é, a certeza de que o mundo não é mais constituído de duas partes que formam a totalidade do nosso mundo (a criança e a sua mãe que formam um Todo), mas sim duas partes, radicalmente diferentes que, por definição, nos constituem enquanto Ser estruturalmente múltiplo e divisível. É nos “espaços potenciais” da nossa vida que percebemos (sem necessariamente nos apercebermos) que não somos indivíduos, mas sim dividuais. E mesmo que o narcisismo no-lo impeça de assimilar ou esquecer, esse “mergulho violento em alto mar” que é a alteridade, no cinema, passa por nos (re)apresentar o mundo como esse horizonte de inevitável instabilidade – o “mundo como evidência”, lembrando um enunciado de Jean-Luc Nancy, dito a propósito do que, para ele, só alguns cineastas conseguem dar a ver (a sentir) com os seus filmes.
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Filmar o mundo com um amigo é estar “pedagogicamente” perante essa evidência do mundo, ou melhor, é reconhecer gentilmente o mundo como um lugar de relações e conteúdos em movimento. Cartografar o mundo com uma câmara de filmar é algo que todos os amigos deviam um dia experimentar fazer.
Face à estrutura deslizante das amizades, ou à iminência de abandonos anunciados, a escola e o estudo apresentam-se-me como precárias tábuas de salvação em “alto mar”. Felizmente para mim, foi nas várias escolas por que passei (as melhores delas: a escola que todas as escolas deviam ser) que reencontrei um lugar de experiência que, como diz Winnicott, outorga “um sentimento de confiança no meio”. A escola (leia-se, alguns professores, amigos e conteúdos bibliográficos que por lá encontramos) enquanto espaço institucional da amizade é a melhor versão da prisão em que estamos condenados a ser-com no rebordo dessa instituição total chamada vida. É por isso que não me interessa conceber uma ideia de cinema – ou melhor, e porque não falo só de teoria, um conjunto de práticas cinematográficas – que não possa ser pensado como “escola do ver”. Também as melhores memórias que temos das escolas que habitámos, mesmo as mais infelizes e tristes, desde que por lá tenhamos conhecido bons amigos, se parecem com o mais belo e secreto filme da nossa vida visto a dois (no mínimo).
É justamente uma ideia de escola enquanto “espaço potencial” à margem do “mundo exterior” que subjaz ao projecto serial de Frederick Wiseman. Depois de filmar uma violenta prisão para inimputáveis em Titicut Follies (1967), o realizador diz muitas vezes, em tom de explícita provocação, que lhe pareceu óbvio que o filme seguinte, que viria a ser High School (1968), deveria passar-se numa escola secundária de valores conservadores. Hoje, no entanto, é óbvio que a primeira inversão na obra do autor se deu logo aí, nesse segundo filme, de acordo com a seguinte ideia: na prisão que podemos encontrar à superfície em todos os seus filmes, encontramos no seu reverso, também, uma escola em potência, uma “escola do ver” em que espectador é convidado a tornar-se aluno, tal e qual como nos versos de Hölderlin: “Vem, entra no aberto, meu amigo”. A escola (o aberto) como reverso da prisão (o fechamento) – eis a dialéctica wisemaniana na sua plenitude.
Numa sábia síntese que o próprio Wiseman, melhor que ninguém, faz do seu método e ética de trabalho, afirma que cada filme lhe dá uma oportunidade de aprender sobre um novo tópico (“subject”), ou que a experiência de cada filme o faz sentir como um “alegado adulto” num curso de educação que dura há mais de 50 anos. Nela, parece-me estar o autor a dizer algo aparentemente óbvio mas que, com o tempo, percebi ser o que define os lugares onde também quero estar (leia-se, filmar). Esses lugares são a escola de que alguns de nós nunca quisemos sair – não uma escola concreta, mas o espaço escolar em toda a sua potencialidade abstraccionária, isto é, enquanto espaço dramático: um palco do mundo (um mundo como palco) onde as relações humanas, o conhecimento e o ritmo são base quotidiana de uma forma particular de vida.
O humilde intuito de registarmos condignamente a memória desses lugares e trajectos transformou-se, pouco a pouco, na intensificação de uma experiência de saudável crescimento numa cidade que, para nós, sempre nos acolheu como um espaço vital – a cidade como uma sala de cinema a céu aberto.
Não é um acaso que Wiseman se defina ironicamente como “alegado adulto”, pois é através da “arte da ignorância”, como na acepção de Agamben, que aparece uma arte de viver em que persiste “a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos escapa”. Tal como na obra de Wiseman, a “arte da ignorância” é a primeira e última possibilidade de explodir por dentro as instituições que, como no primeiro plano de High School, se parecem com uma terrível prisão. Por outras palavras: encontrar o aberto no fechado através da arte de ficar.
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Os lugares onde filmamos (nos melhores casos, onde escolhemos filmar, pois neles sabemos “porquê” e “o que” filmamos) serão sempre um regresso ao momento primordial das melhores amizades, aquelas que, mais do que uma forma de relação, foram puro jogo dialógico que nos ensinou a ver para além do nosso ponto de vista. Foi assim comigo e com o João: durante semanas, filmar em Lisboa acentuou o prazer de caminhar e ocupar passeios com um singelo tripé, usando a câmara como “utensílio pedagógico” (Deligny) para ampliar a visão, estendendo a minha à dele e vice-versa, mais do que simplesmente trocarmos o par de óculos imaginário de um pelo do outro. O humilde intuito de registarmos condignamente a memória desses lugares e trajectos transformou-se, pouco a pouco, na intensificação de uma experiência de saudável crescimento numa cidade que, para nós, sempre nos acolheu como um espaço vital – a cidade como uma sala de cinema a céu aberto. Filmar como forma de rever (ver de novo, remontar) os lugares onde aprendemos a (con)viver cinematograficamente. Filmar, pressentíamo-lo, era uma técnica de compreensão do mundo como um possível filme, uma forma de intensificação cinematográfica do real, um “Desmontar e voltar a montar até à intensidade” (Bresson).
Se com o João filmei como quem brinca, entrando e saindo de edifícios históricos que tomámos como “brinquedos”, hoje, com outros cúmplices, temos vindo a montar (leia-se, filmar em diferido) um território movente. O que temos em mãos (literalmente) é uma brincadeira muito séria – citando o Tomás, um “jogo de open world” – que ultrapassa a mera contemplação. A cada corte na mesa de montagem surge uma nova ligação improvável ou correspondência secreta. Re-mapear (reconfigurando) a Trafaria com fragmentos por nós filmados e vividos, mais do que simplesmente gravados, não é senão uma maneira de tentar responder – na prática, mais do que na teoria – à seguinte pergunta: “quão longe é possível ir uma Universidade que se quer aberta à comunidade?”. Filmar como quem monta, montar como quem filma, sabemo-lo desde há meses, é uma forma criativa de fazer ver a potencialidade inerente a qualquer espaço existente. Afinal, e recorrendo de novo a Bresson, “Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É estreitar entre pessoas e coisas que existem, e tal como existem, novas relações”.
Onde filmar? Talvez filmar, para mim, tenha sido sempre uma maneira de imaginar uma escola utópica: uma sala de cinema (um atelier cinematográfico) en plain air. Nessa escola, a amizade é (pode ser) uma prática criativa de transformação do mundo. Se muitas escolas se esquecem dessa possibilidade, o cinema existe (persiste) para nelas inventar uma “terceira área”, um “espaço potencial”. Porque se o cinema é uma “escola do ver”, é porque o conhecimento e a brincadeira são consubstanciais à reinvenção muito séria de um novo mundo comum – um espaço de separação-ligação onde tudo renasce.
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(ao João Maria Mendes, ao João dos Santos e ao Tomás Robalo)