(…) passamos as nossas vidas a dizer adeus.
Rainer Maria Rilke, em Oitava Elegia
Mas porque estar aqui é excessivo e todas as coisas parecem precisar de nós,
essas efêmeras que estranhamente nos solicitam.
Rainer Maria Rilke, em Nona Elegia
Há muito que Wim Wenders se quis fazer um romântico, tanta era a obsessão em agarrar as coisas que retinham um sentido de ser, da beleza de um possível (outro) estar no mundo. Ao longo dos anos, tornou-se uma das vozes mais consagradas do cinema europeu, especialmente sob o pano de fundo melancólico que todo aquele vasto deserto americano imprime. Noutras palavras, Wenders fez-se europeu na América, e até ao início do novo milénio transferiu vitalidade. As suas personagens são celestiais, deuses na Terra, representantes de tamanha fragilidade e alienação – transbordam de solidão e sabedoria -, que assim que Wenders lhes injecta alguma agência, estes tornam-se capazes de conduzir sozinhos os seus filmes-exercício e o eventual projectar de luz em tudo aquilo que é invisível ou assim se tornou. Com Perfect Days (Dias Perfeitos, 2023), estreado na competição de Cannes este ano, onde arrecadou o prémio do júri e o prémio de melhor actor, voltamos a este romance, àquela mesma obsessão por um arrebatamento que, mudo, fala por um todo inatingível. Levanta-se então, como quem ergue um edifício das ruínas, pondo uma pausa em duas décadas de experimentação – ainda estou para ver Anselm (2023), documentário dedicado ao artista visual Anselm Kiefer, mas o convite para o visionamento em 3D parece sugerir uma continuação pelos caminhos da abstracção fílmica -, e retorna à tarefa pela qual o conhecemos, a tarefa poética, que colhe e recolhe ideias de pureza espalhadas ao longo do desdobrar rotineiro de um homem japonês na Tóquio de agora, do Spotify, da apatia, do fim dos tempos.
Logo com os seus primeiros planos, ou melhor ainda, primeiros aproximares que acompanham Hirayama (Kôji Yakusho), nome que homenageia o mestre Ozu e o seu O Gosto do Saké (An Autumn Afternoon, 1962), protagonizado por um actor que se despe da performance, Wenders tem em vista filtrar os hábitos e sonhos (sequências a preto-e-branco que se intercalam) de um homem que poderia ser um só homem. Nunca um protagonista. É desde logo um olhar elogioso dos espaços urbanos e as estruturas modernistas de um país ao qual este cineasta do Ocidente regressa sem tratar por “outro” (depois do caderno de viagem Tokyo-Ga (1985) e Notebooks on Cities and Clothes (Identidade de Nós Mesmos, 1989), sobre o designer de moda Yamamoto Yohji).
São tantos os silêncios gordos, e sorrisos que ora exacerbam ora sublimam. Há um entendimento da bravura da condição humana, de como esta se auto-ampara.
No balançar de uma câmara segura que tenta circundar Hirayama, caímos na sucessão dos gestos do estudo de personagem destinados a existirem na sua repetição e a brilharem sempre que esta se vê modificada. A abordagem é, desde logo, documental. Tal acontecimento do cinema do real. O levantar da cama, o dobrar da orelha da página do livro que adormeceu a ler, o descer até ao lavatório da cozinha e o lavar de dentes, a pulverização de água nas plantas, o vestir do fato azul marcado com um logo branco ‘The Tokyo Toilet’ do districto de Shibyua, e a saída, a compra de uma lata de café da máquina automática à entrada de casa e o entrar na carrinha, apetrechada com todos os objectos e instrumentos necessários à limpeza das casas de banho da cidade, todos tão metodicamente arrumados. E será aí, dentro da sua carrinha, também ela azul, a caminho da rota de casas de banho a limpar – objectos feitos obras de arte para desviar a atenção das associações tipicamente feitas a casas de banho públicas das cidades grandes, e normalizar o seu uso – que o filme arranca. Os clássicos musicais americanos dos anos 60 e 70 (em formato de cassete) que Hirayama ouve a caminho do trabalho libertam a repetição e igualam protagonista a espectador. Pelos viadutos de Tóquio fora, fazendo vénia à Tokyo Sky Tree, espraiamo-nos por cima das vozes de Lou Reed e Patti Smith e The Velvet Underground. Depois de anunciada a vida interior e os prazeres simples, voamos com ele, sorrindo para o ecrã.
Não muito longe da minha imagem-memória do seu filme-irmão Paterson (2016), de Jim Jarmusch, na forma como ambos se deitam na sincronicidade poética do que significa estar vivo, Wenders concluirá o dia de Hirayama, que vive como se para ele olhassem (um Buster Keaton moderno), e começará outro e outro e outro. Eventualmente virá o fim-de-semana. E depois as reviravoltas que irão afastar Hirayama da sua habitual trajectória diária. Os mais cínicos olharão para o minimalismo metódico como resposta ao trauma, e a ele associarão uma falta de espontaneidade própria da idade mais avançada. Mas o que se torna tão curioso em Perfect Days é a falta de inflamação propriamente dita. Sem recorrer a quaisquer juízos de valor – tirando talvez um comentário válido sobre o valor das coisas num mundo digital nostálgico pelo que nunca conheceu, sente-se a sobriedade de Wenders pelo projecto e a crença nesta felicidade, neste interior que vibra e chora sorrindo, em partes demasiado caricatural para o seu próprio bem (especialmente a leitura feita do que se parece com bondade, universal, a tocar no divino e no sábio), livre de resquícios de algo combustível ou instável de alguma forma. Mesmo que nos sejam oferecidos vislumbres de um passado sofredor da personagem, sem dúvida provocador de uma metamorfose qualquer, o filme nunca se abre à facilidade do melodrama ou a um travo mais agridoce. A sua tensão não se encontra depositada nas mudanças que se dão, mas em como este lida com elas. E como nos vemos a olhá-lo enquanto este lida com elas.
Não é sentimentalismo sobre a efemeridade da vida, como tantos outros filmes certamente abraçariam. É um acender de cinema.
Seja como for, é forte o desejo em querer falar com o espectador (nunca cai num discurso paternalista, ainda que se abeire dele) – aprendemos a certa altura que há muitos mundos dentro do mesmo. Eis então que a força suave de sentimentalidade que lhe conhecemos e que sempre distinguiu Wenders dos seus compatriotas do Novo Cinema alemão (Herzog, Fassbinder…) se impõe como nutrição. Quanto mais para o ecrã olhamos, mais a absorvemos. Isto não é só sobre como fazer sentido da vida ou da nossa motivação para continuar nela. Hirayama não conspira contra o mundo que o sustém. Ele escolhe unir-se a ele. Lê e ouve música e tira fotografias nos respirares dos seus dias, e marca o tempo de vida através de gestos simples, seguindo uma energia circular que se abre durante a produção manual de trabalho corporal, levada a níveis de excelência, e se completa com o cultivar da mente. Até nas sombras de ramos de árvores Hirayama encontra alento. Wenders corre o filme de detalhes tão preciosos quanto este, mas não pelas razões esperadas. Não é sentimentalismo sobre a efemeridade da vida, como tantos outros filmes certamente abraçariam. É um acender de cinema.
Talvez seja por isso que a perspectiva de escrever sobre o filme promova tanto receio. Receio de tudo fragmentar. Ainda que muito concentrado (no seu conceito e matéria visual), a sonoridade de Perfect Days é a de canto espiritual. Sonda o que existe ali. E nunca as suas linhas se alteram. Se, em algum momento, pede algo, pede muito pouco. Admito que é uma visão demasiado imaculada (já para não dizer também que aquelas casas de banho tão limpas no centro de Tóquio não convencem ninguém) de um homem que encontra conforto na ordem para sustentar o natural peso, excessivo, da sua consciente existência. Ainda assim, e após o estabelecer inicial de um segundo dia completo na vida de Hirayama, o importante passa pela forma como o cineasta se apoia nas imagens enquanto medidoras dos restantes dias que nos irá mostrar. Planos são seleccionados como traços e uma composição vai sendo criada, em jeito de renovação. Às vezes, com imagens que já nos tinham aparecido antes. Outras vezes, com outras do mesmo objecto e momento.
Pode dizer-se que este faz um exame contemplativo das imagens (muitas delas de não-lugares) que definem as impressões dos nossos dias. Mais uma vez, está presente a obsessão em agarrar a conservação de momentos. Para Wenders, esta parece ser a base de tudo. É mais importante estar presente para esse sequenciar visual e seus desvios, nomeadamente as personagens que vão aparecendo na vida deste homem sereno, do que o foco produtivo ser o que deles floresce. “A próxima vez é quando for a próxima vez. Agora é agora.”, ouvimos ser repetido numa das melhores cenas do filme. Wenders, como que adormecido nos últimos anos, volta ao acordar estrelado que tanto Paris, Texas (1984) ou Wings of Desire (Asas do Desejo, 1987) tinham emitido, e que calou um trânsito de perguntas que corria dentro de mim. Que livro é aquele de Patricia Highsmith? E quem é Victor e o que lhe acontece? E como caracterizar um dia perfeito? O que é a perfeição? Como fazer essa avaliação? Como a olhar, sem reconhecer todas as realidades, todos os outros possíveis dias?… Quando, na verdade, a única coisa que importava reconciliar era um encontro com as imagens oferecidas pelo mundo, e como estas vivem da possibilidade de alguém nelas reparar e nos seus dias as incluir. Hoje vi isto, hoje isto foi-me acrescentado. Mas se assim é, sempre, será possível aguentar a exaustão desse estar presente que nunca terá um fim?
Aliado a isto, há todo um outro lado de Perfect Days, que diz respeito à superação da voz interior. Exposta ao frio, a solidão tem o poder de enegrecer o olhar, e é normalmente terreno inóspito onde nada cresce. Especialmente quando nada se lhe intercepta ou a ela se mistura, e tudo o que importa é aquela carrinha, a presença diegética da música, e o caminho em frente. Então como sobreviver à melancolia? Como parar de dizer adeus?
Wenders responde-nos a isso também. Afinal este é o seu herói não-estereotipado, loquaz só na linguagem corporal. Ele conhece-o muito bem. Hirayama é um intelectual que se regojiza no trabalho manual, mas não numa vida livre de vínculos. Vive sozinho, mas procura calor na sua dedicação com todos os seres vivos, seja nos pés de plantas que apanha e delas cuida, seja com o outro que se cruza no seu caminho. É um outro Travis (Paris, Texas). Sem nunca esquecer claro que nem tudo é sobre ele. Uma senhora penteia um gato num jardim. Uma rapariga também come uma sanduíche durante o seu almoço sentada num banco. Mais tarde joga-se ao apanha com as sombras dos corpos, ou então conclui-se um jogo do galo que um estranho começou num papel, objecto que deixou para ser encontrado numa casa de banho pública. E o carinho que a dona do bar nutre por ele, sem menção ou declaração. São tantos os silêncios gordos, e sorrisos que ora exacerbam ora sublimam. Há um entendimento da bravura da condição humana, de como esta se auto-ampara. Mais palavras para quê? Enquanto o filme nos mostra o que reter, nós vemo-lo a manifestar-se em nós, mesmo sem nada lhe darmos em troca. À voz de Nina Simone, do seu Feeling Good, e do mais perfeito culminar da história de Hirayama connosco, tudo renasce, como uma fénix, das cinzas.
★★★★☆